sábado, 17 de maio de 2014

LOUCURA SEMPRE! A DESINSTITUCIONALIZAÇÃO NÃO É INTERNAÇÃO, MUITO MENOS COMPULSÓRIA.

Imagem publicada – uma foto de uma homenagem pintada há muitos anos atrás para mim, por uma artística cliente e ensinante, Maka, onde sou representado e cercado por frases: Freud explica, Winnicott também, Jung idem e Jorge ibidem..., no canto direito está escrita a nossa grande descoberta mútua: - “e eu tento entender...”.  Um terno e eterno aprender... Será que algum dia, em futuro longínquo, poderemos vir a “entender” sem querer enclausurar ou capturar, todas as nossas “loucuras”?

“Uma doente fala sozinha, será que não tens medo da imagem do teu corpo? Eu estava sempre à espreita da doutora. A vê-la um instante, falar com ela ser real... reencontrar-me... O grupo: trinta doentes com uma equipe médica, vão todos espiar-se, vigiar-se, insultar-se, odiar-se, amar-se, projetar uns nos outros, viver em conjunto a loucura. Pouco sei dos outros, estou sempre só...” (Emma Santos – O Teatro).

Habeas Corpus Insanus ad eternum!

Resgato essa poetisa, artista e sempre teatral Emma, direto dos mais antigos livros que guardo com carinho. Ela, que passou pelas agruras de mais de uma internação psiquiátrica em Portugal, nos anos 60/70, me ensinou a buscar o coração que foi pintado pela outra artista que me afetou.

Foi dela que aprendi que: “A manhã volta. A manhã volta sempre...”, por mais soníferos, ansiolíticos, antipsicóticos e antidepressivos que tenhamos ingerido, o amanhã virá, inevitável e, se for dentro do hospital psiquiátrico, mais duro ainda.

Na busca da suavidade necessária e do processo de humanização desses estabelecimentos e suas instituições me joguei de corpo e alma, muitos dias, muitas horas. As marcas do convívio com os espaços de tratamento ou confinamento das ‘loucuras’ não são só do corpo. Ficam também nos nossos corpos, para além dos outros, simbólicos ou não. Agora posso de corpo ferido e mente alerta, mesmo à distância física, ter outras implicações.

Hoje, perto de mais um momento de festa e bola rolando, me aviso e lembro-me dos que irão ver jogos apenas pela televisão. Distanciados e intocáveis. Isto se a televisão estiver ligada e permitida.

São os que permanecem e ficarão “fora dos estádios” normalizadores. São os ‘doentes mentais’ que, devido às suas infindas institucionalizações em clínicas, Caps ou outros resquícios de sanatórios e manicômios ou “minicômios reabilitadores”, “não batem bem da bola”, ou da “cachola”, ficam sempre com o cartão vermelho, expulsos de quaisquer partidas oficialmente normais, como o mercado de trabalho.

Aos inadvertidos digo: eu gosto de futebol, mas não sou mais um fanático. Eu amo/respeito/sinto os loucos de toda sorte, mas não sou fanático por nenhuma loucura, a não ser a minha própria... Não lanço nem privadas e muito menos bananas racistas...

Entretanto, para muitos de nós, os próprios psis e os que se denominam normais, somos classificados como loucos. Os ditos que não são tão malditos, afinal, de ‘médico e de louco todo mundo tem um pouco’. 

Integrantes de uma seleta seleção. Somos profissionais, os trabalhadores com e da dita Saúde Mental que não ganham como jogadores de futebol. Porém, mesmo assim, entramos em um campo minado, vestimos a camisa de um “time” que joga o tempo todo com os seus e os nossos inconscientes-multiplicidades.

Caso venhamos a passar por acidentes ou traumas, também adoecidos, penduramos as chuteiras. E, dizem, portanto, que também somos “ruins da cabeça’’, já que ficamos, como nossos pacientes, “doentes dos pés”, de “miolo mole”, mais para Garrinchas dopados do que para os que continuam equivocados como Pelés.

