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quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O SUICÍDIO, ADENTRANDO AO MAR E AO NÃO HÁ MAR...

Imagem publicada – a capa do filme Mar Adentro com o rosto do ator Javier Bardem, usando uma blusa de lã de gola alta, e com um leve sorriso nos lábios. Ele está interpretando o marinheiro Ramón Sampedro, no filme de Alejandro Almenábar. Ramón (Javier Bardem) é um tetraplégico que está preso a uma cama há trinta anos. A sua única janela para o mundo é a do seu quarto, perto do mar, mar em que tanto viajou. O mar onde teve o acidente que lhe roubou a juventude e a vida. Desde então que Ramón luta pelo direito a pôr termo à vida dignamente, luta pelo direito à eutanásia através de um suicídio assistido. Uma história verídica que nos instiga à reflexão sobre o viver e sobre o morrer, com dignidade.

Texto para os seres humanos que se cansam de esperar outro diálogo com a Senhora Vida... Outro encontro acolhedor... Outra saída para a Dor.

Em 2005, exatamente no dia 18 de fevereiro, me afetei e “assisti” um suicídio assistido. Não, não estava presente a este ato. Estive, para além da identificação projetiva, é vendo-o através do magnífico filme: Mar Adentro. Estive intensamente presente sim ao ver Ramón San Pedro sair voando pela janela, como seu desejo e sobrevoar, imaginariamente, até praias e um possível amor.

Ramón Sampedro é uma boa referência para este momento onde o tema do suicidar-se retorna às manchetes e à hipermidiatização. Estes dias o ator Robin Williams e seu suicídio, levou-nos à manifestações sobre o tema e o ato. Esse ato que nos obriga a pensar sobre a finitude do viver e/ou desejo dela. Um tema ao qual negamos a devida atenção e reflexão. Estaria eu e nós todos/todas pensando sobre o assunto sem o nosso ‘professor’ que nos estimulava para o Carpe Diem?

O assunto sempre me foi importante, e se tornou mais ainda quando conheci a vida e obra de Florbela Espanca. É dela uma das mais contundentes afirmações sobre quem escolhe morrer por suas convicções ou dores profundas. A poetisa que se suicidou aos 36 anos, quem sabe por profundo amor, nos disse: “Quem foi que um dia ousou lançar a um papel as letras ultrajantes da palavra covardia, essa suprema afronta, esse insultante escarro, à face dos que querem morrer!?...”. Ela também se despediu de nós, em 07 de dezembro de 1930, desejando repousar perto do oceano.

Ela nos diz também da ‘coragem desdenhosa’, da ‘altiva serenidade’, do ‘profundíssimo desprezo’, às ‘almas que partiram por querer’. E sabemos que qualquer morte nos assusta, surpreende e desgosta.

A Dona Morta que vive passeando em nossas varandas da morada do corpo, sempre fiel e presente, só entra em nossos mais íntimos sótãos ou cama se a convidarmos, insistentemente. Vivemos negando a sua convivência e coexistência com a Senhora Vida.

O espanhol Ramón ficou paraplégico ao mergulhar no mar. Era o dia de maré baixa. Ele passou então, aos 25 anos, a lutar pelo direito à própria morte. Enfrentou todas as instituições, pois depois de 30 anos utilizando-se de sua boca deixou-nos também poesia e indignação em seu livro Cartas do Inferno.

Somente 30 anos depois em 1993, com auxílio de amigos e amigas, conseguiu um suicídio assistido. O que ele acreditava como dignidade para o morrer era o protesto contra sua forma de viver, e o cineasta Alejandro Amenábar o imortalizou, através de Javier Bardem, com o cinema e para além deste.

Ao assistir o filme, lá em 2005, fui mais uma vez lançado ao angustiante tema bioético do direito à morte com dignidade. Propus-me, então, uma metáfora com o título do filme: adentrando no mar, Morto! Muitas vezes é possível que ao se matar o sujeito já se considere ou se sinta de modo fúnebre, já falecido. E esquecido...

