domingo, 19 de agosto de 2012

AOS MEUS “COLEGAS”, INTOCÁVEIS E INDEPENDENTES – O Cinema reverencia as Deficiências.


Imagem publicada – cena do filme Les Intouchables (Grande Prémio Sakura do Festival de Cinema de Tóquio) onde um homem negro, Driss (o ator Omar Sy, o primeiro ator negro a receber o prêmio César, o Oscar do Cinema Francês, de Melhor Ator), empurra outro homem em uma cadeira de rodas motorizada, que está em “alta velocidade”. Esse homem é Philippe (o ator François Cluzet) um refinado multimilionário tetraplégico francês, que precisa de um auxiliar de enfermagem para parte dos cuidados que seu corpo exige. O contratado é Driss, um senegalês que vive nos subúrbios, com diversos dramas familiares, mas também possui um refinado humor, que poderíamos incorretamente chamar de “humor de um negro”, mas que muda radicalmente a vida paralisada, sem compaixão ou pena, do incorretamente chamado de “paralítico homem branco”. É de suas transversalidades afetivas que nascem algumas propostas que podemos tentar refletir sobre nossas próprias “deficiências” no viver e no amar À VIDA E AO(S) OUTRO(S).

Hoje à noite consegui, com intensidade e desejo, ir, novamente, ao cinema. Fui ver os Intocáveis (Les Intouchables), dentro do Festival de Cinema Francês Varilux 2012. E, mais uma vez, pude constatar que o melhor remédio para as minhas dores é a emoção e o humor.

O filme baseia-se na história real de Philippe Pozzo di Borgo, um milionário que ficou tetraplégico após um acidente com um parapente (paraquedas dirigível). Além da imobilidade física ele vivenciou, na vida real, a convivência com suas dores e seus fantasmas afetivo-amorosos. O que para mim é no mínimo tocante, profundamente.

Ao retornar para a minha casa, após e para além de minhas lágrimas diante de um homem tetraplégico e seu amigo negro, tive a confirmação de minha certeza: o filme Colegas é o melhor filme no 40º Festival de Cinema de Gramado. Exultei, precisava escrever uma nova “carta”.

Já pensava nessa premiação como um passo adiante para que o cinema nacional se tornasse, mais uma vez, um promissor e ativo demolidor de preconceitos. O filme que vi hoje sobre a possibilidade de ressignificarmos a Vida diante de uma deficiência também se manifesta no enredo de Colegas.

O sonho compartilhado é a única forma de exercício vivo da liberdade. Quando o personagem Driss,revela seus medos diante do voo de avião ou de um parapente, que para o seu milionário “patrão” Philippe (François Clouzet) fica claro que no mais íntimo de que em todos/todas nós há um grande temor: podemos até morrer, ou ficarmos paralisados, quando damos asas à nossas imaginações.

Assistam com a mesma intensidade afetiva o nosso premiado “Colegas”. Este filme de Marcelo Galvão faz por merecer seus prêmios: Melhor Filme, Melhor Direção de Arte e Prêmio especial do Júri, este último dado ao trio de atores com síndrome de Down Ariel Goldenberg, Breno Viola e Rita Pokk. E que novembro esteja mais perto do que longe...

Dos três só conheço pessoalmente o Breno. E posso lhes assegurar é um grande ator. Um jovem de bem com a vida, principalmente por sua garra. O que já demonstrou, como judoca, no tatame. Sua veemência deve ser a mesma de quando o vi defendendo, como um auto defensor, a necessidade de outro olhar e reconhecimento de pessoas com síndrome de Down.

Naquela ocasião estávamos na cidade de São Paulo, e Breno participava, ativamente, da discussão sobre os mecanismos de monitoramento e implementação nacional da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Lá estava ele ocupando um papel que cada dia mais deverá se encontrar/afirmar: as próprias pessoas com deficiência afirmando sua independência e autonomia.

