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segunda-feira, 23 de março de 2015

AS MASSAS, AS ÁGUAS, AS FLORESTAS E NOSSAS VIOLÊNCIAS...

Imagem publicada – fotografia publicada no site das Nações Unidas (Onu) com um grande poço de água, rodeado de uma quase centena de seres humanos, uma massa de sedentos, em pleno deserto da África, lançando seus baldes em busca desse vital elemento. Um elemento-vida que comemoramos ao mesmo tempo em que esgotamos. Uma pequena amostra de homens e muitas mulheres, com suas vestes típicas, suas moringas, seus potes de barro. O mesmo barro que soprado poderia criar o Homem, mas que estamos tornando cada dia mais seco, mais árido, menos Terra e mais devastação. E, juntos, poderíamos tentar mudar esse rumo. Entretanto, só usamos os barros para novos muros, novas segregações, foi-se o “tijolo” da conscientização política de Paulo Freire? Entram em cena as máscaras e as encenações, hipermidiáticas e hipercapitalizadas, que não educam e nem transformam.

“Nenhum homem é capaz de mostrar um rosto para si mesmo e outro na multidão por muito tempo sem acabar confuso em relação ao verdadeiro” (Nataniel Hawthorne – A letra escarlate)

Você deve estar se perguntando qual a relação ou aproximação que este título tem entre os termos e seus significados (e significantes). Porque relacionar as massas, hoje tão “populares”, televisivas e festivas, nas chamadas ‘’manifestações’’, com as águas, as florestas, que desaparecem? E, enfim, com nossas violências que recrudescem?

Primeiro como repetição, lembrar que estamos em tempos do que chamo de IDADE MÍDIA, depois lhes avisar que os temas são mais amplos e mais oceânicos do que minha vã pretensão. Não tenho como atingir em um texto, embora extenso para alguns, todas as dimensões destas transversalizações. Lembro que estamos em dias que se ‘’comemoram’’ como segregação, na visão local e minúscula, embora todos conjuntamente, propagamos como os ‘’dias internacionais’’, portanto universalizantes e igualitários.

Como assim? Os símbolos de massas atuais estão muito próximos do que Elias Canetti denominou e classificou em MASSA E PODER. Quando milhares que se pretendem milhões levantam suas faixas e seus “protestos” fico mais ainda convicto das lições dessa fundamental, não fundamentalista, leitura dentro de um viés de uma “antropologia patológica” sobre as interações do poder com as massas, seus cristais, seus símbolos, suas múltiplas facetas.

As massas recentemente revelaram um discurso de ódio, de discriminação e de dominação. Estiveram mais uma vez globais, convocando um ‘’vem pra rua”, mais uma vez pedindo: - “Veja, aceite como verdade e se aliene”. Essas maltas elitizadas que usaram, ao máximo, suas máscaras, ou personas, como se fosse uma manifestação de todo um povo, todo um país, toda uma nação.

Gritaram, fingiram-se ‘’revoltados’’, tiraram as roupas amarelo-verdes da Copa e, depois, de uma nova Marcha da Família pela Pátria, agregando desde golpistas, saudosistas da Ditadura, evangelizadores fundamentalistas, neo-nazistas até a  TFP. Passado o domingo e sua exibição, voltaram para seus sofás e suas varandas.

Demonstrou-se, entretanto, claramente, para os que querem enxergar, que podemos todos nos torna uma massa corrompida que cospe a Mentira e a Agressão para sua própria produção de farsa, daquilo que julga, freneticamente, combater: a corrupção.

Estes recentes fatos massificantes, que antevi em 2013, também confirmam como, por que e para quem podem se tornar um mar falso revolto,  por ondas fascistantes, areias movediças dos preconceitos e velhos rios turbulentos das Águas de Março de um Golpe civil-militar. Águas barrentas, vistas apenas um temporal, hoje só uma chuva que decantou essas areias, demonstrou que o “mar não tem limites internos e não está dividido em pequenos povos e territórios”.

O Tsunami instituído e politicamente desejado ainda não veio. Entretanto, mais uma vez, como repetição neurótica e histriônica, nos mostrou a máscara triste e carrancuda dos micro-fascismos instituídos e latentes em nós. Os monstros fardados, aparentemente adormecidos-anistiados, dos porões da Ditadura foram invocados, militarescamente, seriam e serão, como velhos refrões e clichês: os restabelecedores da Ordem e do Progresso.

 Essa mesma ordem que suprime o que mais precisamos: a diversidade, a floresta tropical dos conhecimentos ou atlântica das liberdades civis. Sabemos que árvores, simbólica e ordenadamente enfileiradas, lembram bem as milícias, as patrulhas e os exércitos.

Nenhum dos seus “indivíduos” escapará, como um símbolo, da atração pelo fogo grupal e seu incêndio, à destruição de sua própria existência. Como diz Canetti, dentro dessa imobilidade múltipla, com raízes bem duras e fincadas, os troncos (indivíduos) podem ser cortados, mas não movidos. Ficam como os campos arrasados ou minados. Restos de árvores que podem ou não renascer.

Segundo ele, “a floresta se converteu num símbolo do exército: um exército em formação, um exército que não foge (à luta) em circunstância nenhuma; que se deixa despedaçar até o último homem antes de ceder um único palmo de terreno”. 

Assim também se criam desertos e homogeneidades ideológicas. Assim, naturalizamos e banalizamos as violências dessas chamadas “manifestações pacíficas”, apesar de seu claro desejo de devastação do que escolhem como os “inimigos”: desde um Partido/Governo até os sem-teto, os sem-terra, os off-line.

