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sábado, 17 de maio de 2014

LOUCURA SEMPRE! A DESINSTITUCIONALIZAÇÃO NÃO É INTERNAÇÃO, MUITO MENOS COMPULSÓRIA.

Imagem publicada – uma foto de uma homenagem pintada há muitos anos atrás para mim, por uma artística cliente e ensinante, Maka, onde sou representado e cercado por frases: Freud explica, Winnicott também, Jung idem e Jorge ibidem..., no canto direito está escrita a nossa grande descoberta mútua: - “e eu tento entender...”.  Um terno e eterno aprender... Será que algum dia, em futuro longínquo, poderemos vir a “entender” sem querer enclausurar ou capturar, todas as nossas “loucuras”?

“Uma doente fala sozinha, será que não tens medo da imagem do teu corpo? Eu estava sempre à espreita da doutora. A vê-la um instante, falar com ela ser real... reencontrar-me... O grupo: trinta doentes com uma equipe médica, vão todos espiar-se, vigiar-se, insultar-se, odiar-se, amar-se, projetar uns nos outros, viver em conjunto a loucura. Pouco sei dos outros, estou sempre só...” (Emma Santos – O Teatro).

Habeas Corpus Insanus ad eternum!

Resgato essa poetisa, artista e sempre teatral Emma, direto dos mais antigos livros que guardo com carinho. Ela, que passou pelas agruras de mais de uma internação psiquiátrica em Portugal, nos anos 60/70, me ensinou a buscar o coração que foi pintado pela outra artista que me afetou.

Foi dela que aprendi que: “A manhã volta. A manhã volta sempre...”, por mais soníferos, ansiolíticos, antipsicóticos e antidepressivos que tenhamos ingerido, o amanhã virá, inevitável e, se for dentro do hospital psiquiátrico, mais duro ainda.

Na busca da suavidade necessária e do processo de humanização desses estabelecimentos e suas instituições me joguei de corpo e alma, muitos dias, muitas horas. As marcas do convívio com os espaços de tratamento ou confinamento das ‘loucuras’ não são só do corpo. Ficam também nos nossos corpos, para além dos outros, simbólicos ou não. Agora posso de corpo ferido e mente alerta, mesmo à distância física, ter outras implicações.

Hoje, perto de mais um momento de festa e bola rolando, me aviso e lembro-me dos que irão ver jogos apenas pela televisão. Distanciados e intocáveis. Isto se a televisão estiver ligada e permitida.

São os que permanecem e ficarão “fora dos estádios” normalizadores. São os ‘doentes mentais’ que, devido às suas infindas institucionalizações em clínicas, Caps ou outros resquícios de sanatórios e manicômios ou “minicômios reabilitadores”, “não batem bem da bola”, ou da “cachola”, ficam sempre com o cartão vermelho, expulsos de quaisquer partidas oficialmente normais, como o mercado de trabalho.

Aos inadvertidos digo: eu gosto de futebol, mas não sou mais um fanático. Eu amo/respeito/sinto os loucos de toda sorte, mas não sou fanático por nenhuma loucura, a não ser a minha própria... Não lanço nem privadas e muito menos bananas racistas...

Entretanto, para muitos de nós, os próprios psis e os que se denominam normais, somos classificados como loucos. Os ditos que não são tão malditos, afinal, de ‘médico e de louco todo mundo tem um pouco’. 

Integrantes de uma seleta seleção. Somos profissionais, os trabalhadores com e da dita Saúde Mental que não ganham como jogadores de futebol. Porém, mesmo assim, entramos em um campo minado, vestimos a camisa de um “time” que joga o tempo todo com os seus e os nossos inconscientes-multiplicidades.

Caso venhamos a passar por acidentes ou traumas, também adoecidos, penduramos as chuteiras. E, dizem, portanto, que também somos “ruins da cabeça’’, já que ficamos, como nossos pacientes, “doentes dos pés”, de “miolo mole”, mais para Garrinchas dopados do que para os que continuam equivocados como Pelés.

Por isso, aquilo e mais um pouco temos de aprender a sermos os meio-de-campo-Loucos... Nesses áridos não gramados campos abertos a placares inusitados, com jogos que devemos aprender a perder. Nunca seremos, aí nessas arenas fechadas e totais, os campeões. Apenas nos tornamos os espertos ao contrário, como já disse, sábia e vividamente a Estamira.

Ao viver nessa e dessa insanidade, como risco necessário desse trabalhar, oriundas de si próprio e do Outro é que precisamos nos tornar mais finitos. Um estar, mais que ser, na transitoriedade desses jogos inter-humanos, em permanente estado de desinstitucionalização. Abraçarmos a nossa suposta derrota: os loucos sempre vencem mesmo enclausurados. Por quê?

 Já nos foi dito: os muros que ainda não derrubamos estão dentro de nós... São as verdadeiras muralhas que nos protegem do que mais tememos: ensandecer como o espelho deles e de nós próprios. O seu sofrimento psíquico não nos é estranho ou estrangeiro. Faz parte de nossa história, seja social ou cultural, biográfica ou historiográfica.

Fomos, com a Medicina psiquiátrica, durante mais de um século os responsáveis por determinar a distância entre a sanidade e a loucura. Como medidores e avaliadores fisicalistas nos foram dadas ferramentas para incluir ou excluir. Foi-nos dado o aval, e ainda permanece como paradigma, a nossa capacidade de dizer quem está “doente da cabeça”. Os lunáticos que não andam sobre os pés. Os que dizemos estão fora do chão das nossas realidades.

Lá no século XVIII o mundo da loucura, que ainda recebe esse nome/estigma, segundo Foucault ‘vai tornar-se o mundo da exclusão’. Modificamos em quase três séculos esse modelo e paradigma excludente?

Nos meados daquele século é que foram criados os primeiros estabelecimentos para a grande internação. Não eram como os aprimorados equipamentos e hospitais de hoje dedicados apenas aos sofrimentos psíquicos graves e persistentes.

Os ‘Hospitais Gerais’ recebiam, como seus sucessores manicômios, toda uma série de sujeitos diferentes. Segundo Foucault lá, “pelo menos segundo os nossos  critérios de percepção: encerram-se os inválidos pobres, os velhos na miséria, os mendigos, os desempregados opiniáticos, os portadores de doenças venéreas, libertinos de toda espécie, pessoas a quem a família ou o poder real querem evitar um castigo público, pais de família dissipadores, eclesiásticos em infração, em resumo todos aqueles que, em relação à ordem da razão, da moral e da sociedade, dão mostras de ‘alteração’...”.