Por isso, aquilo e mais um pouco temos de aprender a sermos os meio-de-campo-Loucos... Nesses áridos não gramados campos abertos a placares inusitados, com jogos que devemos aprender a perder. Nunca seremos, aí nessas arenas fechadas e totais, os campeões. Apenas nos tornamos os espertos ao contrário, como já disse, sábia e vividamente a Estamira.

Ao viver nessa e dessa insanidade, como risco necessário desse trabalhar, oriundas de si próprio e do Outro é que precisamos nos tornar mais finitos. Um estar, mais que ser, na transitoriedade desses jogos inter-humanos, em permanente estado de desinstitucionalização. Abraçarmos a nossa suposta derrota: os loucos sempre vencem mesmo enclausurados. Por quê?

 Já nos foi dito: os muros que ainda não derrubamos estão dentro de nós... São as verdadeiras muralhas que nos protegem do que mais tememos: ensandecer como o espelho deles e de nós próprios. O seu sofrimento psíquico não nos é estranho ou estrangeiro. Faz parte de nossa história, seja social ou cultural, biográfica ou historiográfica.

Fomos, com a Medicina psiquiátrica, durante mais de um século os responsáveis por determinar a distância entre a sanidade e a loucura. Como medidores e avaliadores fisicalistas nos foram dadas ferramentas para incluir ou excluir. Foi-nos dado o aval, e ainda permanece como paradigma, a nossa capacidade de dizer quem está “doente da cabeça”. Os lunáticos que não andam sobre os pés. Os que dizemos estão fora do chão das nossas realidades.

Lá no século XVIII o mundo da loucura, que ainda recebe esse nome/estigma, segundo Foucault ‘vai tornar-se o mundo da exclusão’. Modificamos em quase três séculos esse modelo e paradigma excludente?

Nos meados daquele século é que foram criados os primeiros estabelecimentos para a grande internação. Não eram como os aprimorados equipamentos e hospitais de hoje dedicados apenas aos sofrimentos psíquicos graves e persistentes.

Os ‘Hospitais Gerais’ recebiam, como seus sucessores manicômios, toda uma série de sujeitos diferentes. Segundo Foucault lá, “pelo menos segundo os nossos  critérios de percepção: encerram-se os inválidos pobres, os velhos na miséria, os mendigos, os desempregados opiniáticos, os portadores de doenças venéreas, libertinos de toda espécie, pessoas a quem a família ou o poder real querem evitar um castigo público, pais de família dissipadores, eclesiásticos em infração, em resumo todos aqueles que, em relação à ordem da razão, da moral e da sociedade, dão mostras de ‘alteração’...”.

E a que discrepâncias sociais, anormalidades, desvios morais, atos infames e ‘alterações genéticas’ estaremos, generosa e piedosamente, nomeando, classificando e destinando para nossas ‘novas’ instituições dedicadas aos loucos?

Digo que são os ‘novos malditos’. São os que apesar de não serem tão ‘perigosos’ ocupam agora os antigos espaços dos hansenianos e dos amaldiçoados pelos soberanos. São as novas e sempre bem vindas, biopoliticamente, Vidas Nuas. Pergunte-se se não há na citada lista foucaultiana nenhum dos termos lá que empregamos ainda por cá e acolá. Naturalizamos suas modernas versões humanas?

A resposta é que ainda temos de continuar o que se denominou de ‘luta antimanicomial’. As velhas e carcomidas instituições arquitetônicas dos manicômios, das Barbacenas, perduram em novas e bem instrumentalizadas formas de encarceramento. Não são só os portões e grades que nos separam deles, dos loucos.
Separam-nos as novas terminologias, novos diagnósticos, novas medicações, novos meios de contenção física, novos/velhos falsos cuidados desses Outros.