Os “novos” oponentes ou ameaças, ou mesmo os que ficaram e ficarão fora, como já o são estes “divergentes embora emergentes” na Sociedade de Consumo e do Espetáculo. Para tanto basta que os marquemos com uma estrela vermelha ou mesmo aquela amarela do nacional-socialismo alemão. Um estigma, uma discriminação e identidade. Então viram menores infratores ou maiores delatores.

Os antigos “bodes expiatórios” só trocam o pijama listrado por uniformes pardos. Os velhos guerrilheiros pelas novas/velhas calças jeans desbotadas ou surradas.  E, alinhados com os nacionalismos, serão alistados nesse exército da salvação, vestirão novos ternos e novas gravatas políticas ou jurídicas. Proclamam sempre um novo país, mas mantem as velhas posturas despolitizantes das maiorias.

Surgem aí as violências subterrâneas, enraizadas historicamente nos muitos anos de colonização e escravatura. Os bem-nascidos continuam sendo uma suposta “classe”. A chamada “elite”, branca, culta, muito ou pouco rica e que não precisa de cotas. Uma parcela que se diferencia e tem como identidade a sua individualista forma de viver. Dizem-na sempre “média”. Para mim tornou-se mais que isso: supõem-se mais “normais” e “íntegros” do que qualquer Outro das chamadas classes subalternas ou inferiores.

 Incomodam-se com essa ascensão desses Outros, na maioria afrodescendentes ou ‘mestiços sócio-econômicos’, aos direitos sociais e às galerias dos shoppings, onde ameaçam os novos grupelhos de “nossos filhos com escola privada, smartphones e roupas de grife (mesmo que estas sejam fruto de trabalho escravo)”. Seriam eles os novos bárbaros? Ou apenas são descendentes de outras raças, outras terras, outros planetas?

Nesses dias, tão comemorativos, inclusive daqueles que chamamos de pessoas com Síndrome de Down, muitas vezes vistos ainda com extraterrestres ou mongóis, portanto invasores, assim como os meninos e meninas negros em um shopping, é que percebemos o quanto ainda discriminamos, rejeitamos e fingimos aceitar essas diferenças e diferentes em nosso casto e puro mundo idealizado. Para eles abrimos espaços, já que estiveram muitos séculos fora-das-leis e dos direitos, em novas massas a serem incluídas.

E desejamos tanto usar o discurso da inclusão que acabamos por criar novos e sutis modos de exclusão, ou mesmo de extermínio, inclusive com as biopolíticas e as engenharias genéticas. Usaremos tanto o discurso da prevenção dos erros genéticos como os discursos falaciosos de suas proteções. Serão todos homogeneizados, todos reformados ou remodelados. A sua presença não significará sua garantia de re-conhecimento.

Se nos faltar a água, se cortamos todas as árvores, se secarmos todas as nascentes, desmatarmos e des-florestarmos nossas relações e afetos, assim massificados não escaparemos dessa insensibilidade cruel. Uma cruel compaixão.  O Outro excluído  pode ser a fonte a ser destruída. Ele encarna o que nos dizem ser o “Mal” ou “Mau”.

Esse Mal, o mesmo que ouvi gritarem das janelas e sacadas, que foi midiaticamente localizado em uma figura de poder. Esse Mal que ocupa mais espaço nas redes sociais que todas as vacinas para o HIV. Esse Mal que “tem de ser cortado pela raiz”, o mesmo que é banalizado quando olharmos para esses dados: “no Mundo 768 milhões de pessoas ainda não tem acesso à agua tratada; 2,5 bilhões de pessoas têm condições sanitárias ruins ou  péssimas; 1,3 bilhão não tem acesso à eletricidade...”(*).

 E, por exemplo, mesmo que sejamos uma parte invisível de mais de 25 milhões de pessoas com deficiência, ainda, para além das Leis de Inclusão, continuamos diferentes e desiguais. Afinal, a desigualdade já é ”natural e da Natureza” (inclusive da “humana”). Estes sujeitos ainda continuam, assim como os marginalizados, fazendo parte destes números apresentados acima. Ocupam, junto de jovens, negros, mulheres, lésbicas, trans, homossexuais, pobres e outros desfiliados a massa quase líquida como sua modernidade. Ainda são descartáveis. São "menores"?.

Não importa a falta de água, da privada ou da luz acesa, na casa ou teto desses “incômodos e estranhos vizinhos”. Importa, cada dia mais, o quanto de grana conseguimos ganhar, gastar ou poupar para nossos consumos autorizados, compulsivos e sacralizados. A escassez, inclusive de afetos, que produzimos ou somos coautores não nos sensibilizou nem um pouco. Esses Outros são apenas os que são “portadores” ou “desviantes”.

E o nosso vizinho, aquele ali do lado no condomínio (fechado ou sob vigilância crescente), é apenas um brasileiro “normal”. Mas se aplicarmos as lentes da Arendt, olhando-o trans historicamente, ele fica parecido com o ‘bom’ homem que foi Eichmann.  Como o oficial burocrático do campo de concentração nazista do passado, hoje, podemos ser apenas um bom pai, ou boa mãe, um sujeito de boa família, com um bom sobrenome, de tradição e de direitos. Somos e seremos aqueles que “nunca transgrediram ou transgredirão, ou violaremos uma lei, ou estacionamos em vagas prioritárias, ou nem vemos placas de trânsito sobre nossos tempos da velocidade”. Como dizem: estes seremos, os imaculados cidadãos e cidadãs “que nunca se corromperam e nem se corromperão”.

