terça-feira, 4 de setembro de 2012

A DONA MORTE É GLOBAL, MAS NOSSO TESTAMENTO PODE SER VITAL.


Imagem publicada – Uma foto colorida de um Globo da Morte, uma das principais atrações dentro das lonas de circos no Brasil, com uma lona de cores vivas ao fundo (vermelho, azul e amarelo). Nessa esfera metálica que copia a forma de nosso planeta Terra os artistas circenses, em motocicletas, executavam e podem exercitar o espetáculo do risco de viver dentro da acrobática e imprevisível Vida. Nela andam em alta velocidade, cruzam os limites, rompem as redes de proteção dos trapezistas, correm, como diria Nietzsche, na tênue corda bamba entre o homem e o além-do-humano. Sem temor da Dona Morte. A todos estes artistas, em especial a um que conheci muito de perto, envio minha reverência. O seu desafio é uma metáfora do que ainda estamos aprendendo sobre nossas artes de viver e nossas pulsões. Inclusive aquelas que nos levam a morrer. (foto com direitos de Dalton Soares de Araujo - http://www.baixaki.com.br/papel-de-parede/22263-globo-da-morte.htm)

In memoriam do VOVÔ LEÃO (pois era também domador de leões) Barry Charles Silva.


Atravessado e tranversalizado por um “globo da morte” tenho reminiscências do meu avô. O mesmo que me ensinou a gostar do Cinema também me apresentou a interrogação do porque os motociclistas não caem quando chegam ao seu ponto extremo, o seu polo Norte. Interrogação para qual demorei em ter resposta. Fora das lonas dos circos.

Ela me veio quando este velho guerreiro, Seu Filomeno, se tornou minha primeira vivência sobre o morrer em paz. Ele sempre me parecia estar em luta com a Vida. E, na sua pluralidade e singularidade de ser, amava o desafio aos limites. Ele queria morrer em sua própria casa, sobre seu próprio leito. A sua memória é de um guerreiro vital. 

No tempo de Péricles, em sua Oração Fúnebre, feita no inverno de 431-430 AC, os guerreiros gregos desejavam morrer com dignidade. Desejavam com intensidade sua morte em combate. Era o conceito de Bela Morte, ou seja, khalós Thanatós. Nada era melhor do que ser um combatente livre, seja de Esparta ou dos “bárbaros”. Deles se diferiam por escolher onde, quando, como e com quem morrer.

Hoje, na Grécia que teleassistimos, o que será que restou dessas escolhas do morrer? A guerra lá é agora dos euros e das dracmas? Ou seja, apenas as moedas é que determinam a forma de viver e morrer? A vida, com o horror econômico imperando, não têm se tornado tão mortal quanto na Síria, tão próximas? A possível diferença será o tempo da tortura e das bombas na criação de pilhas de Vidas Nuas?

Andei, refleti e tive de conviver mais uma vez, recentemente, com a Dona Morte. Em um Belo Horizonte, quente, seco e quase árido, tive de levar para seus braços mais um membro da grande família dos meus. Para lá levei meu sogro que foi atropelado pela Vida, mesmo que tenha sobrevivido, na sua juventude, a um grave acidente dentro de um “globo da morte” em seu passado circense. 

Voltava ao meu solo, minha terra, minha gaia geradora. Porém vivia mais essa perda, essa ausência presente. E, lamentavelmente, nossos mortos são diferentes do que almejavam os gregos para seus cemitérios com a sombra de pinheiros. Hoje os chamados campos de repouso dos guerreiros têm de ser até vigiados por guardas armados. Os cemitérios não são mais campos Elíseos da paz... Nem mesmo do silêncio.

Tenho, portanto, novamente motivos e emotividade para lhe escrever Dona Morte. A digníssima e vetusta senhora que nos acompanha em nossos milímetros de passadas, mesmo que claudicantes. Eis que não nos poupa de suas surpresas e não nos dá um tempo prévio para nossos lutos. 

Ela vem como um trator, um caminhão, um tanque, um ônibus (como aquele que me abalroou dentro de outro) e, como dizia Adoniran, nos “pincha no chão”. N os atropela, ataca de surpresa, invade nossas couraças, derruba todas as nossas defesas inconscientes e inconsistentes.

Esta semana foi decretada pelo Conselho Federal de Medicina a retomada de nosso direito de escolha da maneira que queremos morrer. E sua resolução gerou de imediato a reação de alguns conservadores fundamentalistas e outros religiosos.

Porém o que o CFM, com a Resolução 1995, afirmou foi à saída do modelo distanásico, ou seja, a Distanásia, que promove, como já escrevi, apenas um exercício esgrimista e duelista da Medicina e da Biotecnologia com os braços mais fortes, imprevisíveis e invencíveis que a Senhora Dona Morte sempre possuiu e possuirá.