E a que discrepâncias sociais, anormalidades, desvios morais, atos infames e ‘alterações genéticas’ estaremos, generosa e piedosamente, nomeando, classificando e destinando para nossas ‘novas’ instituições dedicadas aos loucos?

Digo que são os ‘novos malditos’. São os que apesar de não serem tão ‘perigosos’ ocupam agora os antigos espaços dos hansenianos e dos amaldiçoados pelos soberanos. São as novas e sempre bem vindas, biopoliticamente, Vidas Nuas. Pergunte-se se não há na citada lista foucaultiana nenhum dos termos lá que empregamos ainda por cá e acolá. Naturalizamos suas modernas versões humanas?

A resposta é que ainda temos de continuar o que se denominou de ‘luta antimanicomial’. As velhas e carcomidas instituições arquitetônicas dos manicômios, das Barbacenas, perduram em novas e bem instrumentalizadas formas de encarceramento. Não são só os portões e grades que nos separam deles, dos loucos.
Separam-nos as novas terminologias, novos diagnósticos, novas medicações, novos meios de contenção física, novos/velhos falsos cuidados desses Outros.

Aí, com certeza e direito, Emma que nunca foi santa, nos cuspirá, no rosto maquiado dos nossos belos avanços, a verdade de nossa neurótica e desinstituinte repetição: o ontem sempre vem, e, extenuados, não construímos e nem vemos saídas, não há nenhum amanhã possível?

Pela necessidade de responder às muitas Emmas, Estamiras e outros Cids que, com seus delírios ou alucinações, compulsória e involuntariamente são serão internadas, desviantes que se tornam, é que faço essa afirmação da desinstitucionalização.

Urge caminhar para além das deshospitalizações, para além das desterritorializações dos sofrimentos dos Outros, sempre sujeitados e cada dia menos sujeitos, singulares, individual ou grupalmente.

Para além dos territórios já conhecidos e demarcados, digo que a Saúde Mental pode, amorosa e micropoliticamente, vir a ser revolucionária. A quebra de estigmas e preconceitos com a loucura, assim como com os racismos, as homofobias e outras discriminações também é tarefa dos atores e inventores/vetores dessas Outras Saúdes.

Como dados de realidade, para que não digam fanático pela demolição dos manicômios visíveis, posso citar o levantamento da situação de pessoas em sofrimento mental prolongado aqui em São Paulo, o Censo Psicossocial sobre Moradores de Hospitais Psiquiátricos, no ano de 2008.  Este censo perguntou a um morador de um hospital psiquiátrico se ele gostaria de morar fora do hospital.
Ele respondeu: “...quero ir embora... mas não tenho mala”.

Segundo essa mesma pesquisa estatística, a população internada em hospitais há mais de um ano era de 6349 internados em 56 hospitais psiquiátricos, em 38 municípios, e em 15 DRs. Dessa amostra populacional existiam 3930 homens e 2416 mulheres. Ressalte-se que quase 63% era de não alfabetizados, quando surgem então as crianças e jovens internados. Entre eles 42,1% possuíam ausência total ou parcial de dentes. Como sorrir, então, dentro desses cenários institucionalizantes?

Quantos estão agora ainda em processo de internação prolongada e sem perspectivas, sem mala, sem destino, sem respostas, sem novos caminhos ou futuros, mesmo que sejam residências terapêuticas?

O outro e alegado cenário, que aí surge, é o da ‘transinstitucionalização’, ou seja, os muitos que saíram de hospitais psiquiátricos fechados. Mudaram de ‘mala e cuia’, como dizem lá em MG, para novos ou velhos espaços medicalizados. Desse total pesquisado pelo censo 43% (2741 pessoas, ou melhor, cidadãos e cidadãs) tornaram-se “moradores” dos novos equipamentos. Ocupam os ‘leitos-noite’ que não tem dia seguinte, muito menos a desejada ‘alta’?

Nessa perspectiva é que ainda há que resolver as questões macropolíticas geradas e alimentadas pelo descaso dos gestores. Faltam os recursos, os trabalhadores, e, principalmente, a chamada política pública estruturante. Com estes números citados, apenas uma das pontas visíveis de um grande iceberg de ‘usuários’, é que devemos uma resposta desinstitucionalizante, uma afirmação de vida para além dos limites já inventados ou recém-instituídos.

Pelo já escrito, assim como pelo que me foi ensinado nos meus anos capsciosos, é que digo que a Psiquiatria, e não menos outras especialidades psi e próximas, se revelam, diante do dito louco e da loucura, portadoras de um instituído vertical e enraizado, mais que quaisquer outras instituições.

Nós, os benditos trabalhadores dessa saúde e pela ação biopolítica de nossos zelosos equipamentos de cuidado, interrogo se podemos e nos tornamos excelentes e eficientes administradores ‘daquilo e daqueles que sobram’, dos excedentes ou novos desfiliados sociais? Contribuímos, por exemplo, para a gentrificação e higienização das grandes ‘lândias’ das grandes cidades?

Seríamos, ou melhor, nos tornamos uma instituição residual, que detém ela mesma, em relação ao sistema instituído como Saúde Mental, um poder tanto insubstituível quanto um simulacro, ou seja, seríamos capazes de fazer o papel de quaisquer uma das outras instituições que nos transversalizam, seja a Justiça, o Governo ou mesmo a Família...

A desinstitucionalização dá trabalho, é árdua, exigente de uma Análise Institucional, ela própria que se coloca em implicação com seu próprio fim, finalidade ou demanda. Essa que lhes proponho tem que ir além das teorias e dos diagnósticos. Como dito lá em cima, vai além dos Freuds, dos Jungs e dos Winnicotts, e, com certeza, muito além de mim e do meu corpo/vida/máquina desejante.

Esse caminho árduo para a desinstitucionalização passaria pelo buscar soluções singulares, heterogêneas, realmente substituíveis (ou melhor, até descartáveis por sua temporalidade ligada à existência e vida do sujeito), com uma ‘intervenção prática que remonte a cadeia das determinações normativas, das definições cientificas, DAS ESTRUTURAS INSTITUCIONAIS, através das quais a ‘doença mental’(o irremediável problema chamado de Loucura) assumiu aquelas formas de existência e expressão...

Enfim, preciso e lhes desejo contaminar com uma necessidade de novos gestos, de novos e criativos contatos com esses Outros, em nós e nos Outros que denominamos mais loucos que nós próprios.