Difundi hoje uma notícia sobre outro jovem parecido com ele, nessa afirmação. Chama-se Luiz e mora em Fortaleza. Ele também traz essa capacidade de luta e determinação. Como praticante de jui-jutsi e muay-thai, sonha em ser um campeão. E tenho certeza de que ainda terá seu momento de sucesso como os seus outros três “colegas”.

Há muito que dizer sobre as duas emoções intensas que vivi hoje através e com o cinema. A primeira é a minha identificação com os personagens dos INTOCÁVEIS. Senti-me muito próximo da condição de quem sonha com o texto e a música, assim como a relação “epistolar” de Philippe.

Para um ser humano basta essa urgência/necessidade de comunicação, mesmo que através de outras línguas, pessoas ou meios, que vai das letras à música, à imagem e, principalmente, aos afetos e os bons encontros.

O ato de escreve para alguém, de forma dedicada e amorosa é um meio de buscar esses interlocutores, para além de quaisquer de nossas dores ou limitações. A presença das cartas de um tetraplégico para uma mulher como busca do amor é como diz o personagem: começamos no intelectual para chegarmos depois ao físico.

Hoje então estou escrevendo, como já fiz para um jovem com Síndrome de Down na universidade, uma missiva, uma nova carta: uma mensagem aos meus Colegas por sua contribuição à sétima arte. Diz-nos a matéria que Breno Viola pediu para que a plateia de Gramado os aplaudisse de pé. No foram atendidos e veementemente aplaudidos.

O cinema nacional está para mim hoje de parabéns. Devemos aplaudir de pé essa escolha do longa-metragem Colegas. E, confirmando o que já escrevi, espero que este seja apenas um dos passos que os atores premiados realizem em direção a outros e importantes festivais. Lá também, tenho certeza, seu talento, sua sensibilidade artística e suas bem humoradas improvisações ou provocações irão tocar muitas mentes, muitos corações.

O que desejo é que estes jovens possam ser vistos, ouvidos, e, principalmente, compreendidos para além de sua condição de pessoas com Síndrome de Down. Há ainda um forte e ativo preconceito, fundado nas garras do modelo biomédico, de sua imagem e conceituação como “doença”.

Recentemente um “cientista”, Savulescu, académico de Oxford defende a alteração das leis, argumentando que criar crianças eticamente melhores deveria ser encarado como uma "obrigação moral" de pais responsáveis.

Ele, na contramão de uma posição bioética questionadora da Eugenia, afirma que “... que o controle genético de embriões já é permitido para evitar determinadas doenças, nomeadamente o síndrome de Down ou mesmo em relação a genes potencialmente cancerígena, argumentando o que já não está muito longe de criar da engenharia genética...”. Uma engenharia de perfeição aspirada e idealizada, bio e éticamente questionável que já inspirou diferentes épocas e diferentes paradigmas fascistantes da Medicina.

SINDROME DE DOWN NÃO É UMA DOENÇA TRANSMISSÍVEL E SIM UMA CONDIÇÃO GENÉTICA LIGADA A TRISSOMIA DO CROMOSSOMO 21!

Enquanto Philippe Pozzo di Borgo, o real que só aparece no fim do filme, há um Outro que se constrói em nosso imaginário pela brilhante atuação dos atores. E, pelo seu refinado humor, somos levados a rir para não chorar do que se expressa, não como doença, mas como limitação ao nosso corpo. Seja pela cor da pele ou pela fratura de vértebras cervicais.

Assim, mudando de paradigmas, com a reflexão sobre estes filmes, não devemos achar que todos os tetraplégicos são iguais. E nem todas as pessoas com Síndrome de Down. Para cada ser humano, na relação direta com sua condição social e econômica, sua cultura e sua equiparação de oportunidades, as diferenças podem ou não ser graves impedimentos para a vida independente.