Esta metáfora é porque creio que estamos vivendo, todos, na chamada modernidade líquida e aniquiladora, a viver em estados quase paralisados, um tempo de alta salinidade de desamor, com uma dose de estagnação afetiva. Estamos imersos no novo e global mundo Mar Morto. Sobrenadamos, boiamos e continuamos superficiais, inclusive sobre o suicídio.

Pior ainda é quando o banalizamos e o ridicularizamos temerosos, usando discursos fanáticos para apressadamente o conectarmos com um desapego à Vida. Não podemos reduzir esse ato de tanta ousadia ou desespero ao modelo sociológico de Durkeim, apenas à anomia. Precisamos ir além da psiquiatria, da psicologia ou da psicanálise. Precisamos encará-lo como uma questão de saúde e bioética.

O século XXI, assim como o que passou, provocou enormes buracos negros em nossas singularidades. Disse-me em 2005 e repito: estamos em um mar sem ondas, sem pedras ou areias no percurso, um mar onde não pudéssemos ou poderemos nos suicidar pelo afogamento, pois, como já disse, nele boiamos e persistimos superficiais eternamente.

A palavra, e não apenas o ato, ”suicídio” ainda continua um tabu, um dogma ou uma ameaça. Temos de direito e também o dever de ampliar nossas visões, ideias, convicções ou conhecimentos sobre o suicidar-se. Temos de ir além, buscar, além do coletivo, o que faz o sujeito buscar seu próprio assujeitamento à Dona Morte. Quais são os diálogos possíveis com a Senhora Vida que nos levariam a seu pré-conhecimento e, quiçá, novos afetos que não deixariam secar o desejo de viver em nós? Há o direito de sua versão eutanásica?

As estatísticas de ocorrência de suicídios no Brasil dizem ser uma média de 25 pessoas por dia, há, então, alguma outra causa mortis tão presente ao mesmo tempo em que tão invisível? Podemos dizer que o tema é mais grave do que o número de pessoas com chamados transtornos mentais?

Estas são as pessoas que estão, na maioria dos casos, em situação de vulneração e vulnerabilidade para as tentativas e para o suicídio. Entretanto, não devemos ter como principal causa apenas as depressões graves ou persistentes. Há outras situações que nos empurram para a varanda, para convidar a Dona Morte, como solução ou resposta, por exemplo, às desilusões em nossos amores e outros dissabores do viver com intensidade ou tensão.

Há ainda que discuti-lo quando a terminalidade do viver está no ápice do sofrimento e da dor, seja ela psíquica ou física. Os estados terminais, onde os cuidados paliativos não mais aliviam, podem nos tornar ainda mais próximos do que chamo da “visitante da varanda”.

O morrer e a morte não devem ter o mesmo significado, muito embora esteja transversalizados ou subjacentes, um ao outro. Compreendemos e aceitamos os testamentos vitais dos nossos moribundos? Os náufragos sem nenhuma tábua ou resto de seus navios, aqueles que onde não há mais o mar e nem o amar?

Não tenho estas respostas, como não acho que nenhum filósofo já as tenha como certeza, mesmo concordando com Albert Camus. Podemos nos afogar em imensos oceanos de debates sobre Thanatós, Eutanásia, Ortotanásia ou Distanásia. Só não podemos fugir da perspectiva e expectativa de que a Dona Morte ainda é o mais “democrático” de todos os acontecimentos, escapando, como areia no mar, de todas nossas explicações ou teorias.

Para alguns deixo a provoca-ação de vida e ideias de Deleuze, para quem nada há para interpretar ou compreender, mas sim para experimentar, intensamente viver, deixando-se no “mar à deriva”, novos argonautas Pessoanos(como Álvaro de Campos) que se indagam: “Se queres te matar, porque não te queres matar?”.

Então vejamos que ‘Pontes’ para o futuro estamos construindo para os que se suicidam ou tentam morrer. Vejamos nossas multiplicidades, bem como as singularidades. Aquelas que o Mar Adentro pode provocar diferente e multiculturalmente, pois até o Gilles também escolheu se despedir de nós, após lenta e sofrida escalada de sua doença e sofrimento, assim como o fez Freud, que pediu ao seu médico, Max Schur, um único e último alívio. Ambos podem ser tomados como suicídio, os meios e métodos é que foram diferentes: um solitário e o outro assistido.