Entretanto, quando perdidos diante da seca e do incêndio da floresta, suplicantes por uma gota de chuva iluminadora, diante do enorme buraco negro de nossas securas humanas, nos tornaram uma máquina, um exterminador, ou um perigoso e voraz animal. A sua e a nossa banalizada violência agora pode ser grupal. Valerá tudo para que tenhamos o “poder” de “limpar a sociedade” dos que se tornaram os “culpados” de toda essa “desordem político-institucional e socioeconômica”.

Mais uma vez lembro Canetti: “No tratamento dos judeus (e todos os dissidentes políticos, ideológicos, raciais ou sexuais), o nacional socialismo (nazismo para os que ainda não sabem disso) repetiu da forma mais exata possível o processo da inflação. Primeiro eles foram atacados como maus e perigosos, como inimigos; depois foram sendo cada vez mais desvalorizados (associados à inflação e desvalorização do marco alemão);... e, no final, eles eram considerados literalmente como ‘insetos nocivos’, que podiam ser exterminados aos milhões”. E lema ainda é usado pelas corporações: Arbeit Macht Frei – O trabalho liberta...

Os “homens e mulheres do Bem”, nessa Idade Mídia, com suas cruzes ou seus tabletes, armados e municiados da mais pura alienação ideológico-política, tornam-se os “novos cruzados”. Reapresentam a suástica no mesmo cartaz ou faixa que pede intervenção militar. Os anunciadores do apocalipse da Terra Brasilis vestem seus uniformes. Hasteiam a bandeira da Tradição, da Família e da Propriedade. Tingem os rostos como de fosse para uma guerra santa. Iludem-se, quiçá, alucinam, com a miragem que lhes foi vendida como oásis.

 E, aí, deixam o homem “comum” se tornar uma das forças do Mal. O mesmo que lá nas histórias totalitárias se transfigurava em legítima violência em nome da Segurança Nacional. Aquele que pode legitimar as piores torturas ou aprisionamentos. E, sedentos de identidade, tentarão, como massa inflacionária, como uma dengue, uma epidemia “legal”, contaminar o máximo possível em direção às massas que se pretendem um milhão.

Eles e elas, ao se vestirem em suas uniformidades bicolores, nacionalistas e excludentes, acabam por esquecer as cores de seus próprios corações. Afinal ainda dizem que nosso sangue comum é vermelho. Passam e desfilam em avenidas, mas nunca irão conhecer as vielas, as ruelas e os becos transversais. Afinal ainda reservam esses locais para o ‘’proletariado’’, “pobres”, “povo” ou “favelados”. Cuidado ali é uma comunidade onde as balas se perdem, os corpos podem ser arrastados, e, para sua segurança, procure a Rota.

Passado o calor do pequeno incêndio explorado por lentes de aumento, não desprezando seu potencial virulento e dessensibilizante, as panelas voltam para as mãos das empregadas domésticas. O nosso pão de cada dia é recheado de manteiga, os afagos nas PMs desaparecem, enchemos os nossos poluidores veículos com os combustíveis antes do fim do pré-sal, e nossas mesas fartas/opulentas continuam, assim como as televisões de tela plana e mentes também, imóveis como os eucaliptos em falsas florestas. Até sermos abatidos.

O único risco que corremos e corremos, se continuar essa Onda, é que tenhamos de lembrar que revoltadas deveriam estar essas pessoas off-line, marginalizadas de todas as redes, hora esquecidas e, apenas eleitoralmente, hiper “incluídas”. Entretanto, permanecem ainda vítimas de todas as violências, desde as urbanas visíveis às domésticas invisíveis. Violências e vulnerações já naturalizadas, em especial contra, aqueles que classificamos, como no Espetáculo das Raças, como vulneráveis, desviantes, desnaturados, desfiliados ou incapazes da auto-defesa.

Eles tenho certeza, não são e nem serão os que mais esperdiçam as águas, desmatam o futuro, mas podem vir a ser as massas que terão o papel de enfrentamento das neo-colonizações e dos novos Impérios.

ENTÃO, em seu nome, sem sua autorização, podemos, todos e todas, com “classe”, comemorar os dias ‘’internacionais”: da Criança, da Síndrome de Down, da Eliminação da Discriminação Racial e do Racismo, da Poesia, das Florestas, da Água.

E, como todo dia é de reinvenção e poesis, quem sabe um dia, em sonho e porvir, inventemos a não repetição de milhares ‘’Noites dos Cristais” de massa, milhares de dias de Muros a derrubar, seja em Berlim ou na Palestina ou no México,  milhares de Golpes a desmantelar já que nos demolem direitos humanos, milhares de  Falsas Re-involuções ou Massas Fanáticas, que não distribuem rosas ou cravos, mas sim distribuem, sem distinção de classes sociais ou econômicas, os piores espinhos ou venenos ideológicos.

Enfim, semeiam, mesmo nas mentes mais desérticas, os narcisismos das pequenas diferenças e o ódio ao Outro e à Diferença... Já nos re-conhecemos como massa, quando seremos uma multidão? Quando seremos nossa mais im-pura água semeadora de múltiplas florestas humanas, como plural das diversidades e das diferenças desejantes?

