“... a discriminação negativa não consiste somente em dar mais àqueles que têm menos; ela, ao contrário, marca seu portador com um defeito quase indelével. Ser discriminado negativamente significa ser associado a um destino embasado numa característica que não se escolhe, mas que os ‘Outros’ nos devolvem como uma espécie de estigma...” (A Discriminação Negativa – Cidadãos ou Autóctones? Robert Castel, 2008).
Somos nós, os Outros, como grifei no texto de Castel, que
temos a alteridade e a também certa autoridade para forjarmos a exclusão desses
diferentes de nós.
Peço desculpas aos meus leitores
e leitoras, desde junho não conseguia escrever para vocês. Minha própria auto
exclusão se fazia motivo de meu silêncio de escrevinhador. Sim, escrever é um
ato doloroso e espinhoso, parece fácil, mas não é como a simplificação do que
fazemos diante dos nossos cotidianos como excludentes, não como excluídos.
Resolvi revirar meu baú de textos,
estava com a reflexão sobre as multidões que vivemos recentemente. Fui passear
há 11 anos atrás, em 2002, quando publiquei um texto, em fevereiro, como o
título: O Direito a dois cadernos. Vou reproduzi-lo,
parcialmente, e tentar reacender e reviver o momento que o desencadeou. Caso
encontrem algumas coincidências é mera responsabilidade de todos nós como
autores, atores ou espectadores, ou melhor, se fôssemos espect.-atores.
CENA 1 – Supermercado da Rede SUPER. Uma grande cidade, uma metrópole.
Um menino. Uma fila de consumidores. 01 Caderno e uma 01 caixa de ovos. Um
olhar.
Há dias, escrevi lá no passado,
venho me questionando acerca da literatura, principalmente do uso pouco criativo,
na televisão e na vida de todos nós, do visionário e escritor George Orwell
(1903/1950). É o conhecido autor do romance ‘1984’. O Grande Irmão (Big
Brother) naturalizou-se e foi banalizado. Mas uma vez a Sociedade do Espetáculo
e do Controle nos enfeitiça e domina. Outra vez a mais não olharemos para
outros monitores ou tele telas que nos seduzem.
Indagava-me há tantos anos o mesmo
que agora, diante de um mundo pós-Snowden, sobre os nossos modos de ver e se
distanciar do que Bauman chama de “vidas desperdiçadas”, ou seja, o que ele
chama de ‘refugos humanos’, ou melhor, os seres humanos tornados descartáveis,
como efeitos de nossas novas economias neoliberais do hipercapitalismo.
Voltemos, então, a Cena 1: Eis
que estou, como natural que é, numa fila de consumidores, dentro de um
supermercado. Obedientemente empurrando o meu carrinho de compras, poucas. Olho
em volta e tudo é estímulo para o consumo. Novas marcas, novos marketings,
novas seduções, novos e brilhantes produtos embalados.
Lá fora, na porta de entrada, a
violência explícita (o olhar fiscalizador dos seguranças). No perímetro do
caixa, limite e limitação, meu olhar consumido é despertado. Passa um garoto,
sandálias de borracha, calças curtas e olhar vago ou pedinte (ainda não
encontrei outros modos de descrevê-los). Visivelmente pobre, visivelmente
empobrecido, visivelmente excluído (como o que nos disse Castel).
Ele traz nas mãos: 01 (um)
caderno espiral, desses de 200 folhas e uma 01 (uma) caixa de ovos tipo extragrande.
Ele passa e pede aos participantes das filas: - “Moço, moça, paga para mim essas coisas...”.
Todos olham, se entreolham,
disfarçam, ele passa, o Supermercado está lotado. É dia do pagamento dos
assalariados. Como já naturalizamos também nossa permanência em filas (Bancos,
Correios, INSS, Loterias, Hospitais, etc...), ele passa... Ele se afasta. Em
seguida abandona o caderno numa prateleira de papel higiênico. E continua a sua
peregrinação suplicante. Os autorizados na fila enfileirados, ordeiramente,
apenas nos entreolhamos de novo.
CENA 2 - A caixa do supermercado,
a fila, o olhar desconfiado, a insegurança.
Eis que surge a pérola que me fez
pensar sobre os 02 (dois) cadernos: uma mulher, negra como eu, também excluída
como alguns ali presentes, mas que não se deu conta, ainda, da sua condição,
olha para algumas pessoas enfileiradas e se justifica: -“se ele tivesse apenas pedido os ovos, eu até pagaria...”
