Imagem publicada – uma foto feita a contraluz nos anos 80, por mim, com uma velha máquina fotográfica Yashica, com meu pai
como foco e principal imagem ao centro, com seu rosto e chapéu de palha, que
sempre o acompanhava nas suas caminhadas e nos seus momentos da roça e da
lavoura, é misturado ao Sol brilhante de um dos muitos crepúsculos lá em nossa
terra natal, Cambuquira, Minas Gerais. Um Sol que nos mantêm intensamente
misturados ao cenário da natureza e das montanhas ao fundo, típica de nossas
paisagens e nossos poentes. E que no escurecer e no anoitecer ainda mantemos nossos brilhos subterrâneos.
Daqui há pouco estarei ao seu lado. Daqui há pouco poderei sentar-me na
varanda e olhar mais um crepúsculo. E ao olhar para ele irei poder refletir,
mais uma vez, sobre nossas infindas finitudes.
Ele supera mais uma barreira, aquela que poucos podem, ao que eu saiba,
ultrapassar: tornar-se centenário. Muito embora matérias jornalísticas digam
que estamos tendo um crescimento de número de pessoas além dos 100 anos no
país.
Entretanto, minha indagação continuará
sendo sobre o viver e o ter esses anos biológicos contados com qualidade e
dignidade. Em outra matéria fica claro que ainda somos atravessados pelos mitos
ou pelos discursos científicos que atribuem a longevidade à riqueza material ou
aos que podem usufruir dos avanços da medicina.
Em matéria sobre mulheres centenárias, a BBC nos traz algumas reflexões
destas que podem nos ajudar a compreender que sentido tem esse viver em busca
da qualidade e não da quantidade de anos acumulados. Ao reunir uma inglesa de
102 anos que foi uma das primeiras mulheres a posar nua para um calendário
beneficente, uma das sobreviventes do Holocausto e do campo de concentração Terezin,
e uma centenária que adora velocidade, podemos ver transversalizadas vidas que
têm em comum o desejo profundo de viver intensamente.
A experiência de Alice Herz-Sommers, que conheceu o Theresienstadt, o
Campo Terezin, sob o jugo e invenção do nazismo, me aproximou de recentes
leituras sobre nossas resiliências diante das crueldades e dos fascismos. Ela
diz, nos seus 108 anos, que: "Minha
irmã gêmea era um tipo pessimista, ela morreu antes de fazer 70 anos porque
nunca ria, nunca. Mas rir é uma coisa linda...”.
Em tempos que vemos o recrudescimento de ódios, racismos exuberantes,
fascismos declarados, desejos retrógrados de intervenção militar, falsos
anticomunismos, fabricação de novos medos e novas angústias, talvez possamos
aprender com Alice e com o véio Arnaldo.
Ambos conheceram o Século XX, em todas as suas dimensões. O meu pai
relata, com sua lucidez impressionante e memórias mais ainda, que pode ver e
viver as nossas ‘ velhas’ Revoluções, seja a 1930 ou a de 1932. Assim como a que falsamente, por ser golpe civil e
militar, também foi assim chamada nas histórias oficiais, aquela dos Anos de Chumbo de 1964, que durou 21 anos.
Em todos os momentos que busquei em minhas memórias em processo de
dissolução, diferentemente de meu pai, sempre pude revê-lo encarando todas as
agruras ou desafios com muita firmeza e com um sorriso nos lábios. Não me
lembro de rancores, de discursos de ódio, de apedrejamentos do Outro, muito
menos de discriminação social ou racial.
Com certeza as caminhadas que
com ele fiz até as suas “plantações”, seus sítios ou terras arrendadas, me
tenham ajudado a aprender o respeito que ainda nutro pela Terra e pelos que se
diferenciam de mim. Tive uma rara oportunidade de vê-lo em diferentes espaços,
desde suas ações de fé, como a Romaria, as procissões, as missas, até seu
laborioso dia atrás de um balcão de um bar e restaurante. Sempre o mesmo e
dedicado homem e cidadão. Sempre o que buscava a fé, a plantação do café e a fé
no alimentar e cuidar dos Outros.