Copyright/left jorgemárciopereiradeandrade 2015-16 ad infinitum - todos direitos reservados 2025 (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet ou outros meios ou mídias de e para as massas)

LEITURAS CRÍTICAS PARA OS NEO-REvoltaDOS E DES-MATADORES DO FUTURO (assim como releitura para os que ainda sonham e são chamados de utópicos ou ‘vermelhos’, pois eu sei que sou e serei, poeticamente, sempre PRETO, trans-portando a combinação de todas as cores):

MASSA E PODER – Elias Canetti, Editora da UNB/Melhoramentos, Brasília, DF, 1983.
O ESPETÁCULO DAS RAÇAS (Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil)– Lilia Moritz Schwarcz, Editora Companhia das Letras, São Paulo, SP, 1993.

EICHMANN EM JERUSALEM (Um relato sobre a Banalidade do Mal – Hannah Arendt, Editora Companhia das Letras, São Paulo, SP, 1999.

SOCIALISMO OU BARBÁRIE (O Conteúdo do Socialismo) – Cornelius Castoriadis, Editora Brasiliense, São Paulo, SP, 1983.

O SILÊNCIO DO ALGOZ (Face a face com um torturador do Kmer Vermelho) – François Bizot, Editora Companhia das Letras, São Paulo, SP, 2014.

O QUE É VIOLÊNCIA SOCIAL - Antônio Zacarias, Daniel dos Santos, Jorge Márcio Pereira de Andrade, Ricardo Arruda, Escolar Editora, Coleção Cadernos de Ciências Sociais (Org. Prof. Carlos Serra), Lisboa, Portugal.

Indicações de matérias da Internet ligadas ao texto:


No Dia Internacional das Florestas, ONU lembra que 1,6 bilhão de pessoas depende delas para viver https://nacoesunidas.org/em-dia-internacional-das-florestas-onu-lembra-que-16-bilhao-de-pessoas-depende-delas-para-viver/

LEIAM TAMBÉM NO BLOG –

ÁGUA PARA QUE TE QUERO? Dia Internacional da Água https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2010/03/agua-para-que-te-quero-dia.html

A CORÉIA DO FANATISMO POLITICO E O FANATISMO RELIGIOSO DO PASTOR: estamos no Século XXI? https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2013/04/a-coreia-do-fanatismo-politico-e-o.html


RACISMOS, BARBÁRIES, FUTEBOL... ONDE ENTRECRUZAM AS VIOLÊNCIAS SOCIAIS? https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2014/05/racismos-barbaries-futebol-onde.html

MOVIMENTOS, MASSAS, MANIFESTOS E HISTÓRIA: POR UMA MICROPOLÍTICA AMOROSA, URGENTE. https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2013/06/movimentos-massas-manifestos-e-historia.html

A MÁQUINA DA EMPATIA – INCLUINDO A REINVENÇÃO DO OUTRO https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2010/12/maquina-da-empatia-incluindo-reinvencao.html

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

RAÇA, RACISMO E IDEOLOGIA: ZUMBI ERA UM VÂNDALO, UM BLACK O QUÊ?

Imagem publicada – um menino zumbi? Uma foto colorida de meu arquivo pessoal com uma criança, com uma camiseta regata vermelha, onde se lê Salvador, Bahia, Brasil, uma cidade, um estado e um país bem pretos, com uma população infantil perdida e perambulante em busca de sentido e existência. Meninos e meninas, na maioria negros, que mendigam nossos olhares, nossa atenção, nosso respeito e nossa indignação. Meninos e meninas caídos, emagrecidos, dopados, como o da foto, em cima de pedras coloniais, por onde pisaram seus ancestrais escravizados, arrastando correntes, ou servindo aos seus donos senhores nas ladeiras como carregadores das liteiras, derivação de sua condição de mulas, ou seja, mulatos.

“Vós e nós somos raças diferentes. Existe entre ambas uma diferença maior do que aquela que separa quaisquer outras duas raças. Pouco importa se isto é verdadeiro ou falso, mas o certo e que esta diferença física é uma grande desvantagem mútua, pois penso que muitos de vós sofreis enormemente ao viver entre nós, ao passo que os nossos sofrem com a vossa presença...”.

Assim como o garoto “invisível”, esquecido e negado, para não deixar esquecer e com o desejo de não ter de repetir, pergunto-lhes, como já o fiz em 17 de novembro de 2010: de quem seria essa afirmação feita em 14 de agosto de 1862? Seria possível que fosse uma frase do eugenista Francis Galton (1822/1911)? Ou então de algum outro que pregasse à época a purificação das raças, sua higienização ou segregação para o “bem” de ambos os grupos étnicos, inclusive em nome da Ordem.

Não, a frase foi proferida por Abraham Lincoln, na Casa “Branca” para um grupo de negros, àqueles ainda sob a escravidão, e ditos motivos históricos da Guerra de Secessão. O norte abolicionista contra o sul escravocrata.

Historicamente aí nasce, ou melhor, se aprimora uma conceituação que alicerçará, por séculos, a ideia de raça. Naquele encontro presidencial estavam os que iriam receber uma ajuda governamental, aprovada pelo Congresso, para sua “instalação fora do país”. Seriam “ajudados” na sua volta a África, considerada já sua única pátria e nação verdadeiras. Então, Lincoln sublinhou que “neste vasto continente não há um único homem da vossa raça que seja considerado igual da nossa”.  E, como nossa Princesa, entra para a História como um defensor da abolição...

Escrevo este texto para nos lembrar, e em especial aos que negam a existência das consequências da ideia e da ideologia ligadas à raça, que quando se propõem uma comemoração ou celebração de um mês para a Consciência Negra, em nosso país, ao estarmos presos a velhos preconceitos ou falsas benevolências, a maioria da população deste país, apenas por ser a maioria, mesmo que tratada desde a Colônia como minoria ou marginalidade social.