O SUICÍDIO NÃO É UM FIM,NEM PRECISARIA SER, SÓ QUANDO NEGADO, INVISIBILIZADO, NATURALIZADO.

Copyright/left jorgemarciopereiradeandrade 2014/2015 (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet e outros meios de comunicação para as massas, TODOS OS DIREITOS RESERVADOS 2025 ,,,)

Onde procurar ajuda quando o suicídio passar pela cabeça e pelo coração

Sociedade Amigos da Vida (Campinas e região) - https://www.sociedadeamigosdavida.org.br/estatisticas.htm

Indicações de leituras ligadas ao texto

Cartas do Inferno – Ramón Sampedro , Editora Planeta, São Paulo, SP, 2005.

Diário do Último Ano – Florbela Espanca, Ed. Publicações D. Quixote, Lisboa, Portugal, 1985.

Manual de Prevenção de Suicídio – dirigido a profissionais das equipes de Saúde Mental

Suicídio - Os Desafios para a Psicologia – CFP – Conselho Federal de Psicologia – (pdf) https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Suicidio-FINAL-revisao61.pdf

O Suicídio (estudo sociológico) – Emile Durkheim – versão em PDF -  https://minhateca.com.br/atilamunizpa/Documentos/DURKHEIM+Emile+O+Su*c3*adcidio,3015822.pdf

Suicídio (ver fatores predisponentes e alguns mitos) https://oficinadepsicologia.com/depressao/suicidio

Indicações de filme para reflexão e discussão:
Mar Adentro, Alejando Amenábar, Espanha, 2005 (DVD) – dublado: https://www.youtube.com/watch?v=9boX5jeckrA
A Ponte, Eric Steel, Documentário,  Eua, Imagem Filmes, 2006 (legendado): https://www.youtube.com/watch?v=OCfhdVArDnI
Solitário Anônimo, Debora Diniz,  Documentário, 2007 (DVD)

Sobre os citados no texto –

Leiam também no blog –

O SUICÍDIO E A DOR - https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2015/09/o-suicidio-e-dor.html

A DONA MORTE É GLOBAL, MAS NOSSO TESTAMENTO PODE SER VITAL. https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/09/a-dona-morte-e-global-mas-nosso.html




OS NOSSOS CÃES desCOLORIDOS - Nossas "depressões" e o Dia Mundial da Saúde Mental https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/10/os-nossos-caes-descoloridos-nossas.html

No INFONOTÍCIAS DEFNET:
BIOÉTICA/SUICÍDIO - Na Inglaterra está em discussão o suicídio assistido como direito - Luta de britânicos por suicídio assistido vai a Parlamento https://infonoticiasdefnet.blogspot.com.br/2014/06/bioeticasuicidio-na-inglaterra-esta-em.html 

terça-feira, 4 de setembro de 2012

A DONA MORTE É GLOBAL, MAS NOSSO TESTAMENTO PODE SER VITAL.


Imagem publicada – Uma foto colorida de um Globo da Morte, uma das principais atrações dentro das lonas de circos no Brasil, com uma lona de cores vivas ao fundo (vermelho, azul e amarelo). Nessa esfera metálica que copia a forma de nosso planeta Terra os artistas circenses, em motocicletas, executavam e podem exercitar o espetáculo do risco de viver dentro da acrobática e imprevisível Vida. Nela andam em alta velocidade, cruzam os limites, rompem as redes de proteção dos trapezistas, correm, como diria Nietzsche, na tênue corda bamba entre o homem e o além-do-humano. Sem temor da Dona Morte. A todos estes artistas, em especial a um que conheci muito de perto, envio minha reverência. O seu desafio é uma metáfora do que ainda estamos aprendendo sobre nossas artes de viver e nossas pulsões. Inclusive aquelas que nos levam a morrer. (foto com direitos de Dalton Soares de Araujo - http://www.baixaki.com.br/papel-de-parede/22263-globo-da-morte.htm)

In memoriam do VOVÔ LEÃO (pois era também domador de leões) Barry Charles Silva.