A vocês, todos e todas, em tempos de medos líquidos, deixo a poesia demolidora de desafetos de Max Pagès, que incluiria Reich entre os meus indicadores analíticos da pintura-interrogação de mim, o sujeito de um suposto saber psicanalítico ou psiquiátrico distanciador:

“... Cada gesto é necessário e leva a outros gestos
Desconhecidos, necessários também,
Que levam a outros gestos e a outros ainda desconhecidos.
Se se aceitarem os gestos que são necessários às pessoas
Elas podem viver, senão, arrebentam.
Amar é aceitar os gestos dos outros
Amar é fazer gestos que nos são necessários
Amar é arriscar ficar só, e é também arriscar destruir
Os outros e a si próprio”.

Por esse desejo, como um rizoma, de uma molecular revolução que nos desinstitucionalize, desmassifique e nos torne singularidades mutantes e amantes do viver, com toda intensidade que isso exige, é que digo e lhes docementeabraço: - estendam a mão, ofereçam o ombro, aceitem o olhar, mudem a escuta distanciada, fria, diagnosticadora, sensibilizem-se pelo corpo e pela diferença que sempre é o Outro e o próximo, para além do temor que nossas ou suas loucuras recônditas nos provoquem.

E, finalmente, que se manifestem como somos também: uma ou muitas multidões...
com um doceabraçoantimanicomialeresiliente...

. TODOS DIREITOS RESERVADOS)
Copyright/left jorgemarciopereiradeandrade 2014/2015 (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet e em outros meios de comunicação com e para as massas TODOS DIREITOS RESERVADOS 2025)

Leituras inquietantes para inquietos pensantes:
O Teatro – Emma Santos, Editor Assírio e Alvim, Lisboa, Portugal, 1981.

Doença Mental e Psicologia – Michel Foucault, Editora Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, RJ, 1975.

O Trabalho Amoroso: Elogio da Incerteza – Max Pagès, Editora Veja Universidade, Lisboa, Portugal, 1986.

Filme que deveríamos sempre reapresentar e rever:
Estamira, um filme de Marcos Prado   https://www.youtube.com/watch?v=KFyYE9Cssuo

Fonte de pesquisa –

Desafios para a Desinstitucionalização - Censo Psicossocial dos Moradores de Hospitais Psiquiátricos no Estado de São Paulo, Sonia Bichaff & Regina Bichaff (orgs.), 2008 –

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quinta-feira, 10 de outubro de 2013

OS MORTOS-VIVOS DO HOSPICIO QUE ENSINAVAM AOS VIVOS SOBRE A VIDA NUA... BARBACENAS NUNCA MAIS!


Imagem- uma fotografia em preto e branco de uma das “enfermarias” do Hospício de Barbacena, nela vê-se enfileiradas diversas camas, toscas, que muitas vezes eram substituídas por capim, na ausência de colchões, aparecendo um homem sentado no chão, perto dele há deitado um homem, negro, seminu e emagrecido, que nos olha e interroga, podendo-se ver ao fundo, à direita, dois homens vestidos e de terno, possivelmente, dois profissionais da instituição, seriam dois médicos, dois psiquiatras? É possível que sim, pelo simples fato de estarem fisicamente vestidos, e, portanto, não poderiam ser parte do cenário de vidas nuas ali abandonadas, apesar de alguma roupa. Nesse manicômio histórico a média de mortos diária era de 16 novos corpos. E contei 16 catres de ferro... Alguns dos fotografados podem ter sido parte deste registro imagético de mortes anunciadas. Fotografia de Luiz Alfredo, da Revista O Cruzeiro, 1961, para a reportagem com o título: Hospital de Barbacena – Sucursal do Inferno)

“No hospício, como nos cárceres, o tempo está como que paralisado: se têm a sensação de um presente enorme e vazio…” (Alfredo Moffatt in Psicoterapia del Oprimido – Editorial Libreria ECRO, 1975)

Há alguns anos atrás escrevi sobre os vivos esquecidos na Casa dos Mortos. Era um texto sobre a não vida dos que são “esquecidos” nos Manicômios Judiciários do país. Afirmava e confirmava a frase acima de Moffat. Era o ano de 2009, um ano que mudou radicalmente a minha vida e o meu corpo. Torne-me titânico e com mais parafusos para perder.

 Escrevi então: “Em 19 de abril deste ano o Correio Braziliense nos informava: cerca de 4500 pessoas estão ‘abrigadas’ nos manicômios judiciários no país. Reforçava a reportagem que estes sujeitos têm três escolhas existenciais possíveis: ou o suicídio, ou a internação ad infinitum (como dizem nas ruas: ‘forever’) ou a sobrevivência em um ambiente dantesco e desumano...”. Lamentavelmente, passam os anos e algumas dessas opções ainda são o único meio de “libertação” desses sujeitos transformados em Vidas Nuas.

Estamos em um novo Outubro, um mês para colorir de rosa contra o câncer de mama. As nossas multidões vão, ainda, para as ruas. Este mês, para mim, nos meus descoloridos dias da dor contínua, também é o mês no qual se comemora o Dia Mundial da Saúde Mental. Este ano o tema principal é sobre a saúde mental em idades mais avançadas, ou seja, na velhice. Já refleti sobre o tema no último texto, transversalizei a memória, a deficiência e o envelhecimento.

Há, porém, para mim, um tema que me toca profundamente: os que foram meus primeiros “mestres” sobre a vida e a morte, os cadáveres anônimos de loucos oriundos dos Manicômios. Aqueles que sobre mesas frias de aço serviram de aprendizagem de Anatomia Humana de várias faculdades de medicina nos anos 70.

Confirmei através da leitura de Daniela Arbex, com seu pungente Holocausto Brasileiro – Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil, que muitos outros médicos também vivenciaram essa experiência do contato com os cadáveres vendidos pelo Hospício de Barbacena, um nome aterrorizador que ouvia desde pequeno lá em Minas Gerais.

Ouvi muitas vezes, quiçá muitos que lerem este texto também ouviram, as ameaças que se faziam, em busca de obediência e não discordância, as falas dos “mais velhos” aos meninos e meninas. A ameaça simples e direta era: “... se você continuar assim.. se não fizer o que estou mandando... se continuar tão levado(a)...se ousar transgredir – Você vai de trem para Barbacena!”. Podíamos também ser levados de carro ou ônibus. Só não voltaríamos...