Nunca gostei do que colocaram em minha certidão de nascimento: cor da pele – pardo. O que ouvia e o que sentia é que ainda  existia, pela visão de Abraham, uma diferença física que mesmo edulcorada com o “moreninho” permanecia como " a diferença". Uma diversidade não tão divertida, como os nomes que aprendia: cafuzos, mamelucos e outras “coisas”. 

Minha e nossa miscigenação era e é parecida com um processo de liquidificação genética de superfície; explico, apesar da pele mais “clara”, os processos de inclusão permaneciam, podem permanecer, na escola, na rua, nos mundos em volta, diferenciados. No fundo, no inconsciente colonizado, permanece a ideia da raça diferente.

São as sutis e negadas exclusões que permanecem subjacentes e como significantes nos processos ditos inclusivos. As construções das ideias intelectuais de raça foram, transhistoricamente, municiadas de “balas de borracha teóricas”, ou seja, continuavam repressivas, violentas, instauradoras de uma ordem, confirmadoras de um Estado de Exceção, mas sempre difundidas como uma solução para os conflitos das multidões e dos povos.

No meu universo empardecido procurei, pela voracidade do conhecer e do ler, encontrar um rebelde com quem me identificasse. Esse, que nos Anos de Chumbo, transformei em uma força constituinte e instituinte para meu próprio futuro: Zumbi (1655/20 de novembro de 1695). Um nome ligado a uma resistência ao colonialismo e à nosso histórico de dominação por Portugal. Um quilombola que os livros de história (com h minúsculo) diziam que tinha se suicidado na Serra da Barriga. Não, ele foi é traído e morto, como alguns das guerrilhas que se deram em outras matas da América Latina.

Segundo o livro de Joel Rufino dos Santos, como reparação dessa versão suicida, ao ser morto, após perder sua única fortificação e posição fixa no Quilombo dos Palmares, quando retomou a ‘guerra do mato’, demonstrou o vilipendio do seu corpo tombado por “quinze furos de bala e inumeráveis de punhal”. Tinham lhe castrado, e o seu pênis enfiado na boca, além de um olho tirado e uma mão direita decepada. Tinha se tornado uma vida nua, matável, despojável e uma ‘coisa negra’ que os vencedores do Império precisavam eliminar: um vândalo, um subversivo, um inimigo político dos bandeirantes, dos comandantes militares e dos aristocratas de Pernambuco e Alagoas.

Por isso quando leio que uma cidade brasileira impõe uma liminar para impedir a comemoração do Dia Nacional da Consciência Negra, 20 de Novembro, lá em Curitiba, me sinto, novamente, experimentando na pele esse disfarce e tática para a discriminação. A ACP (Associação Comercial do Paraná) entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, e a Justiça concedeu uma liminar, tendo como principal alegação: “...a ACP alega que o feriado (dia 20) causaria o prejuízo de 160 milhões à economia do município”.

Entretanto, como contradição a este suposto prejuízo, difundi pelas redes sociais o Relatório do DIESSE (Os Negros no Trabalho, 2013) que confirma que apesar de trabalhar mais a maioria dos trabalhadores negros, mesmo ao ter maior participação no mercado de trabalho, ainda ganham menos do que os não negros e ocupam os postos de serviços menos valorizados. 

Então, seja no Paraná ou no Amapá, continuam sendo uma maioria que alicerça a tal economia que seria prejudicada. Continuam uma ‘maioria’ em marginalização e discriminação laborativa. São os ‘zumbis’ que constroem prédios, novos aeroportos, novas estradas, novas economias, de novo denominados de mulatos e mulatas, inclusive no Global.

Para que não pensem que esta discriminação é localizada e datada na Colônia precisamos lembrar que a presença do trabalho indigno e escravo é mais atual do que nunca em nosso país. E, para nossa reflexão, um dos estados onde mais ocorre, o Mato Grosso, apenas 03 (três) de seus 141 (cento e quarenta e um) municípios, Corumbá, Ladário e Itaporã, irão comemorar o feriado do dia 20, o dia de Zumbi e da Consciência Negra. Em Campo Grande a Federação do Comércio também impediu o feriado. Entretanto, no Mapa da Escravidão, uma realidade e vergonha a ser enfrentada, este estado ocupa um grande espaço junto a outros que mantiveram mais de 43 a 200 mil trabalhadores em escravidão no séc. XX/XXI.

Então, alguns irão questionar o que há para comemorar? Não há nada para festa ou carnaval com mulatas globelezas nos encantando como sereias. Não há nenhum lamento ou banzo negreiro a ser rememorado. Não há nem mesmo nenhuma chaga gerada por velhos troncos ou torturas, ou chãos rasgados por mãos calejadas e ainda acorrentadas por novas escravidões.

Há apenas que, como a lembrança de Tiradentes, oficialmente autorizada, embora também martirizado por ser revolucionário, refazer a História, com participação ativa da população afrodescendente. Fazer, a partir das escolas, o resgate de um corpo, de uma História e de uma resistência, pela consciência e a educação, que retire os grilhões, hoje invisíveis, dos pés, mãos e cabeças dessa parte diferente e incômoda de cidadãos e cidadãs.