CENA 3- 01 (um) Outdoor enorme,
uma imagem de um computador e seu processador de dados, uma família reunida em
torno dele, felizes.
O outdoor anuncia a chamada para
o lançamento da Intel e do novo Windows, com uma frase rica de significados e
significantes: “INVISTA NO SEU FILHO, ELE PODE RENDER UM GÊNIO”. Lá estão
estampados uma menina, um menino, um laptop e o rosto de Einstein (sem a língua
para fora!).
Autorizei-me, e ainda não me
arrependi, em ‘compartilhar’ minhas indagações surgidas desse encontro triste.
A primeira é: qual é a minha, a nossa dívida para com estes meninos e meninas
que estão nessa situação de rua?
Vocês primeiro interrogaram se eu
paguei os ovos ou o caderno? Eu também não paguei os ‘dois’ cadernos que o
menino (a) trazia na mão. Eu também não retruquei à senhora que falou da sobre
a escolha (que não era de Sofia). E, mais ainda, não me indignei, naquela hora,
com toda essa situação. Por quê? Temor da atitude grosseira dos seguranças que
expulsam essas crianças desses espaços?
Não, apenas era mais um nessa
fila dos que pensam: quem sabe isso é uma ‘pegadinha’. Ou pior, no modelo
panóptico e paranoico do orwelliano 1984, não agir é porque não estamos em uma
gravação feita por uma câmera de segurança, ou uma câmera de televisão que nos
mostrará para todo o país. Não me sentia, naquele instante, diante do refugo
social, tão ‘global’ ou minimamente solidário.
Era, ou melhor, continua sendo,
apenas mais um na fila. Era, lamentavelmente, e continua sendo apenas uma cena
‘local’. Triste, repetitiva e banalizada. Ou seja, natural, comum, rotineira, cotidiana,
sempre igual. Mas a visão não é do antigo Big Brother, que estava, segundo
Bauman, “preocupado em ‘incluir’ – integrar, colocar as pessoas na linha e
mantê-las assim...”.
No nosso reality show pós-moderno
estamos aplicando um novo Big Brother. Sua função e eficácia é a Exclusão. Como
diz o sociólogo para: “identificar as
pessoas ‘desajustadas’ no lugar onde estão, bani-las de lá e deporta-las para o
lugar ‘que é delas’, ou melhor, jamais permitir que se aproximem...”.
CENA 4 – A caixa reclama, o
segurança age, a fila permanece, e todos e todas pagam suas compras.
Acho que apenas alguns se
interrogaram: Meninos e meninas com fome de quê? Eram 22 (vinte e duas) horas e
o Supermercado Brasil estava fechando suas portas, para que os telespectadores
da vida pudessem assistir ao ‘’Big Brother” da Rede Globo, em dobro. Um último
olhar do consumidor me lembra na porta: “Sorria
você está sendo filmado”... Estamos, enfim, seguros e vigiados.
Ora, ora, alguém vai perguntar:
hoje nessa nossa evolução social e econômica não retiramos esses refugos da
marginalidade, da fome e das ruas?
Porém, hoje, estou renascendo de
minhas próprias cinzas escrevinhadoras para lembrar que já naquela época
estive, também, anestesiado. Mas, entretanto, contudo e todavia tenho que
lembrar também que já me indagava sobre as cenas e sua relação com as pessoas
com deficiência.
Me perguntei se naquela cena dos
pedidos à fila do supermercado, numa nova classificação sobre deficiências, se
o ‘menino(a)’ pedinte não poderia ser ‘incluído’ como uma criança em situação
de deficiência. Quem sabe, talvez, pela naturalização os ovos seriam pagos por
mim ou outro ‘filante’, como manifestação de piedade ou caridade? Quase certo
que sim, pois estávamos em um ambiente, como os shoppings de hoje, ‘totalmente
seguros e assegurados’.
Não nos encontrávamos, fechando
os vidros dos carros, nos cruzamentos das ruas, nos semáforos. E o pedido de
pagamento não era um pedido de resgate, apenas, nos gerava aquela repulsa ou
preconceito que já deixamos lá no cantinho dos nossos inconscientes.
Afinal para quê alimentar de ‘
luz’ àqueles que só reclamam de um ronco na barriga? Nós, os da fila, não
acreditamos ainda na dicotomia entre intelecto, aprendizagem e estômagos?
