Mostrando postagens com marcador Declaração de Montreal. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Declaração de Montreal. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 2 de maio de 2012

INTERDIÇÃO, DEFICIÊNCIA INTELECTUAL E DIREITOS HUMANOS.

Imagem publicada- A foto colorida de um homem sorridente, inglês, que completou uma maratona após 41 dias, percorrendo apenas 1,5km por dia, com auxílio de um apoio especial para caminhar e uma equipe de amigos e familiares ao seu redor. A matéria não tem a ver diretamente com interdição, mas se pode supor o que teria acontecido com ele, caso fosse interditado, após o acidente que o levou a um quadro psicomotor semelhante a uma paralisia cerebral grave. Podemos dizer que, após um acidente, como o de Eddie Kidd, perdemos todas as nossas habilidades e capacidades? E, quando se trata de uma criança ou jovem com Síndrome de Down ou Paralisia Cerebral? A eles não é permitido, depois de diagnosticados/julgados "incapazes", de correr a corrida da Vida Livre e sem Interdições?

EU NÃO INTEDITO, NÓS NÃO OS INTERDITAMOS, PORÉM ELES AINDA INTERDITAM.

No dia 03 de maio será realizada uma audiência sobre a Interdição Legal total de pessoas com deficiência intelectual e pessoas com paralisia cerebral severa. Ocorrerá um debate proposto pelos deputados Mandetta (DEM-MS) e Rosinha da Adefal (PTdo B-AL).

O tema é de meu total interesse/dedicação há muitos anos. Já participei há mais de 15 anos atrás de um debate promovido no Centro Cultural Banco do Brasil, RJ, de uma acirrada discussão sobre a interdição total de pessoas com deficiência intelectual. Há época já manifestava minhas inquietações bioéticas e sociais sobre o tema.

A palavra interdição, para além de seu sentido legal, implica, para o senso comum, a restrição de alguns direitos fundamentais. É a proibição para os atos da vida civil por aqueles que forem considerados “incapazes”. Nessa perspectiva é que sempre interrogarei sua possibilidade, necessidade e sua aplicabilidade. Continuo sendo apenas um defensor ativista de direitos humanos ao refletir sobre ela.

Já há uma visão mundial sobre o tema. Foi expresso na Declaração de Montreal sobre a Deficiência Intelectual, em 2004, na cidade de Montreal, Canadá. Tive a oportunidade de traduzi-la para o português. Venho difundindo-a desde então para que possamos aprofundar e rever nossos preconceitos sobre as deficiências intelectuais e os sujeitos que as vivenciam.

E, lá fica claro que o paradigma que irá sustentar essa declaração que foi proposta pela OPAS/OMS, ambas no âmbito da medicina e da saúde, é o que irá ser o eixo principal do que se estabeleceu dois anos depois com a Convenção (ONU-2006). Em ambos os documentos os princípios fundadores são os Direitos Humanos. Mas que princípios norteariam uma interdição legal total?

Em princípio a palavra interdição vai de encontro com um dos direitos fundamentais, quando escolhe ou elege um ou mais sujeitos, a partir de sua condição de saúde, idade ou situação de vulnerabilidade. Os que estão, no momento, sendo o alvo dessa audiência são as pessoas com síndrome de Down e as com paralisias cerebrais graves.
No campo da Síndrome de Down já escrevi sobre sua autonomia e os exemplos de sua inclusão social só tem comprovado que são "cidadãos e cidadãs". No caso de pessoas com Paralisias Cerebrais ainda temos um campo nebuloso e confuso sobre sua classificação. O conceito de grave vai até onde?

É aí que há sempre o perigo do preconceito pela manutenção do paradigma biomédico. As pessoas com paralisias cerebrais são vistas, objetivadas, assujeitas e judicializadas como "doentes" ou "deficientes mentais".

Há sim quadros ou condições de saúde que levam a um maior número de restrições ou perdas de funcionalidade. Porém são em número muito menor a cada dia que passa. E, para o direito, na visão reducionista, são as pessoas “portadoras”, incapazes com “necessidades especiais”. Ainda não há uma abertura para os novos conceitos e visões sobre estes cidadãos/ãs, principalmente em algumas instâncias do Judiciário.

A noção de severidade dos quadros foi e é a maior justificativa também para o processo de institucionalização de pessoas com paralisias cerebrais ou síndrome de down. Ambos os quadros formaram o que se conceituava na CID-10 quadros de "retardamento mental". Há ainda muitos operadores do direito e profissionais da saúde que se baseiam nessas visões e conceitos arraigados erroneamente.

E para tais graves, moderados ou leves, ou então, historicamente, os imbecis, os débeis, os cretinos, ou, reducionisticamente, os retardados mentais, a melhor forma de cuidado e reabilitação só poderia ocorrer em espaços especializados e sob internação.

A maior defesa que já vi da interdição sempre foi direcionada por entidades que cuidam ou prestam assistência contínua a esses cidadãos e cidadãs sob reclusão. E a mais veemente foram as que famílias, principalmente mães, defendiam no sentido de “preservar o futuro” de seus filhos com deficiência considerada como “invalidez total”.

Mas o que é essa interdição judicial? Em pesquisa na Internet encontrei um dos documentos mais recentes sobre o tema. É do Chile (2011) e trata da “interdicción, proteción patrimonial y derechos humanos” (interdição, proteção patrimonial e direitos humanos). Nele se esclarece que a interdição é uma sentença judicial cujo efeito principal é a substituição das escolhas e decisões de uma pessoa com deficiência pelas de outra pessoa, que no direito recebe o nome de curador.

Esta figura está prevista também na Declaração de Montreal. Ressalta-se nela que “todas as pessoas com deficiências intelectuais são cidadãos plenos, iguais perante a lei e como tais devem exercer seus direitos com base no respeito nas diferenças e nas suas escolhas e decisões individuais”. Portanto, como na Convenção, estão garantidas as suas capacidades de decisão e escolha.

Então, considerando-se esta afirmação, em que condições poderiam ser solicitadas as interdições? Para a Declaração de Montreal: “A. As pessoas com deficiências intelectuais têm os mesmos direitos que outras pessoas de tomar decisões sobre suas próprias vidas. Mesmo que algumas pessoas possam ter dificuldades de fazer escolhas, formular decisões e comunicar suas preferências, elas podem tomar decisões acertadas para melhorar seu desenvolvimento pessoal, seus relacionamentos e sua participação nas suas comunidades;...”

É, então, o Estado que deverá proporcionar a proteção e a garantia de que estes cidadãos e cidadãs possam exercer, com os avanços legais e sócio-políticos, o acesso e utilização de serviços adequados que sejam baseados nas necessidades, assim como no direito ao consentimento informado e livre. 