Bastaria, hoje que os diretores e roteiristas tivessem invertido os papéis de Driss e de Philippe. As possibilidades de superação ou não de milhares de pessoas com deficiência ainda se encontram na realidade da vida do acompanhante negro. A maioria ainda é, além de marginalizada, muito pobre, sejam ou não pessoas com deficiência.

E o que o Cinema tem a contribuir para as pessoas com deficiência? Para além do sonho que todos os espectadores e espectadoras buscam no seu escurinho há o que se clareia em algumas mentes sobre as subjetividades e as novas alianças necessárias para suportar nossas infindas fragilidades e “defeitos” humanos. É o seu papel instigador e crítico.

Os dois filmes que abordo são exemplos dessa função em nossas telas oníricas quase reais. O que nos aproxima, humanamente, desses Outros que são nossos colegas de vida e viagem, são as nossas próprias solidões. Nossa “salvação” não vem do além, vem do partilhar, do compartilhar e do respeitar, amistosa e amorosamente, esses des-conhecidos.

Só uma boa e intensa viagem pelas estradas. Uma inusitada e inesperada busca comum de alegria, com a inversão do temor de sermos tocados, como o que ocorre com Driss ao ter de cuidar, intensamente, de um corpo sem movimentos. O que é preciso então para que nossas dores comuns sejam, por alguns momentos fugazes de riso e alegria, diminuídas e aplacadas?

Em minha opinião que possamos, primeiramente, retomar as antigas salas de projeção de cinema das mais recônditas cidadezinhas deste país. Cada sala que perde suas poltronas e telas para movimentos religiosos é para mim o reforço de nosso aprisionamento no vazio dos BBB globais e outros recordes televisivos.

E, reconquistando esses Cinemas Paradiso, que suas telas sejam cada dia mais “cinemascopicamente” coloridas com esses tocantes retratos da solidariedade e da amizade conquistada. E se multipliquem novamente para além dos shoppings e dos templos...

Aos meus “Colegas”, já que eu ocupava, como eles, a exceção/diferença dentro da sala de cinema, como único “corpo deficiente visível e notável”, dedico meu texto e minha total reverência. A mesma reverência a estes intocáveis que devem se tornar, por direito e por desejo, o máximo possível, INDEPENDENTES.

E, como Philippe ainda não consegui deixar minha “alma” descansar, preciso de ar e de alguém como alteridade, mesmo seja apenas um leitor ou leitora desse blog...

Não consigo muito menos descansar meu corpo dolorido e quebrantável. Ainda quero reencontrar Brenos, Ritas, Arieis, Luizes e muitos outros e outras, todos e todas já são e serão meus colegas nessa estrada aberta chamada de transitoriedade dos bons encontros.


Copyright/left jorgemarciopereiradeandrade 2012/2013 (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela INTERNET ou outros meios de comunicação de massa)


FILMES CITADOS:

OS INTOCÁVEIS (Les Intouchables
) – Direção de Éric Toledano e Oliver Nakache, 2011, França.

COLEGAS – Direção de Marcelo Galvão, 2011, BRASIL – Vencedor do 40º Festival de Cinema de Gramado, RS - 2012
http://blogcolegasofilme.com /

Matérias e fontes sobre o texto na Internet:

"Colegas" vence como melhor filme do 40º Festival de Gramado http://cinema.uol.com.br/ultnot/2012/08/18/colegas-vence-como-melhor-filme-do-40-festival-de-gramado-veja-premiados.jhtm

Turma do Luiz (jovem com Síndrome de Down em Fortaleza) http://www.opovo.com.br/app/opovo/esportes/2012/08/18/noticiaesportesjornal,2902009/turma-do-luiz.shtml

Em Gramado, 'Colegas' desdramatiza a Síndrome de Down (e rompe Paradigmas/Estigmas consolidados!) http://www.dgabc.com.br/News/5975068/em-gramado-colegas-desdramatiza-a-sindrome-de-down.aspx