Atravessado e tranversalizado por um “globo da morte” tenho reminiscências do meu avô. O mesmo que me ensinou a gostar do Cinema também me apresentou a interrogação do porque os motociclistas não caem quando chegam ao seu ponto extremo, o seu polo Norte. Interrogação para qual demorei em ter resposta. Fora das lonas dos circos.

Ela me veio quando este velho guerreiro, Seu Filomeno, se tornou minha primeira vivência sobre o morrer em paz. Ele sempre me parecia estar em luta com a Vida. E, na sua pluralidade e singularidade de ser, amava o desafio aos limites. Ele queria morrer em sua própria casa, sobre seu próprio leito. A sua memória é de um guerreiro vital. 

No tempo de Péricles, em sua Oração Fúnebre, feita no inverno de 431-430 AC, os guerreiros gregos desejavam morrer com dignidade. Desejavam com intensidade sua morte em combate. Era o conceito de Bela Morte, ou seja, khalós Thanatós. Nada era melhor do que ser um combatente livre, seja de Esparta ou dos “bárbaros”. Deles se diferiam por escolher onde, quando, como e com quem morrer.

Hoje, na Grécia que teleassistimos, o que será que restou dessas escolhas do morrer? A guerra lá é agora dos euros e das dracmas? Ou seja, apenas as moedas é que determinam a forma de viver e morrer? A vida, com o horror econômico imperando, não têm se tornado tão mortal quanto na Síria, tão próximas? A possível diferença será o tempo da tortura e das bombas na criação de pilhas de Vidas Nuas?

Andei, refleti e tive de conviver mais uma vez, recentemente, com a Dona Morte. Em um Belo Horizonte, quente, seco e quase árido, tive de levar para seus braços mais um membro da grande família dos meus. Para lá levei meu sogro que foi atropelado pela Vida, mesmo que tenha sobrevivido, na sua juventude, a um grave acidente dentro de um “globo da morte” em seu passado circense. 

Voltava ao meu solo, minha terra, minha gaia geradora. Porém vivia mais essa perda, essa ausência presente. E, lamentavelmente, nossos mortos são diferentes do que almejavam os gregos para seus cemitérios com a sombra de pinheiros. Hoje os chamados campos de repouso dos guerreiros têm de ser até vigiados por guardas armados. Os cemitérios não são mais campos Elíseos da paz... Nem mesmo do silêncio.

Tenho, portanto, novamente motivos e emotividade para lhe escrever Dona Morte. A digníssima e vetusta senhora que nos acompanha em nossos milímetros de passadas, mesmo que claudicantes. Eis que não nos poupa de suas surpresas e não nos dá um tempo prévio para nossos lutos. 

Ela vem como um trator, um caminhão, um tanque, um ônibus (como aquele que me abalroou dentro de outro) e, como dizia Adoniran, nos “pincha no chão”. N os atropela, ataca de surpresa, invade nossas couraças, derruba todas as nossas defesas inconscientes e inconsistentes.

Esta semana foi decretada pelo Conselho Federal de Medicina a retomada de nosso direito de escolha da maneira que queremos morrer. E sua resolução gerou de imediato a reação de alguns conservadores fundamentalistas e outros religiosos.

Porém o que o CFM, com a Resolução 1995, afirmou foi à saída do modelo distanásico, ou seja, a Distanásia, que promove, como já escrevi, apenas um exercício esgrimista e duelista da Medicina e da Biotecnologia com os braços mais fortes, imprevisíveis e invencíveis que a Senhora Dona Morte sempre possuiu e possuirá.

Não foi uma decisão sobre a Eutanásia, que Jack Kervokian aplicava e por ela foi punido nos EUA, mas sim uma afirmação de autonomia, beneficência e respeito à vontade dos “pacientes terminais”, os que são colocados em situação de ausência total de possibilidades do que chamamos de cura. São os que são mantidos vivos através de meios artificiais, como os de longa permanência em coma e com vários tubos, aparelhos e biotecnologias em Utis.

O que se afirmou, a meu ver, foi a concretização de uma afirmação da morte com dignidade. Aquela que desejam os jovens guerreiros gregos e seus mais velhos filósofos. A questão, portanto, não é da modernidade, é um ponto mais profundo em cada um de nós e na humanidade. É nossa “crença” na imortalidade.