Com os avanços em ajudas técnicas, tecnologias assistivas e outros recursos das novas tecnologias quem são os que não seriam “capazes” da expressão de suas vontades e decisões?

No presente e no futuro sabemos que ainda teremos muitos excluídos do mundo digital e das novas tecnologias de informação, e entre estes estarão muitos sujeitos com deficiência intelectual. Porém o nosso dever será o de, caminhando no desenho universal, atender todas as suas necessidades, especificidades, “disfuncionalidades” ou incapacidades, e, principalmente as suas singularidades.

Tanto para a Declaração de Montreal como em outros documentos de cunho universalista encontraremos que o exercício da curatela deve ser relativizado. Porém o que encontramos é uma dura realidade de manutenção de pessoas com deficiência intelectual ou com paralisia cerebral em regimes de cativeiros, hospitais ou espaços de segregação. Muitos deles promovidos pelas próprias famílias desses sujeitos assujeitados.

É, dentro dessa realidade, brasileira em especial, que precisamos garantir que “as pessoas com deficiências intelectuais devem ser apoiadas para que tomem suas decisões, as comuniquem e estas sejam respeitadas ...”

Com a recente tomada de posição do nosso Governo com o Plano Viver sem Limites, e a decisão de subsidiar as pesquisas e desenvolvimentos em tecnologias assistivas, deveremos olhar para o futuro na tomada de uma decisão legal de interdição.
Aqueles ou aquelas que, hoje, não estão podendo se expressar por meios já conhecidos, em futuro não muito longínquo, utilizará meios avançados e nada onerosos para a comunicação de suas opiniões, ideias, sentimentos e decisões.

Já em 2004, em Montreal se afirmava: “B. Sob nenhuma condição ou circunstância as pessoas com deficiências intelectuais devem ser consideradas totalmente incompetentes para tomar decisões baseadas apenas em sua deficiência. Somente em circunstâncias mais extraordinárias o direito legal das pessoas com deficiência intelectual para tomada de suas próprias decisões poderá ser legalmente interditado.”

Há, portanto uma expressão afirmativa do direito de pessoas com deficiência intelectual, ou mesmo com paralisia cerebral, que não devem ser sinônimos ou equivalências. A maioria das pessoas com paralisias cerebrais NÃO SÃO pessoas com deficiências intelectuais. Apenas uma porcentagem pequena poderá apresentar alterações cognitivas ou restrições de funcionalidade psicomotora que prejudicará sua interação e expressão ao meio ambiente.

Ambas as condições devem ser expressão de direitos humanos. Portanto direitos que são inalienáveis, indivisíveis, interdependentes, interelacionados e universais. E, se fundamentarmos, nesses princípios, a prática legal das interdições, a partir desse encontro e debate na Câmara dos Deputados, terá de abandonar o paradigma biomédico.

Surgirá, inclusive com a presença, que espero não falte de nossa ministra Maria do Rosário Nunes, da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, a efetivação dos Direitos Humanos como linha mestra de todos os novos modelos legais para pessoas com deficiência, sejam intelectuais ou não.

Lembrando a temporalidade vertiginosa em que vivemos, assim como as necessárias mudanças legais, os processos de interdição não devem ficar restritos aos laudos de peritos forenses ou psiquiatras. O nosso olhar médico nos leva para os ‘’mutirões’’ de ações de interdição, onde a Síndrome de Down está no mesmo nível que as pessoas com Doença de Alzheimer.Ainda trabalhamos com a CID-10 e desconhecemos a CIF-2006.

E as curatelas deverão ser de uma curta duração, principalmente aquelas que envolvem interesses patrimoniais ou alegações unicamente prestadas pelos familiares. Portanto, nesse campo é indispensável que o Estado e o Poder Judiciário observem que: “Qualquer interdição deverá ser por um período de tempo limitado, sujeito as revisões periódicas e, com respeito apenas a estas decisões, pelas quais será determinada uma autoridade independente, para determinar a capacidade legal”.

Finalmente, reforçando o que já foi declarado em Montreal, afirmar que: “C. A autoridade independente, acima mencionada, deve encontrar evidências claras e consistentes de que apesar dos apoios necessários, todas as alternativas restritivas de indicar e nomear um representante pessoal substituto foram, previamente, esgotadas. Esta autoridade independente deverá respeitar o direito a um processo jurídico, incluindo o direito individual de ser notificado, ser ouvido, apresentar provas ou testemunhos a seu favor, ser representado por um ou mais pessoas de sua confiança e escolha, para sustentar qualquer evidência em uma audiência, assim como apelar de qualquer decisão perante um tribunal superior”.

Era esse olhar para o futuro dos direitos humanos de pessoas com deficiência intelectual que há 08 anos se declarou. HOJE, como parte de um movimento para a afirmação política das pessoas com deficiência, qual visão futurista devemos criar em relação ao nosso próprio futuro?

Excelências, Meritíssimos, Ilustríssimos Senhores e Senhoras, que já conseguiram afirmar o direito sexual e reprodutivo das mulheres com a recente decisão do STJ sobre anencefalia, lhes faço um único pedido: - Eu, aqui cidadão brasileiro, desejo de coração que suas mentes continuem no processo evolutivo e transformador de todas as nossas leis.

Então, os “cida-downs” e os chamados de “paralíticos” poderão se orgulhar de um novo papel a exercer: serão os respeitados auto defensores dos seus direitos humanos. Não há como exercitar a cidadania sem um exercício de nossas autonomias e desejos mais profundos.

Comemorei, com minha família reunida, o 102º (centésimo segundo) aniversário de meu pai. Alguns devem se perguntar sobre sua capacidade de decisão, ou sua interdição. Com sua lucidez, garantida pelo desejo de vida, ainda é e será respeitado em suas decisões, mesmo as que nos pareçam estarem erradas ou contra nossa vontade.

Eu lhe perguntei se ainda irá acompanhar a sua querida Romaria a pé até Aparecida do Norte, distante mais de 300 km de minha cidade natal, ponderando sobre as baixas temperaturas e o risco de saúde de um ancião, e ele afirmativamente me respondeu: - “E por que não iria? Eu ainda não morri ...”. Ele irá como o maratonista com Paralisia Cerebral até o fim de sua jornada, seguindo sua fé e sua determinação/decisão.

E podem ter certeza de que ele, se interrogado for, afirmará como um desembargador que negou uma interdição recentemente noticiada: “De qualquer sorte, não se pode considerar a idade avançada do apelado (74 anos, atualmente) ou a preferência deste por um estilo de vida mais simples como motivos para interditá-lo. Veja-se, além disso, que velhice não se confunde com senilidade"...

Assim não podemos continuar confundindo a situação de deficiência com a noção de incapacidade total, para sempre, decretada. A interdição total deverá ser a exceção da exceção, e, ainda assim respeitar, antes que velhos códigos, a urgente ativação, transversalidade e implementação dos Direitos Humanos.