Sabíamos nessa suposta orientação corretiva que se encontrava também um vaticínio, uma prescrição, um diagnóstico e uma possível segregação: teríamos o mesmo fim dos Loucos. Era para Barbacena, não muito distante de minha Cambuquira, nas encostas da Serra da Mantiqueira, que existia esse hospital e onde se “prendiam” os que transgrediam, os que andavam sem rumo nas ruas, os sem-família, os com-família, os que infringiam leis ou normas nas cidades ao seu redor.

Para a Colônia iam de trem, levados para uma internação sem volta. Lá foram depositados 60 mil corpos, sessenta mil ‘vidas nuas’. Estes internados ad infinitum, assim como os outros dos Manicômios judiciários. Remessas enviadas pelas ferrovias, ônibus e até caminhões de corpos desviantes e desfiliados.

Explico para os que ainda não sabem que este conceito de Vida Nua vem do filósofo italiano Giorgio Agamben. Essas vidas matáveis são as que, na sua leitura da biopolítica foucaultiana, com uma metodologia arqueológica e paradigmática, estão sempre ligadas ao nosso passado histórico de segregação jurídica. “Vida nua" refere-se à experiência de desproteção e ao estado de ilegalidade de quem é acuado em um terreno vago, um limbo, submetido a viver em Estado de Exceção.

O teórico italiano nos traz de volta Roma e a noção do ‘homo sacer’, aquele que é caracterizado por dois traços: a matabilidade (qualquer sujeito pode matá-lo sem que tal ato constitua homicídio) e a insacrificabilidade (o homo sacer não pode ser morto de maneira ritualizada, vale dizer, não pode ser sacrificado). Fica no limiar entre o profano e o sagrado. E permanentemente exposto à violência, pode ou precisa ser aniquilado, controlado ou submetido a uma “exclusão-inclusiva”.

São os que viram uma espécie de ser como um lobisomem, híbrido da animalidade e do homem. Bichos de sete cabeças. Seres para serem caçados ou para serem protegidos pelo Soberano. Ele diz que essa “... lupinificação do homem e humanização do lobo é possível a cada instante no estado de exceção...”. Onde o Soberano recebe e tem “... o direito natural de fazer qualquer coisa com qualquer um, que se apresenta então como direito de punir”. E o direito de aprisionar, matar ou exterminar. E, em Barbacena, o direito de vender estas vidas que, por coincidência, passavam um bom tempo nuas, ou  seja no mais profundo, a pele.

A vida nua, instituída no limiar que não é nem vida natural, nem vida social – é algo inerente ao Ocidente, como argumenta o filósofo, desde o ‘homo sacer’ condenado à banição pelo direito romano até, por exemplo, uma colônia penal, um manicômio como o de Barbacena, passando pelos campos de concentração nazistas.

Agamben compreende a vida nua como zoé (fato este idêntico a todos os seres vivos, sejam homens ou qualquer outro animal), como simples viver; a vida desprovida de qualquer qualificação política.

 Em seu livro Homo Sacer I ele nos propiciará uma compreensão do que foi e é a ideia de vidas que não merecem viver, como os pré-cadáveres ou os mortos-vivos desse manicômio mineiro.  Como nos explica: ”... O conceito de vida sem valor (ou ‘indigna de ser vivida’) aplica-se antes de tudo aos indivíduos que devem ser considerados ‘incuravelmente perdidos’ em seguida a uma doença ou ferimento...”, e os próprios sujeitos passam a um estado onde não querem nem viver nem morrer. Um exemplo disso são os sobreviventes aos campos de extermínio na Segunda Guerra Mundial.

Dentro da política ocidental, no que chamamos de modernidade, segundo esse autor, as duplas categoriais, supostas oposições, não são aquelas amigos-inimigos, “mas vida nua-existência política, zóe-bíos, exclusão-inclusão...”.

Sob a alegação política de proteção o Estado pode produzir esses espaços manicomiais, ou instituições totais (Gofmann), espaços para separação dos corpos como vidas descartáveis (Bauman) sobre a alegação de uma inclusão mantendo-os na exclusão.

Se chamarmos nossos tempos também de idade da biopolítica, segundo o filósofo, hodiernamente a relação entre o homo sacer e o soberano é mais sutil. Isto por que  se separam os que detêm o poder soberano daquela figura clássica, dos que podem suspender a ordem jurídica e decretar o Estado de Exceção.

Pelo contrário, “na idade da biopolítica este poder [soberano] tende a emancipar-se do estado de exceção, transformando-se em poder de decidir sobre o ponto em que a vida cessa de ser politicamente relevante...”. Caminhamos em direção a um Estado Policialesco, retomaremos a Era de ouro dos manicômios, das prisões ou conventos?

Aí se encaixa a pergunta: existem vidas humanas que perderam a tal ponto a qualidade bioética de vida, de cidadania, de existência e de bem jurídico, que sua ‘disponibilidade’, extermínio ou continuidade, tanto para o seu portador como para a sociedade, são destituídas de todo seu valor?

Quem sabe as bárbaras cenas de uma instituição ‘filantrópica’, que entre 1969 e 1980, obteve lucro com os 1853 corpos de pacientes do manicômio vendidos para 17 faculdades de medicina, respondam quem são essas vidas humanas sem/com valor?

Como os incômodos sujeitos chamados de loucos, enclausurados no manicômio, incluíam todos os “deficientes mentais, cretinos, débeis, homossexuais, epiléticos, alcóolatras, prostitutas”, os ‘loucos de toda espécie’ conforme as leis, mesmo sem comprovação de suas anormalidades mentais, foram eles os ‘escolhidos’. 

Foram os banidos para esta e outras Colônias. Não ‘valiam’ nada lá dentro, inclusive para a psiquiatria.  Mas adquiriam um valor temporário para sua dissecção/ensino pela Medicina lá fora.

Segundo Arbex, em Barbacena, ‘pelo menos 60 mil morreram dentro dos seus muros’. Ela nos relata esse horror através de um professor universitário que testemunhou a chegada de um lote de cadáveres adquirido pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Eram as vidas nuas, concreta e fisicamente expostas, que geraram nele um choque. Não um eletrochoque (ECT) aplicado rotineira e indiscriminadamente nesse hospício.

Reproduzo, como se o tivesse vivido e com algumas lembranças de Vassouras, o diálogo quase kafkiano a que Ivanzir Vieira foi submetido lá em Juiz de Fora: _ ”Descendo as escadas do segundo andar, apareceu Salvador, funcionário da Faculdade de Medicina, quem o professor conhecia. – Olá Ivanzir. Tudo bem? Porque veio trabalhar hoje? Não sabe o diretor liberou os professores e os alunos?...”.