Este ano o 13 de Maio já passou. O dia 20 de novembro espero será menos negado e mais reconhecido, pois uma das mais comuns alegações ou justificativas, além das econômicas, para não torná-lo mais que um feriado, é a de que “não existe racismo no Brasil”. Assim se produziu, inclusive teórica e cientificamente, um embranquecimento de nossas memórias. Há quem não reconheça nem mesmo suas próprias identidades, origens ou negritudes.

Deu um ‘branco’ nas páginas obscuras de nossos movimentos eugênicos e higienistas que envolveram desde escritores infantis até grandes nomes das ciências. Estes esquecimentos já fazem parte de uma anistia que tentou esconder verdades de um tempo totalitarista e de exceção. O movimento de ocultamento de Amarildos e seus corpos reavivam essas práticas. O que a terra oculta, na nossa ‘culta’ sociedade, é para ser esquecido?  Zumbi diria que não, inclusive com armas ou pedras na mão, mesmo que decepada.

Por ter um dia me visto, reconhecido e re-existente através da história verídica de um homem livre, Zumbi, é que inventei nos tempos da Análise Institucional a “potência Zumbi”. Uma potência capaz, por sua força instituinte e desestabilizadora, de construir novos analisadores históricos, novas revoluções moleculares, novas cartografias, novas alianças e suavidades existenciais, para que possamos ir além das cotas e das ações afirmativas. Para que possamos realizar, em ato e mudança de paradigmas, minha frase premiada pela Seppir: “Abolir as novas escravidões e novos racismos, um futuro possível e urgente para o Brasil”.

Então, nem mesmo os mais radicais, os mais ‘poderosos’ ou os mais falsos abolicionistas poderão deter os novos Zumbis, novos black powers, novas singularidades, que não são mais massa, nem povo, são somente multidões indignadas e cansadas de sua exploração e escravidão neo e hipercapitalística. Martin Luther King, Malcom X e Frantz Fanon estarão juntos, de mãos e cabeças não decepadas, para nos inspirar essas potências Zumbis em nós.

- Se entrega, Zumbi! Eu não me entrego não, só me entrego LIVRE, VIVO e com o belo nas mãos.

Copyright/left jorgemarciopereiradeandrade 2013/2014 (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet e outros meios de comunicação de massa. TODOS DIREITOS RESERVADOS 2025)

LEITURAS CRÍTICAS para reflexão e demolição de conceitos e preconceitos:

A IDÉIA DA RAÇA, Michael Banton, Edições 70, Lisboa, Portugal, 1977.

ZUMBI, Joel Rufino dos Santos, Editora Moderna, São Paulo, SP, 1985.

“A HORA DA EUGENIA” – Raça, gênero e nação na América Latina, Nancy Leys Stepan, Editora Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ, 2005.

Notícias citadas no texto:
NEGROS/INCLUSÃO NO TRABALHO - Relatório do DIEESE revela que mesmo trabalhando mais sempre ganham menos /Só escolaridade não garante presença de negros no mercado de trabalho, aponta Dieese https://infonoticiasdefnet.blogspot.com.br/2013/11/negrosinclusao-no-trabalho-relatorio-do.html


Mapa da escravidão (Lista suja do Trabalho Escravo no Brasil) https://cienciahoje.uol.com.br/blogues/bussola/2013/11/mapa-da-escravidao



Pesquisa mostra que raça é fator predominante na escolha de parceiros conjugais https://www.ebc.com.br/2012/10/pesquisa-mostra-que-raca-e-fator-predominante-na-escolha-de-parceiros-conjugais

Para quem só lê ou para fazer pesquisas na Internet –



LEI 10.639/2003 – (Para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira”) https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm

LEIAM TAMBÉM NO BLOG:

01 NEGRO + 01 DOWN + 01 POETA = 01 Dia para não esquecer de incluir https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/03/01-negro-01-down-01-poeta-01-dia-para.html 

NA NOITE GLOBAL TODOS OS SERES TORNAM-SE PARDOS QUAL É A SUA RAÇA? - Nada a declarar... 
https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2009/11/infoativo-defnet-n-4305-ano-13-2122-de.html

RACISMO, HOMOFOBIA, LOUCURA E NEGAÇÃO DAS DIFERENÇAS:as flores de Maio https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/05/racismo-homofobia-loucura-e-negacao-das.html

domingo, 22 de novembro de 2009

NA NOITE GLOBAL TODOS OS SERES TORNAM-SE PARDOS

imagem publicada de foto de FRANTZ FANON, como descrição para pessoas cegas  ou com deficiências visuais-  onde o psicanalista e psiquiatra martinicano está com a projeção de seu rosto duplicada em fundo preto e branco. Psicanalista e revolucionário defensor da descolonização dos inconscientes coletivos, que faz parte da história de libertação da Argélia, e deixou obras insuperáveis que são os referencias para os estudos pós-coloniais e diferentes campos do conhecimento...

NA NOITE GLOBAL TODOS OS SERES TORNAM-SE PARDOS

"(...) Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença. (...) Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar à santa fé católica, deve cuidar de sua salvação. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim." Carta de Pero Vaz de Caminha, 1/5/1500.

A Carta de inauguração textual desse novo território de 'gente' diferente, a partir do olhar eurocêntrico, lavrada pelo nosso primeiro missivista é uma revelação que todos podem questionar. 

Ela é datada, historiograficamente, mas a cito como reafirmação de uma questão ainda atual. O desejo inerente ao pensamento colonialista e dominador que atravessa todo discurso que fala em, 'tornar o Outro livre' ou a ele oferece alguma forma de redenção ou salvamento, ou de incluir os selvagens ao mundo civilizado. Pero Vaz de Caminha apenas traduziu um dos eixos centrais do modelo de colonização a que fomos, a Terra Brasilis, submetidos.