E, muito raramente, muito poucos, quase nenhum sujeito com deficiência intelectual ou com paralisia cerebral dita severa estará sendo submetido à perda de suas liberdades...

EU, NO FUTURO, ESPERO NÃO ME INTERDITAREI, NÓS NÃO SEREMOS INTERDITADOS, E ELES, TORNADOS MAIS JUSTOS E SÁBIOS, APRENDERÃO O QUE É SER/ESTAR INTERDITADO... POIS TODOS/TODAS, UM DIA, APRENDEMOS A VIVER/CONVIVER COM LIMITES...


Copyright jorgemarciopereiradeandrade 2012/2018- 2024 Ad infinitum (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet e outros meios de comunicação de massa) TODOS DIREITOS RESERVADOS 2025

NA INTERNET – Fontes e notícias

Interdição legal de pessoas com deficiência intelectual será discutida em audiência
https://www2.camara.gov.br/agencia/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/416052-INTERDICAO-LEGAL-DE-PESSOAS-COM-DEFICIENCIA-INTELECTUAL-SERA-DISCUTIDA-EM-AUDIENCIA.html

DECLARAÇÃO DE MONTREAL SOBRE A DEFICIÊNCIA INTELECTUAL
https://www.defnet.org.br/decl_montreal.htm

PLANO VIVER SEM LIMITES - Plano beneficia 45,6 milhões com deficiência https://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2011/11/17/plano-beneficia-45-6-milhoes-com-deficiencia

Tribunal nega pedido de interdição: velhice não se confunde com senilidade
https://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=visualiza_noticia&id_caderno=20&id_noticia=82239

Homem com paralisia cerebral completa Maratona de Londres após 51 dias 
https://www.estadao.com.br/noticias/internacional,homem-com-paralisia-cerebral-completa-maratona-de-londres-apos-51-dias,cional,homem-com-paralisia-cerebral-completa-maratona-de-londres-apos-51-dias,729002,0.htm

LEITURA INDICADA:

Derechos de las Personas com Discapacidad Mental *Chile (em PDF) https://www.senadis.gob.cl/descargas/centro/tematicos/manual_dicapMental.pdf

LEIA TAMBÉM NO BLOG: sobre Deficiências Intelectuais

DEFICIENTES INTELECTUAIS - Encarcerar é a solução final?   https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/01/deficientes-intelectuais-encarcerar-e.html

O MELHOR É A JAULA OU O GALINHEIRO? Deficientes intelectuais e o seu encarceramento
https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/05/o-melhor-e-jaula-ou-o-galinheiro.html

INCLUSÃO/EXCLUSÃO - duas faces da mesma moeda deficitária? https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/02/inclusaoexclusao-duas-faces-da-mesma.html

NÃO SOMOS ANORMAIS, SOMOS APENAS CIDA-DOWNS.... https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/03/nao-somos-anormais-somos-apenas-cida.html

VULNERAÇÃO E MÍDIA NO COTIDIANO DAS DEFICIÊNCIAS
https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/04/vulneracao-e-midia-no-cotidiano-das.html

segunda-feira, 19 de março de 2012

NÃO SOMOS ANORMAIS, SOMOS APENAS CIDA-DOWNS....


Imagem publicada – foto colorida de arquivo pessoal de Gabriel Almeida Nogueira, um jovem de 24 anos, que convive e supervive com sua Síndrome de Down, vestido de uma camisa branca, a moda de outros jovens, dançando alegremente com sua namorada, que está com um vestido vermelho. A sua descontração e alegria foi coroada, além da comemoração de dois anos de namoro, com sua entrada para a Universidade Federal de Pelotas. Ele irá fazer o curso de Teatro, mas já trabalhou como ator no filme “City Down”, um lugar aonde quem vem fazer a diferença, e se torna a "anomalia", é uma criança “que nasce normal"... (foto publicada no Jornal eletrônico G1 Globo.com)

Mais uma vez no mês de março tomamos a Síndrome de Down para reflexão e comemoração. Em 21 de março deste ano ela também estará na ONU. Mais uma conquista, uma maior visibilização e mais reconhecimento desta diferença de ser e estar com uma deficiência.

Entretanto, ainda temos alguns passos na direção de sua indispensável e inegável condição cidadã. Em 2004 difundi a Declaração de Montreal sobre os Direitos Humanos de pessoas com deficiência Intelectual. Lá já se revelava uma constatação: “PREOCUPADOS por que a liberdade das pessoas com deficiências intelectuais para tomada de suas próprias decisões é frequentemente ignorada, negada e sujeita a abusos”.

Passaram-se alguns anos e ainda precisamos indagar sobre como é ser e estar com esta condição. Quando é que a sua igualdade de direitos passa pelo reconhecimento de suas diferenças? Respondo que ainda temos muitos preconceitos que atravessam um corpo, uma vida e uma pessoa com Síndrome de Down. Ainda muitos são vistos como a-normais.

Ainda os temos como a ‘’cavalgada de mongóis’’, na cena memorável do filme o 8º Dia? A sua associação com Genghis Khan povoa alguns imaginários ainda... Seriam eles os novos ‘bons selvagens’, agora oriundos da Mongólia, bem longe de todos os nossos Ocidentes?
Recentemente publiquei uma matéria sobre polêmicas geradas a partir da reivindicação de pais que movem ações contra hospitais, laboratórios de pré-natal e médicos. Eles se sentiram com seus direitos feridos ao não terem o diagnóstico prévio e preventivo da síndrome (vejam o texto A Pagar-se uma Pessoa com Síndrome de Down.

É o crescimento de demandas judiciais sobre “crianças indevidas” que as triagens pré-natais, os exames genéticos e a escolha dos pais de recém-nascidos ou não com a Síndrome ou quadros genéticos. Daí decorre as buscas judicias de reparação.
Podemos, então, interrogar, mais uma vez, o que buscamos, tanto os pais como a sociedade, é a concepção geneticamente perfeita? Não pensamos, bem lá no íntimo, como construir uma ‘’normalidade’’ para toda e qualquer gestação?

Podemos tecer julgamentos, éticos ou bioéticos, sobre os pais de Kalanit, 04 anos, cujos pais Ariel e Deborah Levy, demandam, no Oregon (USA), uma ação de 3 milhões de dólares por um possível ‘’erro’’ de diagnóstico preventivo da Síndrome de Down de sua filha?

Sim, podemos e devemos refletir sobre os pilares que sustentam sua reinvindicação. O primeiro deles é de difícil demolição: o conceito de anormalidade.

A Síndrome de Down por sua condição genética, ligada ao Cromossomo 21, é uma das principais condições humanas que nos leva em direção ao conceito de corpos diferenciados. Houve um tempo, pelo visto não tão remoto, que a igualdade do homem consigo mesmo, a identidade de si, implicava na igualdade com seu corpo. Buscam uma perfeição saudável dos corpos, agora aperfeiçoada pelas biotecnologias de prevenção no período pré-natal.