Enfim, tudo isso que escrevi e
refleti são apenas ‘cenários’? Ou seja, será que ele só inventou ou é apenas
uma ficção ‘real’? Tudo isso foi, é e continuarão sendo cenários para falarmos
de uma exclusão que está imbricada com a inclusão. A existência das fomes,
todas as fomes, principalmente aquela que preocupava Paulo Freire, a educação,
como um direito inalienável dos cidadãos e cidadãs, acaba sendo denunciada pela
a sua ausência.
Recentemente, uma ameaça partida
de não sei onde, gerada por interesses que não sei de quem, mas todos, excepcionalmente, sabem,
fez um termo velho, ‘preferencialmente’, ser motivo de uma grande e polêmica
disputa. Os meninos ou meninas dos Supermercados Brasil, mais ou menos uns
03(três) milhões, fora da escola devem ser ‘incluídos’, preferencialmente, em
uma escola especializada em prevenção de futuras atitudes violentas ou
transgressoras? A fundação que cuida deles e delas não é chamada também de
centro de reabilitação? Essa fundação não é uma escola ‘especial’?
Voltemos, enfim, às cenas e às
suas interrogações necessárias. Disse no passado e agora confirmo: - é aí que
surgem as exclusões sociais e os discursos que as legitimam. Na pobreza e na
miséria, humanas, dizem que quem tem um “ovo” torna-se rei, é soberano.
Portanto, para quê os da fila se indignarem com essas exclusões? Para quê
precisamos de cadernos de papel? Os direitos não são, também, de papel?
Por essas perguntas que não tenho
o dever de responder sozinho, já que a gramática que pode mudar radicalmente os
paradigmas não aceita ser apenas preferencial e exclusiva, é que insisto e
lanço mais uma pergunta: Porque não damos 02(dois) cadernos, o de papel e o
digital, para todos os meninos e meninas, com ou sem deficiências (inclusive as
sociais), para que juntos, com todos os recursos e respeito às suas
singularidades, exatamente por suas diferenças, eles e elas não tenham de
escolher apenas um caderno? Ou não queremos quebrar esses ovos?
Ou então, para acabar com as querelas e
continuar na fila, com os corações blindados e as mentes capturadas, vamos
distribuir, preferencialmente, à mão cheia, um único caderno onde se escreve
repetidas vezes: - Eu não sou parte
daquele show, eu não pertenço àquele mundo, eu sou do time que fica de fora,
muito embora me convidem para uma breve passagem pelo grande campo, também
excludente, chamado de Inclusão.
Já mandamos restaurar os nossos
sofás que recentemente foram parcialmente danificados pelas imagens
teleguiadas, porém vandalizadoras daqueles baderneiros que queriam erradicar,
radicalmente, essas exclusões? Não se esqueçam
de que a rede social dos Supermercados Brasil está promovendo, com toda
segurança, o lançamento do meio de controle de nossas necessidades básicas: o ‘embolsa
tudo’. Com satisfação e gozo garantidos, sem ter qualquer dinheiro de volta.
AVISO AOS NAVEGANTES (também
chamados hoje, pós tempos de espionagem virtual e até presidencial, after
Snowden, de cidadãos e cidadãs de ‘vidro’, ou seja, total e amplamente
transparentes para o Estado e o Mercado): quem encontrar um menino ou menina
pedintes de ovos e/ou cadernos favor me avisar por meio das nossas redes
includentes e cibernéticas, muito embora saiba que ainda resta um grande número
deles que não sabe nem o que é Internet.
Copyright/left – favor citar o
autor e as fontes, mesmo as inexistentes, em republicações livres pela Internet
e outros meios de comunicação de massa (ou serão multidões? TODOS DIREITOS RESERVADOS 2025)
INDICAÇÕES PARA LEITURA CRÍTICA –
A DISCRIMINAÇÃO NEGATIVA –
CIDADÃOS OU AUTÓCTONES? , Robert Castel, Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 2008.
VIDAS DESPERDIÇADAS – Zygmunt Bauman,
Editora Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, RJ, 2005.
LEIA TAMBÉM NO BLOG –
O RETORNO DA INCLUSÃO PELA
INTEGRAÇÃO: Novos muros nas Escolas, Fábricas e Hospitais.
INCLUSÃO, RACISMO E DIFERENÇA. https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/05/inclusao-racismo-e-diferenca.html
INCLUSÃO/EXCLUSÃO: DUAS FACES DA MESMA MOEDA DEFICITÁRIA? https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/02/inclusaoexclusao-duas-faces-da-mesma.html
O JUQUINHA E SUA CADEIRA, POR UMA EDUCAÇÃO DIFERENTE - https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/07/juquinha-e-sua-cadeira-por-um-educacao.html