E um dia, logo após a morte de Zumbi, fez-se uma noite global, a Terra, Gaia, escureceu, quando todos os homens e mulheres, todos os seres humanos, ficaram pardos...

Escrevi há algum tempo um artigo, instigado por uma amiga, sobre a presença/ausência, nos textos sobre multiculturalismo, de um dos mais combativos psiquiatras e psicanalistas da des-colonização de nossos inconscientes coletivos: Frantz Fanon.

Para quem não o conhece passo algumas informações rápidas: Fanon nasceu preto e martinicano, portanto falando/aprendendo francês na Martinica, então colônia francesa, participou da II Guerra Mundial, fez Medicina na Faculdade de Medicina em Lyon, onde se formou em Psiquiatria, tendo a oportunidade de uma sólida formação em filosofia e literatura, passando por cursos de Merleau-Ponty e Jean Lacroix, convivendo com Lacan, fez incursões literárias em Hegel, Marx, Husserl, Heidegeer, Freud e Sartre. A este último coube o privilégio de prefaciar a obra que culmina com a época de sua morte, por leucemia, em 1961: Os Condenados da Terra.

Trago a memória de Fanon para nossos tempos, afetado que sou pelos seus textos, para uma compreensão do que tratamos como preconceito ligado à epiderme, ou outras originalidades, do Outro. Preconceito que nada mais é do que a tentativa de justificar o controle e a negação da Diferença, como nos explicou, em seu livro Pele Negra-Máscaras Brancas, este raro psicanalista negro: "-Negro sujo' ou simplesmente 'Olhe, um negro'. Vim ao mundo, preocupado em dar um sentido às coisas, querendo ser na criação do mundo e eis que me descubro objeto no meio de outros objetos..." (1).

Fanon em sua biografia deixou-nos também um exemplo da implicação com a vida e contra qualquer forma de opressão ou preconceito. Ele tornou-se um cidadão argelino, quando de sua vivência das atrocidades promovidas pelos franceses na luta de resistência pela independência da Argélia. Lá pode viver na pele a imposição de um regime colonialista, uma verdadeira escola de tortura e torturadores, que bestializava os afro-argelinos, mesmo que pertencentes à chamada África Branca, com a finalidade de justificar a dominação dos países africanos pelas potências europeias  Lá o modelo das Cruzadas era mantido também a ferro e fogo.

E se, na história oficial, nós os ìn-dios (sem deus) fomos 'descobertos' pelos europeus, a eles e sua Santa Fé deveríamos prestar obediência e servidão, ad infinitum, assim também funcionou a máquina de colonização no continente africano. Mas Fanon não fugiu à sua plural e humanitária formação. Ele se tornou um ativista da resistência argelina, reconhecendo, naquele momento histórico dos anos 60, que a violência tornara-se uma resistência, principalmente cultural, à opressão e à colonização. 

E por entrar de corpo e alma na guerra de libertação argelina sofreu diversos atentados e tentativas de assassinato, mas nunca desistiu do enfrentamento da divisão da sociedade em colonizados e colonizadores. Para ele o inconsciente de um antilhano negro é o mesmo de um europeu branco, como um psicanalista sempre soube que nossos inconscientes não tem cor de pele, muito menos o ideológico preconceito de raça...

DENTRO DO "GARRAFÃO MULTI-TRANS-INTERCULTURAL"

"Sou um homem e devo remontar ao passado do mundo... Todas as vezes que um homem fez triunfar a dignidade do espírito, todas as vezes em que um homem disse não a uma tentativa de escravização de seu semelhante, senti-me solidário com teu ato.." (1) F. Fanon

Aqui, segundo Fanon, não se está aprisionando o homem no passado, mas projetando-o para o futuro, pois quando não podemos mais respirar, por força e ação de qualquer forma de opressão ou despotismo, qualquer um nós ou muitos se revoltam. Mesmo que isso possa levar muito tempo.

 E, na atualidade, a cada dia, nos vemos mais e mais imersos em processos sutis de aprisionamentos, alguns deles, para brancos e negros, ou de outras epidermes coloridas, tomando nossos inconscientes, a exemplo dos nossos narcismos das pequenas diferenças. 

Aquele que nos distingue até entre os que identificamos como parte ou integrantes de nossa 'gang', 'tribo', 'comunidade do Orkut' (que foi extinta), 'membros da mesma confraria', 'parceiros do Facebook', 'inseridos em nossos grupelhos', 'fiéis da mesma igreja', 'idênticos em nossos bandos', 'identitários por nossas corporações', 'filiados a nossos clubes', 'fixados nos mesmos sermões, crenças ou dogmas', 'consumidores da mesmice', 'membros do mesmo cartão de fidelidade', 'usuários das mesmas drogas', 'vestindo a camisa do nosso time', ou do 'nosso uniforme', 'escolhidos de nossa elite', ou do 'nosso partido'..., pois para o poeta Carlos Drummond de Andrade: 

"(...) Contudo, o homem não é igual a nenhum outro 
Homem, bicho ou coisa.

Ninguém é igual a ninguém.

Todo ser humano é um “estranho ímpar.” (2)

Porém, apesar dessa constatação poética, estamos cada dia mais tendo de escrever sobre inclusão e o reconhecimento da Diferença do Outro, para além de nossa estranheza, atração ou repulsa pelos nossos semelhantes. Escrevi, no artigo citado: " Na noite global todos os homens são pardos" (2005), sobre o paradoxo de estarmos vivendo um processo em que nos movemos divididos, narcisística e individualizadamente, o qual chamamos de globalização. 