Mas o que fazemos diante de um corpo que tem ‘’logo de cara’’ uma série de diferenças anatômicas, fenotípicas? Como olhamos, classificamos e discriminamos, principalmente, no reino das perfeições, uma ‘’anormalidade intelectual’? Os sujeitos com a Síndrome tem uma diferença intelectual que muitos ainda chamam de ‘’retardo mental’’. Essa seria talvez mais forte que quaisquer outras diferenças visíveis.

Afirmo aí que o fundamento, ou melhor, o fundamentalismo que moveu os pais, tanto na Espanha como nos EUA, podendo estar em qualquer país do mundo, é movido pelos preconceitos e pelo racismo. Somos todos racistas ou preconceituosos?

A base da busca de perfeição tem gênese nos conceitos biomédicos de normalidade, até o último fio de cabelo. O mundo aspira, conspira em silêncios e emudecimentos, pela eugenia, com tempos cada dia mais direcionados a parecermos ‘’normais’’.

A obra de Michel Foucault, os Anormais, apresenta as gêneses sociais e políticas que construíram o conceito de anormalidade. No final do Século XIX, depois do nascimento das biopolíticas, Foucault apresenta três figuras que representam o “anormal” em momentos históricos distintos: o monstro humano, o indivíduo a corrigir e o onanista.

Quando se construiu o conceito de deficiência mental para os ‘’portadores’’ desta síndrome a Medicina os conectou com outro conceito: o de uma ‘’aberração’’ cromossômica. Esta associação favoreceu a possível inclusão dos seus portadores no campo das monstruosidades humanas. Mais tarde, institucionalizados, também passaram pelo processo de correção, tanto reabilitadora como educacional especial. Finalmente, para coroar o processo, tornam-se portadores de uma ‘’sexualidade’’ ora exacerbada ou então desviante...

O seu diagnóstico, hoje já modificado, desde o ‘’mongolismo’’, passando pelo ‘’retardamento mental’’ até a concepção de sindrômicos, tornou-se portador de um estigma: a anormalidade.

A construção da anormalidade é uma das formas de confirmação de nossos racismos trans-históricos. Desde os tempos bíblicos, como no demonstrou Castoriadis, os racismos se fundamentam na distinção entre os que estão dentro e os que estão lançados para o lado de fora de alguns ‘’muros invisíveis’’ dos preconceitos.
Há ainda a questão bioética que se suscita com a ideia e as teorias sobre o abortamento de crianças diagnosticadas, no período pré-natal, com a Síndrome de Down. Esta prática remonta aos experimentos nazifascistas que guardavam as cabeças destas crianças para as suas comprovações de degeneração racial. Estudemos as leis racistas do período nazista na Alemanha e encontraremos a segregação com posterior eliminação dos que tinha estes diagnósticos da anormalidade, principalmente as de origem genética.

Mas como eliminar de um processo coletivo e transcultural a presença, mesmo que subjacente, desses estereótipos, estigmas e preconceitos?

Procuremos, hoje, então as 21 formas diferenciadas de reconhecimento das diferenças e singularidades de um sujeito que vive com Síndrome de Down. A primeira seria o reconhecer seu direito inalienável e humano à Educação. Quando vivenciamos, atualmente, o seu processo de inclusão social e escolar cada dia mais nos vemos diante de suas demolições paradigmáticas. Estão, como em uma prova com barreiras, cada dia mais ultrapassando mais uma.

Assim como um atleta negro provou a Hitler que não houve, não havia e nem existirá um povo eleito e uma raça superior...

Já temos mais que provas, para além dos Enades ou Enems, que até a Universidade não é mais uma barreira intransponível.

Os jovens Alysson, Kallil e Gabriel, nomes mais recentes, comprovam o que outros CIDA-DOWNS, já realizaram. Eles entraram, com louvor e dedicação, nas salas de aula das universidades brasileiras, em todas as latitudes e longitudes. Caminham no direito a uma nova gramática civil: não são mais os únicos ‘’anormais’. São e serão apenas cidadãos e cidadãs. São iguais como lhes afirma o Decreto 6949/2009 (a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência), e que se cumpram seus mais de 21 direitos HUMANOS...

Mas não bastam essas ‘’raras’’ presenças no meio universitário. Lá também devemos continuar promovendo, do ensino fundamental até as pós-graduações, a ruptura de um paradigma biomédico: a reificação das nossas deformidades humanas, nossas imperfeições genéticas, nossos pequenos defeitos. Temos de ir para além dos narcisismos das pequenas diferenças, são elas que nos tornam apenas HUMANOS. Eis uma tarefa imprescindível para a Educação inclusiva...

Somos, portanto, demasiadamente humanos, mas ainda distanciados de um re-conhecimento do Outro e da sua indispensável diferença e diversidade. Por isso se nos colocássemos dentro de uma cidade ou mundo dos que tratamos e excluímos talvez pudéssemos ‘’sentir na pele’’, esse verdadeiro Eu, o quanto “uma perturbação introduzida na nossa configuração (real e simbólica) do corpo é uma perturbação introduzida na coerência (ético-política) do mundo...”.

Podemos, enfim, dizer que somos todos Cidadãos ou Cidadãs ou apenas anomalias ambulantes que precisam de correção, esquadrinhamento, classificação e tratamento eugênico e higienizante, conforme a biopolítica para as Vidas Nuas?

No Século XXI os 21 também se declaram com direito às suas a-normalidades..., mesmo que para isso tenham de nos convidar para outra sessão de cinema, pois outros City Down virão ou uma próxima formatura de jovens Cida-downs, nas muitas universidades do Brasil e do Mundo.

PS- Caro Gabriel Nogueira não o inclui na minha “Carta a um Jovem com Síndrome de Down na Universidade” pelo fato do texto ter sido escrito antes que eu pudesse comemorar mais esta vitória e quebra de um velho paradigma, em 14/03.
Porém, gostaria que você lembrasse a todos/todas como foi este seu percurso até a Universidade, conforme a matéria publicada: ...”O primeiro filho de um casal pelotense sempre estudou em escolas normais. “Ele nunca repetiu o ano, sempre foi muito esforçado”, diz Joseane. Quando sua irmã mais nova decidiu cursar jornalismo, Gabriel entusiasmou-se com a ideia e também quis virar calouro. “A ideia foi dele. Nos questionávamos se ele iria conseguir, mas ele não se deixa intimidar, é de bem com a vida e conseguiu uma nota suficiente para entrar”.