Aí, com certeza e direito, Emma que nunca foi santa, nos cuspirá, no rosto maquiado dos nossos belos avanços, a verdade de nossa neurótica e desinstituinte repetição: o ontem sempre vem, e, extenuados, não construímos e nem vemos saídas, não há nenhum amanhã possível?

Pela necessidade de responder às muitas Emmas, Estamiras e outros Cids que, com seus delírios ou alucinações, compulsória e involuntariamente são serão internadas, desviantes que se tornam, é que faço essa afirmação da desinstitucionalização.

Urge caminhar para além das deshospitalizações, para além das desterritorializações dos sofrimentos dos Outros, sempre sujeitados e cada dia menos sujeitos, singulares, individual ou grupalmente.

Para além dos territórios já conhecidos e demarcados, digo que a Saúde Mental pode, amorosa e micropoliticamente, vir a ser revolucionária. A quebra de estigmas e preconceitos com a loucura, assim como com os racismos, as homofobias e outras discriminações também é tarefa dos atores e inventores/vetores dessas Outras Saúdes.

Como dados de realidade, para que não digam fanático pela demolição dos manicômios visíveis, posso citar o levantamento da situação de pessoas em sofrimento mental prolongado aqui em São Paulo, o Censo Psicossocial sobre Moradores de Hospitais Psiquiátricos, no ano de 2008.  Este censo perguntou a um morador de um hospital psiquiátrico se ele gostaria de morar fora do hospital.
Ele respondeu: “...quero ir embora... mas não tenho mala”.

Segundo essa mesma pesquisa estatística, a população internada em hospitais há mais de um ano era de 6349 internados em 56 hospitais psiquiátricos, em 38 municípios, e em 15 DRs. Dessa amostra populacional existiam 3930 homens e 2416 mulheres. Ressalte-se que quase 63% era de não alfabetizados, quando surgem então as crianças e jovens internados. Entre eles 42,1% possuíam ausência total ou parcial de dentes. Como sorrir, então, dentro desses cenários institucionalizantes?

Quantos estão agora ainda em processo de internação prolongada e sem perspectivas, sem mala, sem destino, sem respostas, sem novos caminhos ou futuros, mesmo que sejam residências terapêuticas?

O outro e alegado cenário, que aí surge, é o da ‘transinstitucionalização’, ou seja, os muitos que saíram de hospitais psiquiátricos fechados. Mudaram de ‘mala e cuia’, como dizem lá em MG, para novos ou velhos espaços medicalizados. Desse total pesquisado pelo censo 43% (2741 pessoas, ou melhor, cidadãos e cidadãs) tornaram-se “moradores” dos novos equipamentos. Ocupam os ‘leitos-noite’ que não tem dia seguinte, muito menos a desejada ‘alta’?

Nessa perspectiva é que ainda há que resolver as questões macropolíticas geradas e alimentadas pelo descaso dos gestores. Faltam os recursos, os trabalhadores, e, principalmente, a chamada política pública estruturante. Com estes números citados, apenas uma das pontas visíveis de um grande iceberg de ‘usuários’, é que devemos uma resposta desinstitucionalizante, uma afirmação de vida para além dos limites já inventados ou recém-instituídos.

Pelo já escrito, assim como pelo que me foi ensinado nos meus anos capsciosos, é que digo que a Psiquiatria, e não menos outras especialidades psi e próximas, se revelam, diante do dito louco e da loucura, portadoras de um instituído vertical e enraizado, mais que quaisquer outras instituições.

Nós, os benditos trabalhadores dessa saúde e pela ação biopolítica de nossos zelosos equipamentos de cuidado, interrogo se podemos e nos tornamos excelentes e eficientes administradores ‘daquilo e daqueles que sobram’, dos excedentes ou novos desfiliados sociais? Contribuímos, por exemplo, para a gentrificação e higienização das grandes ‘lândias’ das grandes cidades?