O professor Ivanzir, após ter visto algumas pilhas de corpos, continua este diálogo ao indagar: “_O que aconteceu aqui Salvador? Que susto levei com esses corpos! Parece até a cena do Inferno de Dante. E olha que falo com conhecimento de causa, pois folheei a Divina Comédia e vi as gravuras – tentou brincar Ivanzir, embora estivesse se refazendo do impacto  que sentiu.”

Tenho, nessa página 74, a confirmação do título deste texto. Na continuidade desse diálogo responde o Salvador: “Rapaz, que luta! Essa madrugada uma camioneta de Barbacena chegou lotada de cadáveres. O responsável localizou o diretor da medicina e ofereceu cada corpo por 1 milhão(cerca de R$364 nos dias atuais). Se a universidade não quisesse já tinha comprador no Rio de Janeiro. Claro que o diretor não podia perder a oportunidade. Estávamos apenas com seis cadáveres, e o preço estava bom...”.

Aí, quando li, senti o mesmo cheiro de muitos anos atrás (mais ou menos em 1973) do formol. Revi a cena dantesca apresentada pelo diálogo. Os tanques cheios de corpos, corpos que estiveram nos manicômios, muitos deles nascidos nas Minas Gerais. E, também, revi a forma como alguns acadêmicos de medicina, como eu, os dissecavam e novamente dissecavam. Relembrei como nós, em nossos primeiros anos, lidávamos com estas “peças”, dissecadas por bisturis afoitos para uma boa nota em Anatomia I e II.

Só posso dizer que a maioria tinha a pele escurecida, mais ainda do que já fora. Eram “peças prontas para o primeiro ano, com a pele retirada, a musculatura exposta, membros destacados para estudos mais especializados...” disse o Salvador. Eu o re-escutei, agora com outros ouvidos essa frase que naturalizava o uso desses corpos sem nome, sem família, sem nenhuma identidade com os futuros médicos. Aí os mortos-vivos ensinavam aos que deveriam cuidar de vidas, estas sim consideradas humanas, no futuro.

Aprendi anatomia, neuro anatomia e dissecar, denominar, decorar e responder. A indagação é se todos nós aprendemos aquilo que colocamos no nosso convite de formatura: um médico só se tornaria capaz do cuidado do e com o Outro quando primeiro se tornar “humano”? Para um jovem acadêmico, eu, essa era a meta ética maior a atingir.

Por isso tive nesse mesmo convite uma homenagem “Ao cadáver desconhecido”, de Robilausky (1876), que termina dizendo: “... Seu nome, só Deus o sabe... Mas o destino inexorável deu-lhe o poder e a grandeza de servir à humanidade... A humanidade por ele passou indiferente. Este (o Anatômico) é o lugar em que a morte ufana socorrer à vida!”.

Convido-os, então, a conhecer um pouco do que foi esse passado manicomial e produtor de vidas nuas. Assistam o documentário ‘Em nome da razão’, de Helvecio Ratton(#), de 1979, são só 24 minutos. Um tempo que não foi devolvido em “um pouco de ar’’ pedido por uma pessoa dentro do hospício. Lá estavam os rotulados como “crônico social”, onde o subtítulo do documentário diz tudo: ‘um filme sobre os porões da loucura’.

No meio desse documentário é confirmada a frase de Mofatt: “aqui dentro não existe a dimensão temporal. O tempo é percebido apenas em função das necessidades fisiológicas. Há uma hora para comer, uma hora para dormir... O ócio é absoluto.” E ao fundo as mulheres desse campo de concentração psiquiátrico cantam o Hino Nacional: ou ficar a Pátria livre, ou morrer pelo Brasil.

Então, para os que já me chamaram de antipsiquiatra, sugiro que apenas me rotulem hoje de ‘Antimanicomial’. Os rótulos são necessários para que nos transformemos em possíveis objetos de venda, compra ou descarte. Mais ainda quando se trata dos “desviantes’’, principalmente os desviantes institucionais. Melhor seria que entendessem a necessidade da desinstitucionalização dos muros não visíveis, das muralhas da China (Kafka).

Esses espaços onde os corpos foram comercializáveis como vidas nuas, mesmo virando museus, sejam a Juliano Moreira, o Engenho de Dentro (Rio de Janeiro, RJ), o Juquery (Franco da Rocha, SP), ou qualquer outro manicômio, ainda perduram no mais profundo âmago da visão que mantemos desse Outro ensandecido, enlouquecido, despolitizado e despossuído. Em nós ainda persistem alguns manicômios e muros mentais.

Lamentavelmente, para mim como lembrança, inclusive incrustada em meu pulmão, a passagem pelos hospícios não me deixou nenhum outro estigma. Consegui ir além, entretanto ainda vejo e vi muitas reproduções destas instituições totais em novas ações da Saúde Mental. Os equipamentos substitutivos, ao serem só institucionalizados como neos ‘minicômios’ passam à residência não terapêutica e à resistência em nós. A oposição eles / a gente, normais/anormais, que sejamos incluídos aí, confirmam uma distinção entre nossos corpos sacralizados, territorializados, legítimos e esses Outros, somente vidas nuas.

Não se surpreendam, caso realmente assistam os documentários indicados, se fizerem analogias com os campos de concentração e extermínio nazistas. O confinamento, a chamada internação involuntária ou compulsória, à época de Barbacena, chamada internação à força, é que alimentou essa ‘indústria’ de cadáveres dissecáveis.

 Reeditamos essa justificativa da compulsoriedade das internações. Elas, como lei, estão presentes na Reforma, na Lei 10216 de 2001. Diante de novas ‘epidemias’, mesmo que as pesquisas confirmem os alcoolismos como a maior estatística, saímos em busca dos ‘malditos’ do Crack. As suas internações involuntárias passam a ser consideradas medidas de proteção, seja do indivíduo ou da sociedade. Como multidões indesejáveis e visíveis precisam de uma ‘solução final’. Voltamos à higienização eugênica do início do século XX?

As leis que foram criadas pelo regime nazista também justificavam seus atos e a banalização do mal. Novamente os mais estigmatizados serão o alvo principal dessas biopolíticas. Eram os trens, a caminho de Dachau ou Birkenau, que carregavam os corpos que foram utilizados, sob a alegação de um avanço científico para todos. Em especial para os mais puros, os mais eugenicamente normais, pertencentes ao modelo ideológico de sociedade racialmente limpa e portadora de humanidade.