Copyright jorgemarciopereiradeandrade 2012/2013 (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet) TODOS DIREITOS RESERVADOS 2025

Matérias pesquisadas na Internet:

FILME “CITY DOWN – A história de um diferente” – 2011, DIREÇÃO: JOSÉ MATTOS/ PAULO CÉSAR NOGUEIRA
Vídeo reportagem Assista emhttps://www.youtube.com/watch?v=brhFBOVIoAg
Site oficial do Filmehttps://citydown.webnode.com.br/

Para DOWN-load
- https://www.g1filmes.com/baixar/download-city-down-a-historia-de-um-diferente-dvdrip-nacional/


Jovem com Síndrome de Down é aprovado em universidade do RS
https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2012/03/jovem-com-sindrome-de-down-e-aprovado-em-universidade-do-rs.html

DECLARAÇÃO DE MONTREAL SOBRE A DEFICIÊNCIA INTELECTUAL- DefNet
www.defnet.org.br/decl_montreal.htm

Will The Down syndrome Children Disappear?  https://www.bioethics.net/2009/09/will-the-down-syndrome-children-disappear/

Bioethicist: Parents shouldn’t have to sue over ‘wrongful birth’ of child with Down syndrome https://www.bioethics.net/news/bioethicist-parents-shouldnt-have-to-sue-over-wrongful-birth-of-child-with-down-syndrome/

A race against time for Down syndrome research https://www.bioedge.org/index.php/bioethics/bioethics_article/9700

Novas Fronteiras da Genética: Mentalidade Eugenésica https://bioetica.blog.br/category/eugenico/

Bioética, deficiência e direitos reprodutivos: entrevista com a Dra. Janaína Penalva https://www.inclusive.org.br/?p=21178

Graças ao Brasil, Dia da Síndrome de Down, 21/3, será comemorado pelos países da ONUhttps://www.inclusive.org.br/?p=22163

Indicações de Leitura -
As Encruzilhadas Do Labirinto 3 Mundo Fragmentado – Cornelius CASTORIADIS, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, RJ , 1992.

Políticas do Corpo (Elementos para uma história das práticas corporais) – Denise Bertuzzi de Sant’Anna (org.) , Editora Estação Liberdade, São Paulo, SP, 1995

Admirável Nova Genética: Bioética e Sociedade – Debora Diniz (org.), Editora UNB/Letras Livres, Brasília, DF, 2005.

Os Anormais – Michel Foucault – Editora Martins Fontes, São Paulo, SP, 2010.

LEIA TAMBÉM NO BLOG
SINDROME DE DOWN E REJEIÇÃO: UM CORPO ESTRANHO ENTRE NÓS? https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/10/sindrome-de-down-e-rejeicao-um-corpo.html

O VIGESSIMO PRIMEIRO DIA - CINEMA E SÍNDROME DE DOWNhttps://infoativodefnet.blogspot.com/2010/03/o-vigessimo-primeiro-dia-cinema-e.html

A PAGAR-SE UMA PESSOA COM SÍNDROME DE DOWN https://infoativodefnet.blogspot.com/2010/09/pagar-se-uma-pessoa-com-sindrome-de.html

01 NEGRO + 01 DOWN + 01 POETA = 01 DIA PARA NÃO SE ESQUECER DE INCLUIRhttps://infoativodefnet.blogspot.com/2011/03/01-negro-01-down-01-poeta-01-dia-para.html 

CARTA A UM JOVEM COM SÍNDROME DE DOWN NA UNIVERSIDADE https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/02/carta-um-jovem-com-sindrome-de-down-na.html

VAN GOGH - A CONSTRUÇÃO DE UMA A-NORMALIDADE https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/10/van-gogh-construcao-de-uma-normalidade.html

VULNERAÇÃO E MÍDIA NO COTIDIANO DAS DEFICIÊNCIAS https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/04/vulneracao-e-midia-no-cotidiano-das.html

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

DEFICIENTES INTELECTUAIS - Encarcerar é a solução final?

Imagem Publicada - uma fotografia em preto e branco, onde se vê uma grade, e atrás dela um corpo humano deitado de lado, do qual só vemos uma mão que se agarra à uma das barras, e seus pés que saem para fora da grade que o aprisiona. Esta foto é parte de uma campanha da OMS pelo fim dos manicômios ou outras formas institucionalizadas de encarceramento de pessoas com transtornos mentais, inclusive pessoas com deficiências ou não. (autoria Harrie Timmermans)

No calor insuportável das últimas noites, há um incerto alívio quando sentimos alguma brisa para nos aliviar. Mas se nos transpormos para corpos também encarcerados, qual será nossa sensação térmica? Qual será o calor inumano que nos cerceará? Será que estamos vestindo, ultimamente, o avatar de alguns sujeitos que chamamos de deficientes?

Então, se aspiramos outras formas de calor humano, talvez nos ajude o conhecer e re-conhecer estes sujeitos. Tomando conhecimento crítico da forma como vem sendo torturados, mal-tratados, subjugados, escravizados, abusados, violentados, "enjaulados", e, ainda podendo, experimentalmente, ser cobaias humanas. Ontem, eram chamados de ''retardados mentais''. Hoje, devem ser, respeitosamente, consideradas: são as pessoas com deficiências intelectuais.

Por enquanto, dada uma trégua pela Terra, ainda estamos nos recuperando da enxurradas,enchentes e aguaçais, mas outros tremores e temores nos alertam. Surgem novas/velhas notícias que demonstram a utilização de cárcere e privação de liberdade para pessoas classificadas como "DEFICIENTES MENTAIS".

Primeiramente temos um jovem holandês, Brandon van Ingen, que se encontra acorrentado, a uma parede, em uma clínica psiquiátrica, pois segundo a Secretária de Estado da Saúde: "O seu caso é tão sério que ele tem de ser privado da sua liberdade em nome da sua própria segurança e da dos outros". A ele só são permitidos passos até um limite. É considerado perigoso, assim como o foram milhares de outros que ainda vivem em manicômios, inclusive no Brasil (vejam A Casa dos Mortos - documentário de Débora Diniz)

Esta história de ''tratamento" a um jovem holandês, me faz voltar no tempo. Me lembro quando, há muitos anos atrás, ajudado por uma amiga, traduzimos o texto "Bem vindo à Holanda", escrito por Emily Pearl Kinsley, uma vez publicado, por ser inédito em português, espalhou-se pela Internet

O texto foi usado no lançamento do site do DefNet (www.defnet.org.br/holanda.htm, veja o asterisco abaixo *). Parece-me que a escritora antevia uma chegada, os pais-viajantes, a uma terra que não desejamos chegar, mas que quando lá estamos devemos buscar suas ''belezas".

Hoje repenso se devemos essa viagem para as pessoas com deficiencia intelectual. Isso se considerarmos a permanência de uma antiga e permanente "confusão" entre deficiência e doença. Brandon vive preso a uma parede com um colete fechado a chave e com uma corrente de 1,5 metros, desde 2007. E, pelo visto, lá permanecerá por mais alguns anos.