Síndrome de Down ganha visão cômica e livre de tabus em 'Colegas' (Festival de Gramado - SUCESSO merecido) http://cinema.terra.com.br/festival-gramado/noticias/0,,OI6078325-EI20667,00-Sindrome+de+Down+ganha+visao+comica+e+livre+de+tabus+em+Colegas.html

Filme estrelado por atores com síndrome de Down é aclamado em Gramado http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/cinema/2012-08-14/publico-aclama-colegas-em-gramado.html

Mostra de cinema francês traz diversidade da produção do país http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,mostra-de-cinema-frances-traz-diversidade-da-producao-do-pais,916507,0.htm

“Os Intocáveis” toca os expectadores em estréia do Festival Variluxhttp://br.artinfo.com/news/story/819442/os-intoc%C3%A1veis-abre-hoje-em-s%C3%A3o-paulo-o-festival-varilux-de-cinema-franc%C3%AAs-que-estar%C3%A1-em-cartaz-em-33-cidades-do-brasil

Engenharia genética de bebés é uma "obrigação moral": http://expresso.sapo.pt/engenharia-genetica-de-bebes-e-uma-obrigacao-moral=f747290#ixzz23yCVDcDW

LEITURA INDICADA:

O Segundo Suspiro - Philippe Pozzo Di Borgo. Editora: Intrínseca, Ano: 2012.

Sexualidade, Cinema e Deficiência – Francisco Assumpção Jr. & Thiago de Almeida (Orgs.) – Livraria Médica Paulista, São Paulo, SP, 2008.

LEIA(M) TAMBÉM NO BLOG:


O VIGÉSSIMO PRIMEIRO DIA - CINEMA E SÍNDROME DE DOWN https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2010/03/o-vigessimo-primeiro-dia-cinema-e.html

CARTA A UM JOVEM COM SÍNDROME DE DOWN NA UNIVERSIDADE https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/02/carta-um-jovem-com-sindrome-de-down-na.html

NÃO SOMOS ANORMAIS, SOMOS APENAS CIDA-DOWNS.... https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/03/nao-somos-anormais-somos-apenas-cida.html

SINDROME DE DOWN E REJEIÇÃO: UM CORPO ESTRANHO ENTRE NÓS? https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/10/sindrome-de-down-e-rejeicao-um-corpo.html

A PAGAR-SE UMA PESSOA COM SÍNDROME DE DOWN https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2010/09/pagar-se-uma-pessoa-com-sindrome-de.html

terça-feira, 7 de agosto de 2012

EM BUSCA DE UM CORPO “PERFEITO” PERDIDO, no tempo das Olimpíadas...


Imagem Publicada – A foto colorida da AFP publicada com Oscar Pistorius, um atleta sul-africano que com suas pernas substituindo sua dupla amputação sai na pista em busca de participar das finais da corrida de 400 metros nas Olimpíadas de Londres (2012). Pistorius teve que amputar as duas pernas abaixo do joelho aos 11 meses de idade devido à ausência congênita de fíbula em ambas as pernas e por isso corre com próteses de lâminas de carbono. (Autoria da foto – Olivier Morin) -
PS-  em julho de 2016 ele foi condenado a 06 anos de prisão por matar sua namorada Reeva Steemkamp na África do Sul)

Este texto estava em "fermentação emocional" desde o início das Olimpíadas... Um corpo insone não significa um corpo sem sonhos.

CITIUS, ALTIUS, FORTIUS. Eis o lema olímpico da época de sua primeira realização pelo Barão de Coubertin. O lema representa a retomada, quase renascentista, de um ideal para o corpo humano? Sim, de forma helênica e através do latim procurava-se: sermos cada vez MAIS VELOZES, MAIS ALTOS (ou MAIS LONGE) E MAIS FORTES...

Tenho assistido, após alguns tempos de imobilidade para a árdua e solitária tentativa de escrever, as múltiplas apresentações televisivas de nossos desejos “áureos” do pódio. Queremos, torcemos, vibramos e nos emocionamos na busca do Ouro Olímpico e nos transportamos para o reinado dos estádios e das suas multidões.