Para além das câmeras de gás, das valas comuns, muitos dos loucos, ‘deficientes mentais’, ciganos, homossexuais, judeus ou não, se tornaram os VP, e os médicos também, depois do uso desses corpos, ora propositalmente infectados ora torturados, eram dissecados, como descreve Agamben: “... Excepcionalmente grave e dolorosa para os pacientes foi, além disso, a experimentação sobre a esterilização não cirúrgica, por meio de substâncias químicas ou radiações, destinada a servir à política eugenética do regime (nacional-socialista); numa proporção mais ocasional foram tentados transplantes de rins, sobre inflamações celulares, etc...”.(VP – Versuchenpersonen = cobaias humanas)

Não se surpreendam, portanto, e vejam estas infames ações sobre os infames da História como privilégio dos nazistas. Na Bioética podemos ensinar/aprender que também outros corpos, transhistoricamente, foram considerados vidas nuas. Foram e quiçá ainda sejam, cobaias humanas. Vejam a história nos EUA com a experimentação da sífilis, por 40 anos, mesmo com o a descoberta da penicilina, no “Estudo Tuskegee de Sífilis Não-Tratada em Homens Negros”, mais conhecido como Caso Tuskegee, que ocorreu no Condado de Macon, Alabama, Estados Unidos, de 1932 a 1972.

Mas o que há de transversal nessa relação entre os campos de concentração, os negros no Alabama e os loucos de Barbacena? Minha resposta é a biopolítica que alicerçou o uso, a disponibilidade, o despojamento, a desgraça, o aniquilamento da condição humana dos corpos pelos Estados de Exceção ou os que criaram as distinções do estar dentro ou estar fora da bíos. Os mesmos que criaram e ainda criam campos de isolamento onde tudo pode ser feito, como em Guantánamo, com outros corpos, em nome da vigilância ou da segurança.

Fica, então, para todos e todas as outras respostas a dar e inventar. Mas tenho ainda uma interrogação.  Após a leitura crítica daquele Holocausto, reportado pela Daniela Arbex, como refletir e responder a uma simples pergunta: quem serão os que, diante dos avanços da medicina e das biotecnologias, por exemplo, poderão ser consideradas vidas dignas de serem preservadas? E quais serão os ainda matáveis, as neo-vidas nuas?

Os outros dias de comemoração da Saúde Mental virão. Outros modos de produção de sujeição, seleção ou discriminação serão inventados. E eu continuarei afirmando, inclusive para as multidões, massas ou o povo: Barbacenas, NUNCA MAIS!

Copyright/left jorgemarciopereiradeandrade 2013/2014 (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet ou outros meios de comunicação para as massas; 2024 TODOS DIREITOS RESERVADOS 2025)

(TEXTO PUBLICADO - em primeira mão no EN CENA - A SAÚDE MENTAL EM MOVIMENTO - Insight - acesse e difunda - https://ulbra-to.br/encena/categorias/insight )

DOCUMENTÁRIOS INDICADOS –

(#) EM NOME DA RAZÃO, um filme sobre os porões da loucura – Helvecio Ratton (1979) https://www.youtube.com/watch?v=R7IFKjl23LU

A CASA DOS MORTOS – Débora Diniz (2008) – https://www.youtube.com/watch?v=fsAyVUuDNkQ

Os vivos esquecidos na Casa dos Mortos – Jorge Márcio Pereira de Andrade (2009) https://www.inclusive.org.br/?p=7525

Holocausto brasileiro: 60 mil morreram em manicômio de Minas Gerais (com galeria de fotos) https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/mg/2013-07-12/holocausto-brasileiro-60-mil-morreram-em-manicomio-de-minas-gerais.html

LEITURAS CRÍTICAS INDICADAS –

HOLOCAUSTO BRASILEIRO, Daniela Arbex, Geração Editorial, São Paulo, 2013.
HOMO SACER – O poder soberano e a vida nua I – Giorgio Agamben, Editora UFMG, Belo Horizonte, MG, 2007.

LEIAM TAMBÉM NO MEU BLOG –

O MANICÔMIO MORREU? PARA QUE O MANTEMOS VIVO EM NÓS? 
https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2015/05/o-manicomio-morreu-para-que-o-mantemos.html

SAÚDE MENTAL: quando a Bioética se encontra com a Resiliência https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/10/saude-mental-quando-bioetica-se_11.html

ALÉM DOS MANICÔMIOS - 18 de maio/ Dia Nacional de Luta Antimanicomial https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/05/alem-dos-manicomios-18-de-maio-dia.html

SOMOS TRABALHADORES COM "SAÚDE"? COM DOR OU ARDOR NAS LUTAS E LABUTAS? ATÉ QUANDO? https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2013/05/somos-trabalhadores-com-saude-com-dor.html

OS NOVOS MALDITOS E AS NOVAS SEGREGAÇÕES: da Lepra ao Crack https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/02/os-novos-malditos-e-as-novas.html

POR UMA MEDICINA QUE ENVELHEÇA COM DIGNIDADE https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/07/por-uma-medicina-que-envelheca-com.html

LOUCURA SEMPRE! DESINSTITUCIONALIZAÇÃO NÃO É INTERNAÇÃO, MUITO MENOS COMPULSÓRIA 
https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2014/05/loucura-sempre-desinstucionalizacao-nao.html

segunda-feira, 19 de março de 2012

NÃO SOMOS ANORMAIS, SOMOS APENAS CIDA-DOWNS....


Imagem publicada – foto colorida de arquivo pessoal de Gabriel Almeida Nogueira, um jovem de 24 anos, que convive e supervive com sua Síndrome de Down, vestido de uma camisa branca, a moda de outros jovens, dançando alegremente com sua namorada, que está com um vestido vermelho. A sua descontração e alegria foi coroada, além da comemoração de dois anos de namoro, com sua entrada para a Universidade Federal de Pelotas. Ele irá fazer o curso de Teatro, mas já trabalhou como ator no filme “City Down”, um lugar aonde quem vem fazer a diferença, e se torna a "anomalia", é uma criança “que nasce normal"... (foto publicada no Jornal eletrônico G1 Globo.com)

Mais uma vez no mês de março tomamos a Síndrome de Down para reflexão e comemoração. Em 21 de março deste ano ela também estará na ONU. Mais uma conquista, uma maior visibilização e mais reconhecimento desta diferença de ser e estar com uma deficiência.