Seríamos, ou melhor, nos tornamos uma instituição residual, que detém ela mesma, em relação ao sistema instituído como Saúde Mental, um poder tanto insubstituível quanto um simulacro, ou seja, seríamos capazes de fazer o papel de quaisquer uma das outras instituições que nos transversalizam, seja a Justiça, o Governo ou mesmo a Família...

A desinstitucionalização dá trabalho, é árdua, exigente de uma Análise Institucional, ela própria que se coloca em implicação com seu próprio fim, finalidade ou demanda. Essa que lhes proponho tem que ir além das teorias e dos diagnósticos. Como dito lá em cima, vai além dos Freuds, dos Jungs e dos Winnicotts, e, com certeza, muito além de mim e do meu corpo/vida/máquina desejante.

Esse caminho árduo para a desinstitucionalização passaria pelo buscar soluções singulares, heterogêneas, realmente substituíveis (ou melhor, até descartáveis por sua temporalidade ligada à existência e vida do sujeito), com uma ‘intervenção prática que remonte a cadeia das determinações normativas, das definições cientificas, DAS ESTRUTURAS INSTITUCIONAIS, através das quais a ‘doença mental’(o irremediável problema chamado de Loucura) assumiu aquelas formas de existência e expressão...

Enfim, preciso e lhes desejo contaminar com uma necessidade de novos gestos, de novos e criativos contatos com esses Outros, em nós e nos Outros que denominamos mais loucos que nós próprios.

A vocês, todos e todas, em tempos de medos líquidos, deixo a poesia demolidora de desafetos de Max Pagès, que incluiria Reich entre os meus indicadores analíticos da pintura-interrogação de mim, o sujeito de um suposto saber psicanalítico ou psiquiátrico distanciador:

“... Cada gesto é necessário e leva a outros gestos
Desconhecidos, necessários também,
Que levam a outros gestos e a outros ainda desconhecidos.
Se se aceitarem os gestos que são necessários às pessoas
Elas podem viver, senão, arrebentam.
Amar é aceitar os gestos dos outros
Amar é fazer gestos que nos são necessários
Amar é arriscar ficar só, e é também arriscar destruir
Os outros e a si próprio”.

Por esse desejo, como um rizoma, de uma molecular revolução que nos desinstitucionalize, desmassifique e nos torne singularidades mutantes e amantes do viver, com toda intensidade que isso exige, é que digo e lhes docementeabraço: - estendam a mão, ofereçam o ombro, aceitem o olhar, mudem a escuta distanciada, fria, diagnosticadora, sensibilizem-se pelo corpo e pela diferença que sempre é o Outro e o próximo, para além do temor que nossas ou suas loucuras recônditas nos provoquem.

E, finalmente, que se manifestem como somos também: uma ou muitas multidões...
com um doceabraçoantimanicomialeresiliente...

Copyright/left jorgemarciopereiradeandrade 2014/2015 (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet e em outros meios de comunicação com e para as massas)

Leituras inquietantes para inquietos pensantes:
O Teatro – Emma Santos, Editor Assírio e Alvim, Lisboa, Portugal, 1981.

Doença Mental e Psicologia – Michel Foucault, Editora Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, RJ, 1975.

O Trabalho Amoroso: Elogio da Incerteza – Max Pagès, Editora Veja Universidade, Lisboa, Portugal, 1986.

Filme que deveríamos sempre reapresentar e rever:
Estamira, um filme de Marcos Prado   https://www.youtube.com/watch?v=KFyYE9Cssuo

Fonte de pesquisa –

Desafios para a Desinstitucionalização - Censo Psicossocial dos Moradores de Hospitais Psiquiátricos no Estado de São Paulo, Sonia Bichaff & Regina Bichaff (orgs.), 2008 –

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domingo, 11 de maio de 2014

MÃES QUE NUNCA DESAPARECEM... E NÃO CONSEGUEM ESQUECER.