Colocamo-nos ainda muito mais próximos do Olimpo, do Éden e do Paraíso, mesmo que não estejamos pendendo inteiramente para o lado dos anjos. Desejamos sempre que a Mocinha que chamamos Vida possa lubridiar, enganar e vencer o seu jogo amoroso e freudiano com a Dona Morte, essa sim já plena de sua própria imortalidade.

Somos mortais. Vi novamente o quanto precisamos aprender sobre Thanatos. Era esse o nome do local de despedida do corpo presente de meu sogro. Lá tive muito mais tempo para refletir sobre a minha, a sua e a nossa mortalidade. A presença de uma dor visível nos prantos e palavras, que serão sempre importantes, não diminuía a sensação de outra dor: a psíquica. Fomos, como ele, pela ação global derrubados, de nossa motocicleta, pelo o que nós é mais mortal: a VIDA.

Cara, e custosa Senhora Dona Morte, lá tive muito tempo novamente para refletir sobre o meu, o seu e o nosso Testamento Vital. Já havia acompanhado e lido muito sobre o tema. Já havia escrito sobre o marinheiro espanhol, tetraplégico, Ramón Sanpedro, tornado um exemplo do desejo do “suicídio assistido” e imortalizado pelo filme Mar Adentro.

Ele em suas Cartas do Inferno lutou, após se tornar tetraplégico, e escrever com uma “pena” presa a sua boca, contra o Estado, a Igreja e muitos outros na Espanha. Durante os 29 anos após seu mergulho que o tornou uma pessoa com deficiência pensou e conviveu com a Dona Morte em seu leito e imobilidade. O que sempre desejou foi concretizado a partir de uma assistência que, em 1998, lhe foi prestada “anonimamente” pelos que o cercavam, ao ingerir por um canudo uma solução de cianeto. O seu livro e o filme talvez possam ser considerados um testamento.

O que então faz com que nós, mortais, imanentemente terminais, relutemos, ética e bioéticamente diante dessa questão do morrer com dignidade? A autonomia é um risco para nossa condição de seres sociais e coletivos? A autodeterminação é um desejo absoluto que deverá ser respeitado pelos que nos pranteiam? Os que nos pranteiam também são e serão mortais?

Interrogações que somente o poeta Fernando Pessoa me ajudou a responder com seu poema Lisbon Revisited, na heteronímia de Álvaro de Campos, ao nos interrogar: “Se te queres matar, porque não te queres matar?”, pois para ele quem sabe nos matando nos venhamos a nos conhecer “verdadeiramente”.

Assistam todos os filmes, todas as peças de teatro, pesquisem todos os livros, busquem todos os documentos, ainda assim teremos de buscar na Poesia do viver a única e possível solução parcial para nosso morrer. Uma possível centelha no Caos. Uma afirmação de nossos direitos humanos diante do mundo líquido que produzimos.

Por estas impossíveis respostas à singularidade de como cada um morre, assim como vive, é que deveríamos apoiar essa, embora tardia, afirmação do sujeito e da pessoa. O chamado Testamento Vital já foi motivo de debate e legalização há muitos anos em outros países. 

O que é então essa nova posição do CFM? Segundo matéria publicada: “Os procedimentos a serem dispensados deverão ser discriminados no testamento vital, como por exemplo o uso de respirador artificial (ventilação mecânica), tratamentos com remédios, cirurgias dolorosas e extenuantes ou mesmo a reanimação em casos de parada cardiorrespiratória. Esta decisão deve ser manifestada em conversa com o médico, que registrará no prontuário do seu paciente. Não é necessário haver testemunhas e o testamento só poderá ser alterado por quem o fez. O interessado pode ainda procurar um cartório e eleger representante legal para garantir o cumprimento do seu desejo.”

O primeiro a solicitar esse “direito” da escolha sobre seu morrer foi um advogado de Chicago, Luis Kutner, nos EUA em 1967. Ele redigiu um documento que expressava o desejo de um cidadão recusar tratamento, caso tivesse uma doença terminal. Portanto, já era tempo de podermos decidir sobre nosso próprio corpo e sua condição mortal e frágil diante das diferentes Medicinas, principalmente as desumanizadas do hipercapitalismo.