Entretanto, ainda temos alguns passos na direção de sua indispensável e inegável condição cidadã. Em 2004 difundi a Declaração de Montreal sobre os Direitos Humanos de pessoas com deficiência Intelectual. Lá já se revelava uma constatação: “PREOCUPADOS por que a liberdade das pessoas com deficiências intelectuais para tomada de suas próprias decisões é frequentemente ignorada, negada e sujeita a abusos”.

Passaram-se alguns anos e ainda precisamos indagar sobre como é ser e estar com esta condição. Quando é que a sua igualdade de direitos passa pelo reconhecimento de suas diferenças? Respondo que ainda temos muitos preconceitos que atravessam um corpo, uma vida e uma pessoa com Síndrome de Down. Ainda muitos são vistos como a-normais.

Ainda os temos como a ‘’cavalgada de mongóis’’, na cena memorável do filme o 8º Dia? A sua associação com Genghis Khan povoa alguns imaginários ainda... Seriam eles os novos ‘bons selvagens’, agora oriundos da Mongólia, bem longe de todos os nossos Ocidentes?
Recentemente publiquei uma matéria sobre polêmicas geradas a partir da reivindicação de pais que movem ações contra hospitais, laboratórios de pré-natal e médicos. Eles se sentiram com seus direitos feridos ao não terem o diagnóstico prévio e preventivo da síndrome (vejam o texto A Pagar-se uma Pessoa com Síndrome de Down.

É o crescimento de demandas judiciais sobre “crianças indevidas” que as triagens pré-natais, os exames genéticos e a escolha dos pais de recém-nascidos ou não com a Síndrome ou quadros genéticos. Daí decorre as buscas judicias de reparação.
Podemos, então, interrogar, mais uma vez, o que buscamos, tanto os pais como a sociedade, é a concepção geneticamente perfeita? Não pensamos, bem lá no íntimo, como construir uma ‘’normalidade’’ para toda e qualquer gestação?

Podemos tecer julgamentos, éticos ou bioéticos, sobre os pais de Kalanit, 04 anos, cujos pais Ariel e Deborah Levy, demandam, no Oregon (USA), uma ação de 3 milhões de dólares por um possível ‘’erro’’ de diagnóstico preventivo da Síndrome de Down de sua filha?

Sim, podemos e devemos refletir sobre os pilares que sustentam sua reinvindicação. O primeiro deles é de difícil demolição: o conceito de anormalidade.

A Síndrome de Down por sua condição genética, ligada ao Cromossomo 21, é uma das principais condições humanas que nos leva em direção ao conceito de corpos diferenciados. Houve um tempo, pelo visto não tão remoto, que a igualdade do homem consigo mesmo, a identidade de si, implicava na igualdade com seu corpo. Buscam uma perfeição saudável dos corpos, agora aperfeiçoada pelas biotecnologias de prevenção no período pré-natal.

Mas o que fazemos diante de um corpo que tem ‘’logo de cara’’ uma série de diferenças anatômicas, fenotípicas? Como olhamos, classificamos e discriminamos, principalmente, no reino das perfeições, uma ‘’anormalidade intelectual’? Os sujeitos com a Síndrome tem uma diferença intelectual que muitos ainda chamam de ‘’retardo mental’’. Essa seria talvez mais forte que quaisquer outras diferenças visíveis.

Afirmo aí que o fundamento, ou melhor, o fundamentalismo que moveu os pais, tanto na Espanha como nos EUA, podendo estar em qualquer país do mundo, é movido pelos preconceitos e pelo racismo. Somos todos racistas ou preconceituosos?

A base da busca de perfeição tem gênese nos conceitos biomédicos de normalidade, até o último fio de cabelo. O mundo aspira, conspira em silêncios e emudecimentos, pela eugenia, com tempos cada dia mais direcionados a parecermos ‘’normais’’.

A obra de Michel Foucault, os Anormais, apresenta as gêneses sociais e políticas que construíram o conceito de anormalidade. No final do Século XIX, depois do nascimento das biopolíticas, Foucault apresenta três figuras que representam o “anormal” em momentos históricos distintos: o monstro humano, o indivíduo a corrigir e o onanista.

Quando se construiu o conceito de deficiência mental para os ‘’portadores’’ desta síndrome a Medicina os conectou com outro conceito: o de uma ‘’aberração’’ cromossômica. Esta associação favoreceu a possível inclusão dos seus portadores no campo das monstruosidades humanas. Mais tarde, institucionalizados, também passaram pelo processo de correção, tanto reabilitadora como educacional especial. Finalmente, para coroar o processo, tornam-se portadores de uma ‘’sexualidade’’ ora exacerbada ou então desviante...

O seu diagnóstico, hoje já modificado, desde o ‘’mongolismo’’, passando pelo ‘’retardamento mental’’ até a concepção de sindrômicos, tornou-se portador de um estigma: a anormalidade.

A construção da anormalidade é uma das formas de confirmação de nossos racismos trans-históricos. Desde os tempos bíblicos, como no demonstrou Castoriadis, os racismos se fundamentam na distinção entre os que estão dentro e os que estão lançados para o lado de fora de alguns ‘’muros invisíveis’’ dos preconceitos.
Há ainda a questão bioética que se suscita com a ideia e as teorias sobre o abortamento de crianças diagnosticadas, no período pré-natal, com a Síndrome de Down. Esta prática remonta aos experimentos nazifascistas que guardavam as cabeças destas crianças para as suas comprovações de degeneração racial. Estudemos as leis racistas do período nazista na Alemanha e encontraremos a segregação com posterior eliminação dos que tinha estes diagnósticos da anormalidade, principalmente as de origem genética.

Mas como eliminar de um processo coletivo e transcultural a presença, mesmo que subjacente, desses estereótipos, estigmas e preconceitos?

Procuremos, hoje, então as 21 formas diferenciadas de reconhecimento das diferenças e singularidades de um sujeito que vive com Síndrome de Down. A primeira seria o reconhecer seu direito inalienável e humano à Educação. Quando vivenciamos, atualmente, o seu processo de inclusão social e escolar cada dia mais nos vemos diante de suas demolições paradigmáticas. Estão, como em uma prova com barreiras, cada dia mais ultrapassando mais uma.

Assim como um atleta negro provou a Hitler que não houve, não havia e nem existirá um povo eleito e uma raça superior...

Já temos mais que provas, para além dos Enades ou Enems, que até a Universidade não é mais uma barreira intransponível.