Também vivenciamos outras vitórias. Mas essas ficam menos visíveis nos tempos da Sociedade do Espetáculo em HD. Não nos sensibilizamos com outras disputas que não as que tenham alguma bandeira ou hino a ser comemorado. Ufanistas e patrióticos desejamos, e eu também desejo, ver nossos atletas vencendo as disputas por medalhas.

Já fui, embora hoje nem pareça mais, após as “imobilizações e deficiências que adquiri” a que fui submetido, um “atleta”. Há muitos, muitos anos eu corria lá no interior fluminense. Eram meus tempos da ditadura. Eu apenas estudante de medicina, mas também um sonhador com um corpo atlético e veloz. Eu fazia parte de um sonho de ganhar medalhas. Corria numa prova em especial: os 400 metros do atletismo, mas também fazia o heptatlo.

Essa prova é uma das que mais exigem um ideal de superação corporal. É nela também que podemos incluir os ideais, a semelhança da Maratona, de um corpo que suporte a dor, o cansaço, a fadiga muscular e a perda do fôlego vital. Temos como diziam nas corridas que participei de “correr como os cavalos”. Só que nessas provas de superação quase sempre alguém tem de ficar em último lugar.

Nessa Olimpíada de Londres tele assisti a maior demonstração de humildade e reconhecimento. Por coincidência, talvez, ocorreu também na prova dos 400 metros. Nela Oscar Pistorius teve a sua participação e foi o último a chegar. Com suas pernas high tech, substitutas das que consideramos as “normais ou perfeitas”, participou das semifinais dos 400. E devido a elas foi apenas mais um perdedor?

Um acontecimento, logo em seguida, nos respondeu pelos aplausos da multidão: Não, não é um "retardatário". Um ganhador de prêmios, que não é biamputado, lhe pediu gentilmente que lhe desse o número pregado na sua camiseta. Era o corredor de Granada, Kirani James, que fez o maior gesto de reconhecimento a este atleta paralímpico que persiste em correr junto aos que são considerados, como Osain Bolt, os "olímpicos", como os deuses perfeitos das/nas pistas.

Como atletas de um mundo que supervaloriza a nossa corporeidade com perfeição, como modelos para nossa subjetivação, caminhamos em direção ao rompimento de nossos próprios recordes. Tendemos a nos tornar trans-humanos? Não basta que sejamos super?

Somos, como Pistorius, comparados aos androides futuristas de Blade Runner? Este magnífico e intenso filme que nos propõe, através de seu diretor Ridley Scott que possamos, a meu ver, viver uma sincera e preventiva reflexão ética com uma ficção científica. Destruiremos e caçaremos qualquer forma de vida diferente, mataremos como outro Holmes, o James, qualquer um que não seja um Coringa ou Cavaleiro das Trevas?

Seremos, no futuro, mais que ciborgues, apenas “replicantes”? Talvez sim, pois o filme foi considerado, pela Biblioteca do Congresso (USA) como sendo "culturalmente, historicamente ou esteticamente significante" (1993). O detalhe é que os replicantes são criados geneticamente à semelhança integral dos seus caçadores. O detalhe é que são banidos e expulsos do Paraíso futurista. Tornam-se robôs, como a personagem feminina (Rachael) capazes de, tornando-se humanamente sensíveis, nos apaixonar.

Estes robôs orgânicos não são mais o futuro. Eles já existem no aqui e agora. Recente matéria televisiva nos mostrava um comediante japonês sendo “substituído” por uma cópia androide mais que perfeita. O artista que fazia rir agora velho estava completamente renovado no palco.

Esta também é a ideia de novos blade runners? Nas Olimpíadas do Rio teremos novos corpos admiráveis, que nos causam inveja e sensação de superenvelhecimento, nos desafiando ao desejo de um corpo perfeito que foi perdido no tempo? Que dopings, não detectáveis, teremos de usar para que nossos corpos tornem-se passíveis do endeusamento?