Não foi uma decisão sobre a Eutanásia, que Jack Kervokian aplicava e por ela foi punido nos EUA, mas sim uma afirmação de autonomia, beneficência e respeito à vontade dos “pacientes terminais”, os que são colocados em situação de ausência total de possibilidades do que chamamos de cura. São os que são mantidos vivos através de meios artificiais, como os de longa permanência em coma e com vários tubos, aparelhos e biotecnologias em Utis.

O que se afirmou, a meu ver, foi a concretização de uma afirmação da morte com dignidade. Aquela que desejam os jovens guerreiros gregos e seus mais velhos filósofos. A questão, portanto, não é da modernidade, é um ponto mais profundo em cada um de nós e na humanidade. É nossa “crença” na imortalidade.

Colocamo-nos ainda muito mais próximos do Olimpo, do Éden e do Paraíso, mesmo que não estejamos pendendo inteiramente para o lado dos anjos. Desejamos sempre que a Mocinha que chamamos Vida possa lubridiar, enganar e vencer o seu jogo amoroso e freudiano com a Dona Morte, essa sim já plena de sua própria imortalidade.

Somos mortais. Vi novamente o quanto precisamos aprender sobre Thanatos. Era esse o nome do local de despedida do corpo presente de meu sogro. Lá tive muito mais tempo para refletir sobre a minha, a sua e a nossa mortalidade. A presença de uma dor visível nos prantos e palavras, que serão sempre importantes, não diminuía a sensação de outra dor: a psíquica. Fomos, como ele, pela ação global derrubados, de nossa motocicleta, pelo o que nós é mais mortal: a VIDA.

Cara, e custosa Senhora Dona Morte, lá tive muito tempo novamente para refletir sobre o meu, o seu e o nosso Testamento Vital. Já havia acompanhado e lido muito sobre o tema. Já havia escrito sobre o marinheiro espanhol, tetraplégico, Ramón Sanpedro, tornado um exemplo do desejo do “suicídio assistido” e imortalizado pelo filme Mar Adentro.

Ele em suas Cartas do Inferno lutou, após se tornar tetraplégico, e escrever com uma “pena” presa a sua boca, contra o Estado, a Igreja e muitos outros na Espanha. Durante os 29 anos após seu mergulho que o tornou uma pessoa com deficiência pensou e conviveu com a Dona Morte em seu leito e imobilidade. O que sempre desejou foi concretizado a partir de uma assistência que, em 1998, lhe foi prestada “anonimamente” pelos que o cercavam, ao ingerir por um canudo uma solução de cianeto. O seu livro e o filme talvez possam ser considerados um testamento.

O que então faz com que nós, mortais, imanentemente terminais, relutemos, ética e bioéticamente diante dessa questão do morrer com dignidade? A autonomia é um risco para nossa condição de seres sociais e coletivos? A autodeterminação é um desejo absoluto que deverá ser respeitado pelos que nos pranteiam? Os que nos pranteiam também são e serão mortais?

Interrogações que somente o poeta Fernando Pessoa me ajudou a responder com seu poema Lisbon Revisited, na heteronímia de Álvaro de Campos, ao nos interrogar: “Se te queres matar, porque não te queres matar?”, pois para ele quem sabe nos matando nos venhamos a nos conhecer “verdadeiramente”.

Assistam todos os filmes, todas as peças de teatro, pesquisem todos os livros, busquem todos os documentos, ainda assim teremos de buscar na Poesia do viver a única e possível solução parcial para nosso morrer. Uma possível centelha no Caos. Uma afirmação de nossos direitos humanos diante do mundo líquido que produzimos.

Por estas impossíveis respostas à singularidade de como cada um morre, assim como vive, é que deveríamos apoiar essa, embora tardia, afirmação do sujeito e da pessoa. O chamado Testamento Vital já foi motivo de debate e legalização há muitos anos em outros países. 

O que é então essa nova posição do CFM? Segundo matéria publicada: “Os procedimentos a serem dispensados deverão ser discriminados no testamento vital, como por exemplo o uso de respirador artificial (ventilação mecânica), tratamentos com remédios, cirurgias dolorosas e extenuantes ou mesmo a reanimação em casos de parada cardiorrespiratória. Esta decisão deve ser manifestada em conversa com o médico, que registrará no prontuário do seu paciente. Não é necessário haver testemunhas e o testamento só poderá ser alterado por quem o fez. O interessado pode ainda procurar um cartório e eleger representante legal para garantir o cumprimento do seu desejo.”

O primeiro a solicitar esse “direito” da escolha sobre seu morrer foi um advogado de Chicago, Luis Kutner, nos EUA em 1967. Ele redigiu um documento que expressava o desejo de um cidadão recusar tratamento, caso tivesse uma doença terminal. Portanto, já era tempo de podermos decidir sobre nosso próprio corpo e sua condição mortal e frágil diante das diferentes Medicinas, principalmente as desumanizadas do hipercapitalismo.