Os jovens Alysson, Kallil e Gabriel, nomes mais recentes, comprovam o que outros CIDA-DOWNS, já realizaram. Eles entraram, com louvor e dedicação, nas salas de aula das universidades brasileiras, em todas as latitudes e longitudes. Caminham no direito a uma nova gramática civil: não são mais os únicos ‘’anormais’. São e serão apenas cidadãos e cidadãs. São iguais como lhes afirma o Decreto 6949/2009 (a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência), e que se cumpram seus mais de 21 direitos HUMANOS...

Mas não bastam essas ‘’raras’’ presenças no meio universitário. Lá também devemos continuar promovendo, do ensino fundamental até as pós-graduações, a ruptura de um paradigma biomédico: a reificação das nossas deformidades humanas, nossas imperfeições genéticas, nossos pequenos defeitos. Temos de ir para além dos narcisismos das pequenas diferenças, são elas que nos tornam apenas HUMANOS. Eis uma tarefa imprescindível para a Educação inclusiva...

Somos, portanto, demasiadamente humanos, mas ainda distanciados de um re-conhecimento do Outro e da sua indispensável diferença e diversidade. Por isso se nos colocássemos dentro de uma cidade ou mundo dos que tratamos e excluímos talvez pudéssemos ‘’sentir na pele’’, esse verdadeiro Eu, o quanto “uma perturbação introduzida na nossa configuração (real e simbólica) do corpo é uma perturbação introduzida na coerência (ético-política) do mundo...”.

Podemos, enfim, dizer que somos todos Cidadãos ou Cidadãs ou apenas anomalias ambulantes que precisam de correção, esquadrinhamento, classificação e tratamento eugênico e higienizante, conforme a biopolítica para as Vidas Nuas?

No Século XXI os 21 também se declaram com direito às suas a-normalidades..., mesmo que para isso tenham de nos convidar para outra sessão de cinema, pois outros City Down virão ou uma próxima formatura de jovens Cida-downs, nas muitas universidades do Brasil e do Mundo.

PS- Caro Gabriel Nogueira não o inclui na minha “Carta a um Jovem com Síndrome de Down na Universidade” pelo fato do texto ter sido escrito antes que eu pudesse comemorar mais esta vitória e quebra de um velho paradigma, em 14/03.
Porém, gostaria que você lembrasse a todos/todas como foi este seu percurso até a Universidade, conforme a matéria publicada: ...”O primeiro filho de um casal pelotense sempre estudou em escolas normais. “Ele nunca repetiu o ano, sempre foi muito esforçado”, diz Joseane. Quando sua irmã mais nova decidiu cursar jornalismo, Gabriel entusiasmou-se com a ideia e também quis virar calouro. “A ideia foi dele. Nos questionávamos se ele iria conseguir, mas ele não se deixa intimidar, é de bem com a vida e conseguiu uma nota suficiente para entrar”.


Copyright jorgemarciopereiradeandrade 2012/2013 (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet) TODOS DIREITOS RESERVADOS 2025

Matérias pesquisadas na Internet:

FILME “CITY DOWN – A história de um diferente” – 2011, DIREÇÃO: JOSÉ MATTOS/ PAULO CÉSAR NOGUEIRA
Vídeo reportagem Assista emhttps://www.youtube.com/watch?v=brhFBOVIoAg
Site oficial do Filmehttps://citydown.webnode.com.br/

Para DOWN-load
- https://www.g1filmes.com/baixar/download-city-down-a-historia-de-um-diferente-dvdrip-nacional/


Jovem com Síndrome de Down é aprovado em universidade do RS
https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2012/03/jovem-com-sindrome-de-down-e-aprovado-em-universidade-do-rs.html

DECLARAÇÃO DE MONTREAL SOBRE A DEFICIÊNCIA INTELECTUAL- DefNet
www.defnet.org.br/decl_montreal.htm

Will The Down syndrome Children Disappear?  https://www.bioethics.net/2009/09/will-the-down-syndrome-children-disappear/

Bioethicist: Parents shouldn’t have to sue over ‘wrongful birth’ of child with Down syndrome https://www.bioethics.net/news/bioethicist-parents-shouldnt-have-to-sue-over-wrongful-birth-of-child-with-down-syndrome/

A race against time for Down syndrome research https://www.bioedge.org/index.php/bioethics/bioethics_article/9700

Novas Fronteiras da Genética: Mentalidade Eugenésica https://bioetica.blog.br/category/eugenico/

Bioética, deficiência e direitos reprodutivos: entrevista com a Dra. Janaína Penalva https://www.inclusive.org.br/?p=21178

Graças ao Brasil, Dia da Síndrome de Down, 21/3, será comemorado pelos países da ONUhttps://www.inclusive.org.br/?p=22163

Indicações de Leitura -
As Encruzilhadas Do Labirinto 3 Mundo Fragmentado – Cornelius CASTORIADIS, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, RJ , 1992.

Políticas do Corpo (Elementos para uma história das práticas corporais) – Denise Bertuzzi de Sant’Anna (org.) , Editora Estação Liberdade, São Paulo, SP, 1995

Admirável Nova Genética: Bioética e Sociedade – Debora Diniz (org.), Editora UNB/Letras Livres, Brasília, DF, 2005.

Os Anormais – Michel Foucault – Editora Martins Fontes, São Paulo, SP, 2010.

LEIA TAMBÉM NO BLOG
SINDROME DE DOWN E REJEIÇÃO: UM CORPO ESTRANHO ENTRE NÓS? https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/10/sindrome-de-down-e-rejeicao-um-corpo.html

O VIGESSIMO PRIMEIRO DIA - CINEMA E SÍNDROME DE DOWNhttps://infoativodefnet.blogspot.com/2010/03/o-vigessimo-primeiro-dia-cinema-e.html

A PAGAR-SE UMA PESSOA COM SÍNDROME DE DOWN https://infoativodefnet.blogspot.com/2010/09/pagar-se-uma-pessoa-com-sindrome-de.html

01 NEGRO + 01 DOWN + 01 POETA = 01 DIA PARA NÃO SE ESQUECER DE INCLUIRhttps://infoativodefnet.blogspot.com/2011/03/01-negro-01-down-01-poeta-01-dia-para.html 

CARTA A UM JOVEM COM SÍNDROME DE DOWN NA UNIVERSIDADE https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/02/carta-um-jovem-com-sindrome-de-down-na.html

VAN GOGH - A CONSTRUÇÃO DE UMA A-NORMALIDADE https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/10/van-gogh-construcao-de-uma-normalidade.html

VULNERAÇÃO E MÍDIA NO COTIDIANO DAS DEFICIÊNCIAS https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/04/vulneracao-e-midia-no-cotidiano-das.html