O corpo continua sendo nosso maior ego. O corpo também é o herdeiro de uma estigmatização e exclusão quando visto ou apresentado como deficiente. O corpo ainda é nossa maior oficina da moralização e do preconceito. Nestes tempos olímpicos faz-se necessária uma re-visão de sua desapropriação e exaltação.

Uma fonte rica para esta reflexão nos é proporcionada pela leitura de Richard Sennet. Este amigo sincero de Foucault nos provoca com a reflexão sobre o que aprendemos, historicamente, de repressão e de docilização de nossos corpos e vidas nuas. Em seu texto Carne e Pedra, nessa relação de nossos corpos físicos com a pólis, ele nos diz: “As imagens idealizadas do corpo que regem nossa sociedade nos impede concebê-lo fora do Paraíso...”.

Dele, segundo a visão cristianizada e ocidental, embora expulsos do Olimpo ainda poderemos tentar chegar a semideuses, com as nossas formas globalizadas de disputar quem é o melhor, o mais rico, o mais forte, enfim, o mais poderoso.

O ideal Citius, Altius, Fortius não passa, então, a representar quem mais tem recursos para o esporte ou quem tem mais força e poder no atual hipercapitalismo? O que não podemos esquecer que mesmos os mais “subdesenvolvidos” acabam surpreendendo os que se consideram donos cativos do primeiro lugar.

Acabamos de ver que, individualmente, ainda temos muitos desconhecidos que se tornaram, miticamente, nossos próximos heróis. Porém se tomarmos cuidado não lhes exigiremos que se tornem mais-que-perfeitos, obsessiva e paranoicamente os nossos maiores campeões do Futuro.

Vamos encher nossos estádios novamente? Esperamos que sim, mas também vamos ter que reaver todo o nosso investimento de milhares de desconhecidos que levantaram as pedras de nossas novas e faraônicas obras. Os zés-ninguéns que também precisaram vencer algumas competições para entregar a tempo toda a infraestrutura de nossa Copa e nossa Olimpíada.

Estes corpos trabalhadores, outra massa, também preparam e participam dessas reconstruções de Maracanãs espalhados em nossa Terra Brasilis. Uma pátria, um país, uma nação onde muitas outras obras, que enterram muitas corrupções, estão e estarão necessitadas de nossa atenção e reconhecimento. Estes nossos corpos/maioria, desde os egípcios e gregos, compõem os que podem ser considerados escravos, portanto vidas nuas e matáveis. São, foram e serão sempre a base de sustentação e criação das pirâmides...

Há um mito, talvez mais que realidade, que diz que a Ponte Rio-Niterói, construída em tempos de Ditadura militar, tem em suas bases, pilastras e alicerces de cimento muitos corpos operários. Que nome tem essa ponte que não é como a Bioética pensada para o futuro?

Portanto, por mais que me envolva com o meu próprio entorpecimento pelas imagens contagiantes dos olímpicos e das multidões, sabendo que heróis e heroínas são apenas mortais, tenho de aprender, com o meu próprio momento, que a corrida Pela Vida é ainda mais importante do que a que me torna apenas um fugaz rompedor dos seus recordes.

Mesmo assim dou parabéns aos nossos poucos atletas vestidos de amarelo e ouro, seu esforço para vencer a dor, saltando, correndo, ou pendurados nas argolas, me reforça o aprendizado que recusamos a reconhecer esta experiência como inevitável e insuperável.

Nunca ganharemos essa corrida, esse jogo ou essa disputa. A dor faz parte desse prazer de sermos apenas, demasiadamente, humanos. E, eu, você e todos (as) nós continuaremos em busca de um corpo perfeito perdido no tempo.