Para um tempo que prefiro chamar de Era do Acesso (Rifkin), onde, por exemplo emblemático temos a Internet, onde alguns 'tocam na minha Banda Larga' e maioria, do lado de fora, nem mesmo ouve os seus ruídos de informação, faço a proposta de um 'koan' (dilema Zen). 

Estaríamos, metaforicamente, vivendo como pequeninos gansos que, ao nascer, foram colocados dentro de uma grande garrafa: o 'garrafão multi-trans-intercultural', hoje denominado de Mundo Globalizado, Hipermidiatizado e Hipercapitalista. Então, a nós, apresenta-se a seguinte interrogação: "Há muito tempo um homem colocou um ganso no interior de uma garrafa. Ele cresceu tanto que de lá não pôde mais sair. Como poderá o homem retirá-lo da garrafa, sem quebrá-la nem ferir o animal?” (3)

Então, como mais uma provoc-ação e estimulo às nossas imaginações, que podem ser quase estagnadas, vamos refletir o seguinte:vários homens e mulheres, quando ainda infantes e incipientes, de diferentes hordas, tribos e grupos étnicos, linguísticos e culturais, fomos sendo colocados em um imenso garrafão, um “garrafão mult-trans-intercultural”, tal qual as redomas protetoras de filmes de ficção científica. Algum tempo depois, após diferentes movimentos e acomodações, após alguns séculos de processo dito civilizatório e controle de nossas pulsões e subjetividades, nos ficaram as seguintes interrogações: como permaneceremos neste garrafão? 

Qual será a saída para que possamos, tal como porcos espinhos, nos colocarmos próximos/afastados, incluindo/excluindo, aceitando/rejeitando as diferenças? 

Como lidar com esta inadiável inversão do temor de sermos tocados, pelo Outro, pelos Outros, esses ‘estranhos ímpares”, ainda mais depois que fomos regados com um 'molho crítico-filosófico' de Spinoza, Foucault, Fanon, Bauman ou Deleuze? Como poderíamos sair deste garrafão caso nossa convivência humano/animal nos tornassem insuportáveis ao nosso mais próximo vizinho? Como não cair na 'tentação' da homogeização de nossos afetos, ideias, sensações e comportamentos, a fim de nos libertar destes ‘aprisionamentos’?.

MAS COMO FAZER OMELETE, SEM QUEBRAR A CASCA DO OVO?

Por isso é que a nossa re-visão desnaturalizadora dos paradigmas torna-se urgente. Não podemos nos tornar a 'todos e todas' PARDOS. No período colonial os pardos eram os que se distinguiam dos negros, pois eram os 'nascidos em liberdade', filhos de alforriados. Porém, no alfabeto libertário de Fanon esta liberdade 'concedida' apenas seria o mote para uma boa anedota:
"Um dia , São Pedro vê chegar na porta do paraíso três homens, um Branco, um Pardo, um Negro. " - O que você deseja? pergunta ao Branco. " - Dinheiro . " - E você? pergunta ao Pardo. "- A Glória. "- Dirigindo-se ao Negro, este lhe responde, com um grande sorriso aberto. "- Eu vim trazer a mala destes senhores".(4)

Portanto, a nós brasileiros e brasileiras, que durante muito tempo negamos nossa negritude, mesmo carregando uma pesada mala sem alça colonialista, já estamos conseguindo, após indignação e midiatização, devolver aos ingleses o seu cargueiro cheio de seu próprio lixo, talvez possamos criar/inventar outras linhas de fuga ou outras formas de resistência ativa se, não caindo na armadilha atraente de um 'garrafão aconchegante e hiper saciador', tivermos a ousadia de quebrarmos as cascas de nossos próprios ovos de serpente.

Aos meus 'estranhos ímpares' um brinde à Frantz Fanon: reconhecer-se Homem, só, mortal, finito, transitório, sujeito, muitas e infinitas vezes a ser apenas um objeto diante do Outro e sua incompreensível alteridade/multiplicidade, e, com uma indispensável qualidade: o humor.

Com vocês deixo a próxima piada desnaturalizadora e demolidora de estereótipos e estigmas, mas peço que a re-contem sem a finalidade de naturalizar o preconceito, portanto não valem piadas sobre: negros, mulheres loiras de mini-saia, pessoas com deficiências intelectuais, cegos, surdos, anões, albinos, nossos queridos portugueses ou japoneses e judeus, homoeróticos, transexuais, índios, carecas, obesos, 'mulatos', ..., e, principalmente de loucos e psiquiatras. A não ser que sejam agora de "humor branco", o humor dito negro agora não é mais politicamente correto. Ou então um novo humor ao 'molho pardo'? que tal?

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
(1) e (4) Frantz Fanon - Pele Negra, Máscaras Brancas - Ed. Outra Gente/Fator, Rio de Janeiro, RJ, 1983.

(2) Carlos Drummond de Andrade – Igual-desigual – A Paixão Medida – José Olympio Ed., Rio de Janeiro, RJ, 1983.

(3) Daisetz Teitaro Suzuki Introdução ao Zen-Budismo, Ed. Civilização Brasileira, RJ, 1973, pág. 44.

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InfoAtivo DefNet Nº 4305 - Ano 13 - 21/22 de Novembro de 2009
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