Por mais de 16 (dezesseis) anos, em um cubículo subterrâneo de 12(doze) metros quadrados foi mantida uma idosa com deficiência intelectual em Sorocaba, SP. É aqui bem perto de Campinas, não preciso viajar para a Holanda. Essa mulher foi resgatada de um ambiente com mofo, baratas e privação total de luz. Ela hoje tem tambem, com toda certeza psiquiátrica, graves sequelas mentais.

A sra. Sebastiana Aparecida Grotto, 64 anos, foi mantida em cárcere privado por seu marido, João Batista Grotto, sob a alegação cruel e já naturalizada de " que a idosa era mantida no porão para sua própria segurança, já que, se saísse da casa, não saberia o caminho de volta...". Esta lógica de cuidado com pessoas idosas, pessoas com deficiência e, principalmente, com pessoas com transtornos mentais crônicos, como as demências, é afirmada até pelos se especializam em situações limites que os envolvem.

Como psiquiatra e trabalhador da Saúde Mental, até o ano de 2009, já tive a triste oportunidade de ver/vivenciar/sentir, ao vivo e a cores, semelhante atitude de um familiar para com um sujeito com grave comprometimento mental, esquizofrenia. Ele, um delirante crônico vivia em isolamento no "porão" da casa, com as mesma condições insalubres de Sebastiana. 

E o seu resgaste de cidadania foi difícil, sendo resultado de um trabalho intenso por uma equipe de profissionais de saúde de um Caps em Campinas, SP. Mas as imagens de seu isolamento permanecem vivas em minha memória. São agora reavivadas pelas notícias que retransmito. Por motivos éticos não amplio os dados sobre este ser humano, mas tenho certeza de que muitos dos meus colegas que vivenciaram seu resgate ainda tem registradas as fortes sensações e emoções que as idas à essa casa, onde viveu um sujeito desfigurado, por contato com moscas e abandono.

Considero importante ressaltar que as justificativas utilizadas, tanto por familiares como por nossas sociedades e o Estado, para que se utilizem as formas de isolamento, cárcere e privação de liberdade, são sempre as mesmas: tudo é feito para que protejamos os ''normais' dessas '' anormalidades e sua periculosidades''. E todas as afirmações são sempre, sutilmente, colocadas no mesmo ''saco'', sempre se fala ou se afirma (até "cientificamente") que estamos fazendo ''o melhor e o possível para a proteção dessas pessoas".

Isso é o que já foi dito pelo pai de Zaqueu, com 25 anos, que foi enjaulado, em Sumaré, SP, sob a alegação de que estava sendo "protegido para controlar o comportamento agressivo causado por uma deficiência mental'', e, depois, buscou-se uma instituição para sua internação.

O valor ético e bioético de sua autonomia é também jogado em um '' saco " só que de lixo, pois em nossas visões e defesas inconscientes estes sujeitos já moram e vivem acorrentados em nossos subterrâneos, sejam individuais ou coletivos. A erradicação do ''mal" que representam ou personificam justificou até seu extermínio, assim como biopolíticas de isolamento, encarceramento, experimentação cientifica ou institucionalização ad infinitum... forever. Encarcerar foi e pode ser a solução final.

Mas a lógica perversa que justifica a diferentes biopolíticas e transformações de seus corpos em "matáveis ou sacrificáveis" (homo sacer) não é privilégio de ideologias, Estados totalitários ou genocidas. É uma lógica que pode atravessar, sem fronteiras ou distinções de gênero, etnia, nível sócio-econômico e cultural, os nossos corações e mentes. É quando aparecem as justificativas e racionalizações para que façamos a 'exclusão' dessas diferenças ou, com convém ao modelo biomédico, anormalidades ou deficiências.

A questão do uso do corpo considerado anormal já foi amplamente discutido, porém isso não basta para que atitudes extremas continuem sendo aplicadas à estas vidas humanas. O exemplo do jovem português Rui Duarte Silva, trazido à luz pela imprensa portuguesa recentemente, nos esclarece mais ainda. Não bastou que os considerassemos imbecis, idiotas ou cretinos, foi e é preciso um pouco mais de segregação e preconceito com estes "mentecaptos".

O jovem Rui foi transformado em ''escravo'', um ''famulus'' como o radical latino da palavra família. Ele ficou 24 (vinte e quatro) anos sob total privação de tudo o que conhecemos como direitos de um ser ''considerado normal''. Segundo a acusação do Ministério Público, para a condenação da família que o escravizou: "...Negaram-lhe o direito à alfabetização. Cedo o transformaram num mero criado, analfabeto e submisso, a quem nem dispensavam os cuidados de alimentação, higiene e saúde mais básicos''.

Essa escravização não é um fato isolado. Há milhares de pessoas com deficiência intelectual, em especial meninas e mulheres, que estão sob a vulneração e o abuso de seus corpos, seja para o trabalho assim como para a prostituição. E isso já foi constatado e denunciado.

Recentemente alguns desses seres humanos formaram um grupo de escravos na China, vendidos para uma fábrica de produtos químicos, após experimentarem o isolamento em um asilo. A história se repete e se mantém na negação de sua diferença intelectual. Ainda mais quando os colocamos em uma posição de ''mentalmente pobres", onde a ideia de pobreza reforçará nossos preconceitos e sua inferiorização.

Pela transversalidade e transculturalidade dos preconceitos e das crueldades inflingidas a pessoas com deficiência intelectual (outrora denominados '' deficientes mentais") é que devemos trazer também à tona o que pode ser sua libertação: a afirmação de seus Direitos Humanos.

Em 2004 foi promulgada pela OMS/OPAS a Declaração de Montreal sobre a Deficiência Intelectual, que afirma: "Apoiar e defender os direitos das pessoas com deficiências intelectuais; difundir as convenções internacionais, declarações e normas internacionais que protegem os Direitos Humanos e as liberdades fundamentais das pessoas com deficiências intelectuais; e promover, ou estabelecer, quando não existam, a integração destes direitos nas políticas públicas nacionais, legislações e programas nacionais pertinentes".