Imagem publicada – uma fotografia em preto branco, recuperada e digitalizada, de minha mãe, Ana, comigo no colo, com seu sorriso terno e eterno gravados em minha mente e no coração; assim como devem estar gravados, em sépia ou colorido, os doces momentos vividos que muitas mães têm como direito e memória. Mulheres que nunca deveriam ser desaparecidas em nós. Minha nova homenagem às mães que não conseguem esquecer.  Para as mães que tem no presente muito mais passado do que futuros, e que seu melhor presente seria saber onde estão os seus filhos (?).

Há mães que nunca desaparecem. Não são fadas, muito menos bruxas, são apenas mulheres re-existentes. São apenas seres humanos, sem distinção, estão para além do bem e do mal. São expressões vivas de uma ética sobre Vidas Nuas. Apenas amam e muitos nem se lembram delas.

Seriam as mães de desaparecidos?  Sim, são as mulheres, algumas que já conheci outras que aprendi respeitar.  Hoje, agora, são as muitas que não são lembradas. Onde será que a mãe de um dos Amarildos sumidos do mapa está sendo homenageada, presenteada e torna-se presença que grita a ausência cruel dos filhos?

Estarão sendo pauta de algum Fantástico show da Sociedade do Espetáculo? Agora mesmo estou pensando nelas, mas o faço por que as vi bem de perto. Conheci suas dores infinitas e suas chagas incuráveis. Olhei e tentei perceber que mulheres existiam e re-existiam dentro de seus corações feridos brutalmente. Onde encontravam tanta força, tanto desejo de verdade e de justiça?

Sim, elas existiram, e, lamentavelmente, as continuamos obrigando existir. As mães de Cláudias ou de Maio, assim como as de Sônias e Stuarts Angels, equiparam-se às avós e às mães de uma praça lá na Argentina, em Realengo, na Zona Leste ou na Maré. São da mesma fibra, do mesmo e intenso desejo de busca de quem elas ajudaram chegar a esse mundo que exige também tanta resistência. Com lenços ou com nomes escritos com sangue em suas mentes , persistem, reclamam os corpos de seus desaparecidos.   

Sejam eles ditos políticos ou não. Afinal todos são, e, infelizmente, serão politicamente exterminados. A sua presença mais forte é exatamente a sua ausência física, mesmo que seja com a sua ossada ou sua cova, rios, florestas ou mares, onde foram despojados de todos os seus direitos humanos.

Não, não são fadas e muito menos bruxas... Entretanto os Estados e os poderes, com suas biopolíticas e suas exceções, muitas vezes, até pela sua ausência legal e constituinte, justificam, a exemplo das Fabianes, julgamentos populares e justiciamentos que repetem e reproduzem o que já foi, é e ainda será o ato de torturar um corpo. Um corpo que precisaria desaparecer. E faltou pouco para que uma fogueira medieval fosse acessa...

Elas, essas mães são para muitos indesejáveis, transhistoricamente incômodas.  Com suas falas, suas presenças, suas diferenças ou suas manifestações fazem a denúncia de nossos conluios com os macros poderes.  Por isso, podem, quase sempre, lograr serem depositárias de um discurso mal dito, de um estigma e de uma chaga que se quer esconder da História.

Muitas delas, ainda vivas, mantêm-se desejantes de poderem prantear e se despedir de seus filhos mortos, uma herança que não desejaram, deixada por Anos de Chumbo. Os seus prantos ou homenagens não lhes foram, como a outras mães, permitido.

Aos que me perguntarem por que escrevo para nos lembrar dessas mulheres, sem pressa ou dúvida, responderei que há a minha própria mãe em cada uma delas. Com certeza, como parte de minha implicação, nessa História, também está a memória de uma mãe que perdeu a mesma. Somos, todos e todas, um pouco de cada uma dessas mulheres, mesmo que negando ou ao fingir esquecê-las.