Entre o viver intensamente, e o viver-morrer tensamente, qual será a nossa escolha vital? Qual será o Testamento que ando e continuamos escrevendo? O que nossas mãos e mentes têm feito com as árvores não plantadas, os desertos que cultivamos, as tristezas que podemos semear, as injustiças que não combatemos, as fomes que ignoramos, as doenças e sofrimentos que negligenciamos, os estragos desamorosos que naturalizamos, e, principalmente, a banalização, antiecosófica, do matar pela guerra e pela proliferação da miséria? A quem estamos matando, em princípio, quando nos permitimos à autodestruição de nossa Terra?

Para minhas filhas, para nossos filhos/filhas da Gaia, é que, conscientemente e livre, desejo deixar, lavrado e registrado, quando não mais suportar ou resistir aos teus abraços sufocantes, Dona Morte, também meu Testamento Vital.

Dona Morte espero ter a chance, se não for também atropelado pela Vida Mocinha no Globo da Vida, de ainda registrar um Testamento. E nele, não me condenem apressadamente, estarei como diz Pessoa, perdendo meu “amor gorduroso”, meu falso apego, minha VONTADE, POTÊNCIA ZUMBI, de re-existir ao que chamamos de fim. OU SERÁ APENAS A FINALIDADE? OU NÃO TEMOS TODOS E TODAS, PRAZO DE VALIDADE?

Como Aquiles, no cerco a Tróia, não podemos ter ao menos uma chance de proteger nossos calcanhares? A ele, os troianos, não permitiram a Bela Morte. O seu corpo foi destroçado, arrastado e mutilado. Portanto, mesmo os semideuses ou os invulneráveis podem ser feridos.

NÃO HÁ CONSOLO NA LUTA, MUITO EMBORA TENHAMOS SEMPRE QUE APRENDER, REAPRENDER COM NOSSOS LUTOS. E COM AS NOSSAS PEQUENAS E INTOCÁVEIS MORTES COTIDIANAS.

SOMOS APENAS HUMANOS, CARA E INEVITÁVEL SENHORA, DEMASIADAMENTE HUMANOS.
E a minha filha, Isadora, também teve seu primeiro encontro, demasiadamente forte e triste, com a morte inesperada do avô que andava, como homem circense, ao cruzar outros limites nesse nosso globo, chamado de terrestre.


Copyright/left – jorgemarciopereiradeandrade (favor citar o Autor e as fontes em republicações livres pela Internet e outros meios de comunicação de massa TODOS DIREITOS RESERVADOS 2025)

Notícias e fontes na Internet –

Pacientes poderão registrar em prontuário a quais procedimentos querem ser submetidos no fim da vida https://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=23197:pacientes-poderao-registrar-em-prontuario-a-quais-procedimentos-querem-ser-submetidos-no-fim-da-vida&catid=3

Testamento vital pode ser feito mesmo por pessoas saudáveis https://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI6123975-EI306,00-Testamento+vital+pode+ser+feito+mesmo+por+pessoas+saudaveis.html

Maioria das religiões apoia a ortotanásia
https://www.band.com.br/noticias/cidades/noticia/?id=100000530383

Você quer ser pessoa ou paciente?
https://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/09/voce-quer-ser-pessoa-ou-paciente.html

Porque a motocicleta não cai quando está no alto do globo da morte https://www.deducoeslogicas.com/forca_centrifuga/globo_morte.html

INDICAÇÕES PARA LEITURA -
CARTAS DO INFERNO
– Ramón Sampedro , Editora Planeta Brasil, 2005. https://www.editoraplaneta.com.br/descripcion_libro/1690


POESIA – FERNANDO PESSOA (ÀLVARO DE CAMPOS) – Lisbon Revisited (1926) https://pt.scribd.com/doc/64737980/93/Se-te-Queres

FILME CITADO – MAR ADENTRO – Direção Alejamdro Amenábar, Espanha, 2005. https://portaldecinema.com.br/Filmes/mar_adentro.htm

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CARTAS deVIDAs à DONA MORTE
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