Para os Brandons, Sebastianas, Zaqueus, Ruis e muitos outros/outras ainda em situação de vulneração, exploração, cárcere, escravidão ou institucionalização definitiva é que devemos, urgentemente, confirmar o seu resgate para além das grades visíveis, assim como das mais tenazes: as invisíveis de nossos estigmas e preconceitos.

copyright jorgemarciopereiradeandrade ( 2010-2011 - 2023 ad infinitum - favor citar o autor e as fontes em republicações livres na Internet ou outros meios de comunicação de massa, Todos Direitos RESERVADOS 2025)

* - TEXTO - do BEM VINDO À HOLANDA (traduzido em Cambuquira MG, pela Dra.Mônica Ávila de Carvalho, mãe de Manuela, com minha contribuição pelo DEFNET, atualmente fora da Internet, mas reproduzido em milhares de sites como este - EXISTIR - Associação Inclusiva de Fortaleza - https://sindromededownexistir.blogspot.com.br/2009/06/bem-vindo-holanda-emily-perl-knisley.html

Leia também no Blog - 
Saúde Mental e Direitos Humanos - Desafio Ético para a Cidadania

O Melhor é a Jaula ou o Galinheiro: Deficientes Intelectuais e seu encarceramento https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/05/o-melhor-e-jaula-ou-o-galinheiro.html

O MANICÔMIO MORREU? Para que o mantemos vivo em nós? 

Veja a dura realidade dos MANICÔMIOS JUDICIÁRIOS NO BRASIL

A CASA DOS MORTOS

Sobre Brandon

Sobre Sebastiana

Sobre Zaqueu (Entre Jaulas e Exclusões)

Sobre Rui (Maus-tratos: Deficiente mental escravizado 24 anos)

Declaração de Montreal Sobre a Deficiência Intelectual 

China - Deficientes mentais vendidos como escravos para fábrica

sexta-feira, 19 de março de 2010

O VIGÉ"SS"IMO PRIMEIRO DIA - CINEMA E SÍNDROME DE DOWN

imagem publicada - foto do filme O Oitavo Dia (1996) onde os atores Pascal Duquenne e Daniel Auteil, nos papéis de Georges, um jovem com síndrome de down, que escapa de uma instituição e Harry, um homem solitário e divorciado, preso nas malhas de seu mundo capital, se abraçam com ternura e amizade, um dos ápices emocionais deste filme de Jaco Van Dormael, comentado abaixo.

Cinema&Síndrome de Down - Homenagem ao Dia Internacional da Síndrome de Down

"O problema é que há pessoas que nem mesmo têm uma oportunidade na vida como a que eu tive. Eu fiz este filme por elas. Sempre me considerei um porta voz, aquele que leva a bandeira do coletivo Down, porque não têm voz. Alguém tem de tê-la e isso coube a mim..."

''El problema es que hay gente que ni siquiera tiene una oportunidad en la vida como la que yo he tenido. He hecho esta película por ellos. Siempre me he considerado el portavoz, el que lleva la bandera del colectivo Down, porque no tienen voz. Alguien tiene que tenerla y me ha tocado a mí.
PABLO PINEDA (ator premiado pelo filme Yó, también - Festival de Cinema de San Sebastián)

Aos 21 dias do mês de Março temos uma data a comemorar, difundir e respeitar. É o DIA INTERNACIONAL DA SÍNDROME DE DOWN que foi criado para para lembrar esta condição humana. É uma data para confirmar as necessárias mudanças de paradigmas, com a urgente demolição de muitos preconceitos. Comento e apresento, homenageando esta data, para os que desejam também um outro olhar sobre Down, o protagonismo e presença que vem crescendo, há alguns anos, de atores-atrizes com Síndrome de Down nas telas de cinema.

Apresento, para os que ainda não conhecem, o meu desejo de que, ao assistir ou ler sobre estes filmes e seus atores, nos estimulemos rumo a uma mudança radical na compreensão de que as deficiências intelectuais compõem uma heterogênea gama de seres humanos e sua diversidade funcional, assim como as demais pessoas. Ou seja que os princípios da Declaração de Montreal sobre as Pessoas com Deficiência Intelectual (Montreal, Canadá, 2004) se tornem os alicerces concretos para esta mudança, onde se declara que: " A deficiência intelectual, assim outras características humanas, constitui parte integral da experiência e da diversidade humana".

O título deste texto também é uma homenagem ao filme o "Oitavo Dia" (L' Hutième Jour - 1996), de Jaco Van Dormael, que revelou, pela primeira vez, um vencedor com deficiência intelectual ao Festival de Cannes em 1996. O prêmio de melhor ator do festival coube à impressionante exibição do ator belga PASCAL DUQUENNE, uma pessoa com síndrome de down, que dividiu o prêmio de melhor ator com o veterano francês Daniel Auteil.

O filme traz um personagem, de nome Georges, que, logo no início comenta a criação do mundo. E, eu aqui de nome parecido e me identificando projetivamente com ele, acho que aí seria ótimo se, no 21º dia de Georges, o Criador tivesse criado somente pessoas diferentes. Seriam pessoas que foram e são associadas com a anormalidade ou a doença. Estes novos seres ou avatares, profundamente, suaves e amorosos, serão apenas singularidades. Nesse dia, em outro filme ainda não realizado, seriam criados os "seres hiper-humanos Down".

O filme Oitavo Dia foi uma das primeiras experiências que realizei na função de um 'ledor de cinema'. Ainda nos tempos em que a Audiodescrição não se firmava, ao promover debates em um Ciclo de Cinema e Deficiência: Um Olhar para Além do Olhar (1998), promovido no Instituto dos Arquitetos do Brasil, no Catete, Rio de Janeiro, pelo DEFNET.

Nesse evento fui o ledor do filme 8º Dia para uma amiga cega, a mineiríssima Elizabeth Dias de Sá, que era uma das debatedoras do filme. Já exercitávamos  então, a acessibilidade como direito no campo do cinema, das comunicações e das imagens, sonhando com Georges um outro mundo e um outro modo de apresentá-lo aos nossos semelhantes, independentemente de suas habilidades ou capacidades.

O personagem Harry, vivido por Daniel Auteil, nos representa, a muitos de nós considerados sem nenhuma deficiência. Ele figura e transmite na tela o homus economicus, com nossa pressa, nossa velocidade, nossas rotinas, nossos distanciamentos, e um quase atropelamento de Georges. Depois desse encontro nasce uma amizade que lhe apresenta um outro olhar sobre as pessoas com síndrome de down. Transformam-se as setas que conduziam o roteiro e rota de um executivo, suas relações humanas, capitalísticas e bancárias do que é Vida, inclusive do seu ato de esquecer dos filhos. Harry, como muitos, sofre com este distanciamento.

E se, no meio de uma chuva decide deixar aquele ser diferente e sua deficiência, é levado na direção de um Outro que lhe perturba por sua singularidade. Ele, assim como nós meio perdido e confuso, viajante das encruzilhadas da vida, onde se encontra e desencontra com os Georges, como habitantes da nossa Babel dos afetos. Demora um pouco para que cada um possa compreender essa nova língua e cartografia afetiva que o Outro nos traz. Eu, se pudesse, apenas escreveria um fim menos doce-mortal para Georges, mas não sei se, para o diretor e roteirista, é e era preciso que a doçura de um desaparecesse para que o Outro pudesse descobrí-la...