A estas que trago na memória, à minha que não me deixou sem traços ou lembranças, às mães que não poderei tocar nas lágrimas, assim como àquelas que nunca lerão este texto, dedico minhas palavras, sabedor de sua insuficiência como bálsamo ou resposta.

Aos que podem ter acesso a esse texto só peço que não apaguem os nomes escritos com giz, quase ilegível pela rapidez do esquecimento, dessas que ainda buscam, reivindicam e não conseguem esquecer os filhos que lhes são desaparecidos...

Só para estas e outras mães que não esquecem dedico um poema, que espero escrever e reescrever, pois essa memória das mulheres da nossa História não poderá jamais ser esquecida.

Mãe te encontrei, como todos os dias,
O outro dia nas velhas fotos.
O papel desbotou, a imagem não era nítida,
A deusa da memória quase te apagou.
Mas, surpreso embora triste,
Encontrei o seu sorriso, as suas suaves presenças,
Relembrei os seus passos e os que tentou me indicar;
Mãe, distraído, não encontrei o bilhete que me escreveu,
O lembrete ou o aviso de que há sempre surpresas
Para quem ousa dobrar as esquinas e viver as encruzilhadas.
Sem temor ou tremor...
O velho baú de esquecimentos é de um fundo mais fundo que a memória,
É nele que muitas vezes tentamos esconder, de nós próprios,
Do Outro e da Vida, o que mais temeríamos:
Tornamos a ser não vida, não viventes, muito menos sobreviventes,
Se o teu útero mundo e desejo não tivessem me acolhido...
Pior ainda se nenhuma de suas lágrimas sobre mim derramastes.

Avanço, então, mais intenso, re-existente, 
vividamente intenso, como um devir mulher,
Avanço?
Ou avançaremos, juntos, com suas doces memórias, mais resilientes?

Copyright/left jorgemarciopereiradeandrade 2014-2015 (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet ou outros meios de comunicação com, para e de massas)

Páginas para não serem apagadas das redes e das mentes –


Asociación Madres de Plaza de Mayo - http://www.madres.org/navegar/nav.php

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AS BRUXAS RE-EXISTEM? COMO MANTER OU DEMOLIR UM PRECONCEITO. http://infoativodefnet.blogspot.com.br/2013/11/as-bruxas-re-existem-como-manter-ou.html

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terça-feira, 6 de maio de 2014

RACISMOS, BARBÁRIES, FUTEBOL... ONDE ENTRECRUZAM AS VIOLÊNCIAS SOCIAIS?

Imagem publicada – foto colorida de uma intervenção com arte e provocação nas ruas de Maceió, Alagoas, onde performers, pessoas vestidas de ternos enlameados com argila, com os olhos vendados, ‘com passos lentos e gestos delicados’, caminharam e provocaram os transeuntes para uma reflexão sobre nossas instituições. Nessa fotografia de Jonathan Lins, estão perfilados diante do Quartel Geral da Polícia Militar, batendo continência.

Pode uma intervenção nas ruas provocar em nós alguma forma de reflexão crítica sobre nossos mais recentes atos de violência social? Ou estamos tão anestesiados que a suavidade dessa performance não nos sensibiliza mais?

 Acho e espero que sim, pois essa intervenção que é parte de um evento cultural, o Palco Giratório, promovido pelo Sesc, intrigou e mexeu com os que puderam ver/assistir estes “Cegos”. A nossa ‘cegueira branca’ (Saramago) nos foi desnudada, denunciada e tornou-se pública. Deixemos,então, de ser apenas telespectadores (as).

Entretanto, para além dessas intervenções estamos precisando, urgentemente, de uma resposta coletiva diante de outros ‘espetáculos’ de horror, racismos e barbárie.