E vem aí a Paralimpíada de Londres, em 20 de agosto, que perdeu o O das Olimpíadas. A nossa Sociedade dos Espetáculos irá midiatizá-la com a mesma força, velocidade e intensidade? Com certeza Pistorius não estará por lá, mas muitas medalhas de ouro, como em 2008, nos colocarão em outro patamar nessa visão, para além dos Brics, no mundo globalizado.

Paralimpíada é apenas a contração terminológica de “Paraplegia” e “Olimpíada”?

 Se o for tenho certeza de que, esperando estar vivo e ativo, ainda não sei verei outros atletas paralímpicos, do atletismo nacional e internacional, correndo em meu/nosso nome nos 400, ou outras provas difíceis, do Rio 2016, ou seja, apenas como um corpo pleno de intensidades e desejo, e não um corpo mutilado e “deficiente”. Um corpo olímpico... e possivelmente junto a outros não menos ou mais ciborgues.

Copyright/left jorgemarciopereiradeandrade 2012/2013 (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet ou outros meios de comunicação de massas)


Notícias na Internet–

Primeiro biamputado nas Olimpíadas, "Blade Runner" Pistorius é eliminado na semi dos 400 m 
http://olimpiadas.uol.com.br/noticias/redacao/2012/08/05/primeiro-biamputado-nas-olimpiadas-blade-runner-pistorius-e-eliminado-na-semi-dos-400-m.htm

Biamputado, Oscar Pistorius realiza sonho olímpico 
http://exame.abril.com.br/estilo-de-vida/esportes/noticias/biamputado-pistorius-finalmente-realiza-sonho-olimpico-e-estreia-nos-400m

Audiência discutirá supervalorização da medalha de ouro nas Olimpíadas 
https://www2.camara.gov.br/agencia/noticias/ESPORTES/423469-AUDIENCIA-DISCUTIRA-SUPERVALORIZACAO-DA-MEDALHA-DE-OURO-NAS-OLIMPIADAS.html

Londres 2012: A fábrica de atletas da China http://rederecord.r7.com/londres-2012/noticias/londres-2012-a-fabrica-de-atletas-da-china/

Comediante famoso tem encontro com um androide feito à sua imagem no Japão http://globotv.globo.com/globo-news/pelo-mundo/v/comediante-famoso-tem-encontro-com-um-androide-feito-a-sua-imagem-no-japao/2073483/

Jogos Paralímpicos http://pt.wikipedia.org/wiki/Jogos_Paral%C3%ADmpicos RIO 2016 - http://www.rio2016.org/ (Teremos sua Abertura Solene concomitante às Paralimpíadas?)

Oscar Pistorius é condenado a 06 anos de prisão por matar sua namorada (matéria publicada em agosto de 2016) http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/07/oscar-pistorius-e-condenado-6-anos-de-prisao-por-matar-ex-namorada.html

LEITURAS INDICADAS -  

 CONTRA A PERFEIÇÃO - Michael J. Sandel - Ed. Civilização Brasileira, RJ.


CARNE E PEDRA – O Corpo e a Cidade na Civilização Ocidental – Richard Sennett, Editora Best Bolso, Rio de Janeiro, RJ, 2008.

Filme citado –BLADE RUNNERhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Blade_Runner

LEIA TAMBÉM NESSE BLOG

AS SELEÇÕES: OS ESTÁDIOS, OS PARADIGMAS E UM NOVO GAME 
https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2010/06/as-selecoes-os-estadios-os-paradigmas-e.html

ROBÔS, POLÍTICA E DEFICIÊNCIA. 
https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/07/robos-politica-e-deficiencia.html

MURDERBALL: QUANDO AS CADEIRAS DE RODAS SE CHOCAM... EM NÓS https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2010/06/murderball-quando-as-cadeirasde-rodas.html

DEMOLINDO PRECONCEITOS, RE-CONHECENDO A INTOLERÂNCIA E A DESINFORMAÇÃO
https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/06/demolindo-preconceitos-re-conhecendo.html