Nesse filme premiado, que já se encontra em DVD no Brasil, há uma cena memorável que faz a demolição do preconceito que por muito tempo esteve grudado nas pessoas com Síndrome de Down: ele e elas são os "mongóis", que no filme cavalgam e passeiam nas terras de Mongólia. É a derrocada fílmica de um termo que ainda, lamentavelmente, passeia no mais diversos espaços: eles e elas são "mongolóides", apenas por seu traços faciais lembrarem um povo que também esteve, historicamente, à margem na China.

Não, "não somos mongóis", disse o ator GUILLEM JIMÉNEZ, também premiado por seu desempenho no filme "León y el Olvido" (2004). Este também traz desmitificações sobre o lugar e o papel social de pessoas com síndrome de Down. No filme do diretor Xavier Bermúdez são recriadas as vivências entre dois irmãos, sendo que um deles, León, é uma pessoa com deficiência intelectual. Esta história de dois órfãos traz a questão fraterna para os que têm um irmão com deficiência intelectual. A excelente participação de uma atriz, Marta Larralbe, interpretando Olvido (que em espanhol é esquecimento) que deseja ambivalente, por exemplo, que Léon seja internado, incrementa um conflito entre eles. O personagem trará ao público a tenacidade de Léon, como um irmão cujo maior desejo é apenas viver com a irmã, como muitos dos que vivenciam esta condição.

Para ampliar as possibilidades de protagonismo de atores com Síndrome de Down somente a Concha de Prata no Festival de Cinema de San Sebastián, onde o ator espanhol PABLO PINEDA, foi a estrela maior. Ele, como ator, ainda corou uma grande e magnifica parceria com a atriz espanhola Lola Duenas em um dueto de amor e afeto. Eles constroem uma dupla amorosa em Yó, También (2009). Uma alegoria das dificuldades de encontrar o amor, na qual apenas um ser despojado do temor de revelar seu desejo e intensidade pode ajudar a uma mulher, considerada normal, caminhar em direção à descoberta da imprescindibilidade do Outro em nossas vidas.

O filme de Álvaro Pastor e Antonio Naharro chegou a superar o recente premiado filme argentino "O Segredo de Seus Olhos", Oscar de filme estrangeiro, com a premiação dupla de Pablo e Duenas nesse festival. Tudo graças à comentada e vibrante atuação de Pablo Pineda. Ele, após ser premiado, afirmou carregar, com dedicação e orgulho, a bandeira de equiparação de oportunidades para os que outrora foram e ainda são considerados, inclusive por muitos profissionais, 'débeis mentais', ou pior ainda de "oligofrênicos", ou seja dotados de "pouco espírito ou inteligência" .

Por fim lhes apresento TÓMAS DE ALMEIDA que dividiu o prêmio de melhor ator do Festival de Cinema do Mundo de Montreal (2007) com Filipe Duarte, no filme "A Outra Margem". Ele, mais um ator com Síndrome de Down, surpreendeu e mereceu o prêmio por sua interpretação de um adolescente que ajuda a um travesti a reencontrar o caminho para a alegria. O filme já foi exibido em circuito de cinema comercial e Mostra de Cinema de São Paulo no Brasil. O filme tem como proposta criar uma terceira margem para além do pressupostos e constructos da "anormalidade/normalidade" e dos estigmas que ambos vivenciam.

Mais um filme que nos instiga a querer e desejar ir além do preconceito, morador de nossos subterrâneos, e buscar a confrontação e auto-crítica para todos os que se consideram "normais" e "sem defeitos". Ao abordar a homossexualidade, que preferiria chamar de homoerotismo do personagem, neste filme, como também na realidade, muitas vezes o principal motivo de depressão e de rejeição do personagem vivido por Filipe Duarte. E comprovar a existência da marginalização da diferença, o diretor Luis Filipe Rocha nos instiga a refletir que, junto com a Síndrome de Down, ainda estamos exilando pessoas para uma outra margem do viver.

Enfim, quisera ter a alegria de alguns cineastas e não ser, diante desses homens, apenas um espectador. Quisera estimular um cinema e um filme imaginários onde pudéssemos reunir os quatro atores citados: Duchenne, Jimenez, Pineda e Almeida em uma mesma película. Talvez aí se produzisse uma obra fílmica inédita, mesmo que em formato de documentário, que nos servisse para uma profunda reflexão acerca do quanto já promovemos de marginalização, exclusão e segregação das deficiências intelectuais.

Um filme, à moda do longa-metragem "Do Luto à Luta" (Evaldo Mocarzel - 2005), onde a minha/nossa implicação fôsse(m) pura força e intensidade amorosa, transversalizada pelo desejo de um outro mundo, uma Outra Cena, um outro The End para o Futuro de todos nossos filhos e filhas. Para além quaisquer de nossas Diferenças. Com certeza não poderia ser um 'filme perfeito'...

copyright jorgemarciopereiradeandrade 2010-2011 ad infinitum- atualizado em 09 de março de 2023 - todos DIREITOS RESERVADOS - para republicação solicitamos respeitar o texto e comunicar ao autor 2025.


DECLARAÇÃO DE MONTREAL SOBRE OS DIREITOS HUMANOS DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA (MONTREAL - 2004)https://www.defnet.org.br/decl_montreal.htm (tradução livre Dr. JorgeMárcioPereiradeAndrade)

PASCAL DUCHENNE - O 8º DIA

GUILLEM JIMENEZ - LEÓN Y OLVIDO

PABLO PINEDA - Yó, También

TÓMAS DE ALMEIDA - A OUTRA MARGEM

Do Luto à Luta (Evaldo S. V. Mocarzel)

VEJAM A PROGRAMAÇÃO PARA O DIA INTERNACIONAL DA SÍNDROME DE DOWN NO BRASIL -
AGENDA DE ATIVIDADES/EVENTOS
"INCLUSÃO SOCIAL - VAMOS FAZER ACONTECER" em:

https://fbasd.blogspot.com/2010/03/inclusao-socialvamos-fazer-acontecer.html
BLOG DA FEDERAÇÃO DAS ASSOCIAÇÕES DE SÍNDROME DE DOWN DO BRASIL

LEMBRETE - DIA 21 DE MARÇO É O DIA INTERNACIONAL DA ELIMINAÇÃO DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL

LEIAM TAMBÉM NO BLOG -

 AOS MEUS "COLEGAS", INTOCÁVEIS E INDEPENDENTE - O CINEMA REVERENCIA AS DEFICIÊNCIAS 

01 NEGRO + 01 DOWN + 1 POETA = UM DIA PARA NÃO ESQUECER DE INCLUIR 
https://infoativodefnet.blogspot.com/2011/03/01-negro-01-down-01-poeta-01-dia-para.html

Texto também publicado no InfoAtivo DefNet 4370 - Ano 14 - março de 2010