Atiram-se corpos dançantes em lajes de supostamente pacificadas comunidades UPP, jogam-se vasos sanitários sobre torcedores supostamente indesejáveis como nossos próprios dejetos. Arrastam-se corpos de mulheres, ou negras ou nomeadas “bruxas”, pelos morros e morrinhos, nos Rios ou Guarujás... Corpos ultrajados e linchados se tornam espetáculo para redes sociais.

Somos, nesse triste momento, a Sociedade do Espetáculo que se deixa iludir, que pede mais violações de direitos humanos, que justifica os linchamentos através de âncoras da TV. Somos alienados, todos e todas, um pouco Sheherazades? Aprovamos a espetacularização da ‘justiça’ feita com as mãos sujas de sangue ou de ignorância?

Sim, não saímos às ruas mais, as aguardarmos nos nossos sofás. Não continuamos, ainda, o amanhã de Junho de 2013. Não mais nos indignamos, no âmago, com bananas racistas jogadas sobre e para os campos de futebol.

Associam-nos, midiática e proveitosamente, a nossos darwinianos ancestrais. Somos todos “macacos”? Ou somos apenas humanos bem adestrados? Ninguém deixou de ir aos estádios. A bola rola e o futebol nos encanta... Melhor que a sala ou a cozinha, aguardamos também nossa Copa das Copas.

Pelo contrário, daqui alguns dias, estaremos em festa. Nossas ruas, nossos corpos, nossas casas se enfeitarão. Bandeirolas verdes-amarelas tremularão, inclusive nas favelas e em outras janelas com vista para o mar. Seremos apenas torcedores fanáticos que gritarão na hora de nosso gol de supostos campeões?

Esqueceremos, como de hábito e por história, da turba e das massas arruaceiras. As massas humanas que podem fazer uma onda nas arquibancadas. As mesmas que irão violentar e espancar, até a morte, alguém que, por sua cor, sua miséria, suas marginalidades, ou supostas “maldades”, se tornem a diferença a ser eliminada.

Seriam esses Outros a projeção encarnada de nossas mais inconscientes monstruosidades? Dentro ou fora dos estádios, das novas arenas que não são ágoras.

Os racismos, por exemplo, cada dia mais, são e serão visibilizados/espetacularizados e difundidos. Espero eu combatidos e erradicados. Há ainda muitas bananas invisíveis e suas cascas no meio do caminho. Nelas ainda vamos escorregar, não bastará engolirmos os frutos dos nossos preconceitos.

Entretanto, para além desses discursos antirracistas, muitos atos continuam enraizados institucionalmente. São racismos que se definem pela hierarquia suposta da superioridade de brancos sobre negros. É o naturalizado racismo ambiental ou institucional.

Racismo institucional pode ser definido como o fracasso coletivo das instituições em promover um serviço profissional e adequado às pessoas por causa da sua cor, conforme boletim do IPEA.

Porém o chamado “fio branco” segregador hoje é mais visível nas ações de cunho ideológico contra mulheres. As Cláudias arrastadas ou as Fabianes de Jesus espancadas como maléficas proliferam nos mapas de violência recentemente publicados. Só não ganham notoriedade e manchetes de jornais. As suas mortes devem ser contabilizadas com outros milhares de corpos banalizados.

Segundo um documento do Geledés, Racismo Institucional: uma abordagem conceitual, esse tipo de racismo é “um dos modos de operacionalização do racismo patriarcal heteronormativo”. Ainda tem os ranços históricos do modelo patriarcal do Brasil Colônia e suas senzalas.

O documento nos indica, na proposta de construção de políticas públicas de proteção de mulheres negras, deve-se, entre outras coisas, se considerar:
1.    Que o racismo institucional ou sistêmico garante as condições para a perpetuação das iniquidades socioeconômicas que atingem a população negra e outras atingidas pelo racismo.
2.    Que o racismo institucional se associa a outras iniquidades, produzindo ou ampliando as desigualdades experimentadas pelas mulheres negras e as demais atingidas pelo racismo patriarcal. Da mesma forma, associando-se a diferentes eixos de subordinação, agrava as condições de vida e aprofunda iniquidades.
3.   Que o racismo institucional traduz escolhas institucionais atuais ou passadas reeditadas por decisão ou inércia. E sua destruição requer novos compromissos, processos e práticas.