Entre o viver intensamente, e o viver-morrer tensamente, qual será a nossa escolha vital? Qual será o Testamento que ando e continuamos escrevendo? O que nossas mãos e mentes têm feito com as árvores não plantadas, os desertos que cultivamos, as tristezas que podemos semear, as injustiças que não combatemos, as fomes que ignoramos, as doenças e sofrimentos que negligenciamos, os estragos desamorosos que naturalizamos, e, principalmente, a banalização, antiecosófica, do matar pela guerra e pela proliferação da miséria? A quem estamos matando, em princípio, quando nos permitimos à autodestruição de nossa Terra?

Para minhas filhas, para nossos filhos/filhas da Gaia, é que, conscientemente e livre, desejo deixar, lavrado e registrado, quando não mais suportar ou resistir aos teus abraços sufocantes, Dona Morte, também meu Testamento Vital.

Dona Morte espero ter a chance, se não for também atropelado pela Vida Mocinha no Globo da Vida, de ainda registrar um Testamento. E nele, não me condenem apressadamente, estarei como diz Pessoa, perdendo meu “amor gorduroso”, meu falso apego, minha VONTADE, POTÊNCIA ZUMBI, de re-existir ao que chamamos de fim. OU SERÁ APENAS A FINALIDADE? OU NÃO TEMOS TODOS E TODAS, PRAZO DE VALIDADE?

Como Aquiles, no cerco a Tróia, não podemos ter ao menos uma chance de proteger nossos calcanhares? A ele, os troianos, não permitiram a Bela Morte. O seu corpo foi destroçado, arrastado e mutilado. Portanto, mesmo os semideuses ou os invulneráveis podem ser feridos.

NÃO HÁ CONSOLO NA LUTA, MUITO EMBORA TENHAMOS SEMPRE QUE APRENDER, REAPRENDER COM NOSSOS LUTOS. E COM AS NOSSAS PEQUENAS E INTOCÁVEIS MORTES COTIDIANAS.

SOMOS APENAS HUMANOS, CARA E INEVITÁVEL SENHORA, DEMASIADAMENTE HUMANOS.
E a minha filha, Isadora, também teve seu primeiro encontro, demasiadamente forte e triste, com a morte inesperada do avô que andava, como homem circense, ao cruzar outros limites nesse nosso globo, chamado de terrestre.


Copyright/left – jorgemarciopereiradeandrade (favor citar o Autor e as fontes em republicações livres pela Internet e outros meios de comunicação de massa)

Notícias e fontes na Internet –

Pacientes poderão registrar em prontuário a quais procedimentos querem ser submetidos no fim da vida http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=23197:pacientes-poderao-registrar-em-prontuario-a-quais-procedimentos-querem-ser-submetidos-no-fim-da-vida&catid=3

Testamento vital pode ser feito mesmo por pessoas saudáveis http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI6123975-EI306,00-Testamento+vital+pode+ser+feito+mesmo+por+pessoas+saudaveis.html

Maioria das religiões apoia a ortotanásia
http://www.band.com.br/noticias/cidades/noticia/?id=100000530383

Você quer ser pessoa ou paciente?
http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/09/voce-quer-ser-pessoa-ou-paciente.html

Porque a motocicleta não cai quando está no alto do globo da morte http://www.deducoeslogicas.com/forca_centrifuga/globo_morte.html

INDICAÇÕES PARA LEITURA -
CARTAS DO INFERNO
– Ramón Sampedro , Editora Planeta Brasil, 2005. http://www.editoraplaneta.com.br/descripcion_libro/1690


POESIA – FERNANDO PESSOA (ÀLVARO DE CAMPOS) – Lisbon Revisited (1926) http://pt.scribd.com/doc/64737980/93/Se-te-Queres

FILME CITADO – MAR ADENTRO – Direção Alejamdro Amenábar, Espanha, 2005. http://portaldecinema.com.br/Filmes/mar_adentro.htm

LEIA TAMBÉM NO BLOG

CARTAS deVIDAs à DONA MORTE
http://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/08/imagem-publicada-foto-do-ator-al-pacino.html

POR UMA MEDICINA QUE ENVELHEÇA COM DIGNIDADE
http://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/07/por-uma-medicina-que-envelheca-com.html

EU, VOCÊ, NÓS E O CÂNCER.
 http://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/07/eu-voce-nos-e-o-cancer.html

O SUICÍDIO, ADENTRANDO AO MAR E AO NÃO HÁ MAR... - http://infoativodefnet.blogspot.com.br/2014/08/o-suicidio-adentrando-ao-mar-e-ao-nao.html 

NOSSAS IN-DEPENDÊNCIAS da DONA MORTE em 11/09/11 http://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/09/nossas-in-dependencias-da-dona-morte-em.html

NENHUMA DOR A MENOS OU A MAIS
http://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/10/nenhuma-dor-menos-ou-mais.html

A ARTE DE RE-VIVER - Quando morrem o Teatro, o Carnaval e a Música? Nunca... ( E O CIRCO TAMBÉM) http://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/12/arte-de-re-viver-quando-morrem-o-teatro.html