Portanto, como disse outro dia, não bastará superamos os racismos, temos a urgência de sua erradicação. Muitos ainda se apoiam, fragilmente, na ideia de um país que é cordial para com sua população de pele escura. Continuaremos sendo confusos cafusos e mamelucos mulatizados?

Com certeza sei que não somos orangotangos. Somos negros e negras. Somos os que ocupam a maior estatística de extermínio de jovens, quando comparados os números de mortos pela polícia militar em relação a jovens brancos; vejam a Cor dos Homicídios: “... a tendência geral desde 2002 é: queda do número absoluto de homicídios na população branca e de aumento nos números da população negra. E essa tendência se observa tanto no conjunto da população quanto na população jovem...”.

As múltiplas violências, em especial as que se praticam, instituem-se e se tornam mutiladoras, são um campo fértil de multiplicação também do uso da violência do Estado.

 A violência, que se torna um conceito vazio para o viver em comum, em especial para os jovens tornou-se uma porta de saída, uma alternativa, inclusive para a sobrevivência. Um menino excluído mata um professor, negro, incluído, por causa de um celular...

Nesses tempos de bárbaros, fardados ou em massas ensandecidas, como então esclarecer que os Direitos Humanos não são apenas de encarcerados? Abriremos as portas da sala para nos tornar novamente uma multidão contestadora?

O problema é que essa porta também nos leva a um “beco sem saída”: como educar para e em direitos humanos e práticas de tolerância, convívio e respeito ao outro, quando o tornar-se violento é a única opção que resta ou restou?

Vamos, iludidos pelos boatos ou falsas notícias, atirar também pedras ou balas nos corpos marcados para morrer? Ou estamos apenas na antevéspera de uma grande festa, um grande espetáculo dentro nas Arenas, com manifestantes outsiders sendo massacrados por brucutus e representantes policiais da Ordem e do Progresso, do lado de fora?

Enfim, sem respostas definitivas, pergunto-me: como transformar essa transversalidade dos racismos, das barbáries, das múltiplas violências visíveis e do espetáculo do futebol em potência de vida, para além de suas funções e finalidades biopolíticas?

Façam suas apostas. Seremos e continuaremos os campeões? Ou, então, entrem junto comigo no beco de muitas saídas e muitas linhas de fuga...

Copyright/left jorgemarciopereiradeandrade 2014 (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet e outros meios de comunicação com e para as massas)

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Indicações para leitura –

Boletim de Análise Político Institucional – 4 – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, Brasília, 2011.

Racismo: uma abordagem conceitual – Geledés, Instituto da Mulher Negra & Cfemea, Consultoria e redação: Jurema Werneck, 2012.

Waiselfisz, Julio Jacobo, Mapa da Violência 2012 – A Cor dos Homicídios no Brasil, Cebela&Flacso¨& SEPPIR/PR, Brasília, DF, 2012 (1ª edição em PDF) – http://mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_cor.pdf

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O MARTELO NAS BRUXAS - COMO "QUEIMAR", HOJE, AS DIFERENÇAS FEMININAS?
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RAÇA, RACISMO E IDEOLOGIA: ZUMBI ERA UM VÂNDALO, UM BLACK O QUÊ? https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2013/11/raca-racismo-e-ideologia-zumbi-era-um.html


MOVIMENTOS, MASSAS, MANIFESTOS E HISTÓRIA: POR UMA MICROPOLÍTICA AMOROSA, URGENTE.
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AS SELEÇÕES: OS ESTÁDIOS, OS PARADIGMAS E UM NOVO GAME https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2010/06/as-selecoes-os-estadios-os-paradigmas-e.html