Busquei por essa convivência com quem aprendeu, como Alice, a ser um
provocativo bem humorado, o que ele
ainda o é, a não cair nos nossos abismos tentadores do pessimismo e da
descrença na Humanidade. Os meus convites à dança com Dona Morte nunca foram
maiores que a Música da Senhora Vida Gaia. Até o doer passa a ser
re-existente...
Pelo contrário, daí, talvez,
venham meus percursos na medicina, na política e na defesa dos direitos
humanos, mesmo que todos esses campos sejam, para mim, só de reinvenção
permanente. As minhas caminhadas e caminhos puderam tomar rumos até opostos aos
dele. Brincava com a oposição, desde um
votar em Lott (o Marechal e sua espadinha) contra o seu candidato, Jânio (dos
bilhetes e da vassourinha). Ser do contra não era ideologia mas um modo de
construção de afetos e de proximidades.
Nesse ano que agora temos de aprender novos caminhos e novos passos
rumo ao futuro, olhando para trás e não desejando o refluir e o retrocesso,
desejaria, com todo afeto, que milhares de pais como o meu fossem a referência
de muitos outros brasileiros e brasileiras como eu.
E, por crer, com diz Thiago de Mello, o poeta: “_Não somos os melhores – Não somos
nem melhores nem piores. Somos iguais. Melhor é a nossa causa...”, e
que devemos mostrar a nós mesmos a nossas raízes, nossos dilemas, nossos medos
e nossas esperanças. E que a nossa causa comum seja mudar, mudar e mudar
sempre. Mudar o que precisa ser mudado, como diz o poeta “para que a vida possa
um dia ser mesmo vida, e para todos”.
POR ISSO, sabendo no meu âmago que tenho um pai que deseja ardente e
fervorosamente a igualdade é que lhe escrevi um poema e o compartilho com quem
puder lê-lo e compartilhar:
MEU PAI, NOSSAS MONTANHAS E NOSSOS CREPÚSCULOS
Um pai e seu filho mais envelhecido
Seguem juntos até o mais alto e imaginário pico,
Sobem juntos por trilhas que se apagam
Sob seus pés cansados e com bolhas,
Pisam de leve folhas, relvas ou os espinhos, e, lentos
Sobem como bolhas leves de sabão ao vento,
Que a luz do sol atravessa em arco-íris
E os deslumbra, pois o caminho ainda é longo,
Mesmo se curto é o viver...
Árdua e íngreme é a montanha-vida,
Assim como as vidas nas suas matas e entranhas
As suas pequenas ou grandes rochas são
Milênios de consolidação de uma Terra,
A mesma que o pai ensinou revolver, semear
E com a água que brotar de nossas próprias rochas
Deixar brotar delas novas sementes...
A mesma terra que se queimou e se sulcou com os arados,
Mesmo pisoteada, revolvida, sob pás, picaretas ou enxadas,
É como sua negra pele só agora encarquilhada, é mais profunda,
Tem cicatrizes, velhas feridas, mas não morreu,
Pois dentro dela permanecem os úmidos segredos
De ser sempre uma renovada resistência,
Uma nova colheita e um novo espargir sementes...
Mas para que no alto possamos vê-la continuar flor e ser
Temos os dois ainda um aprendizado, um novo ensinar?
Um novo des-conhecer, um olhar juntos e permanentes
Para já antigos crepúsculos, centenários montes,
Onde sempre, por mais de um século, o sol se esconde,
Onde o Sol de seus corações andarilhos, com as in-certezas,
De ter a Vida para escalar, fingiu-se morto para à noite tecer...
E o dia seguinte novamente lhes acontece,
E os dois olhando juntos para esses poentes,
Poeticamente sentem que seus próprios e diferentes crepúsculos,
Suas próprias noites infinitas, mas também de dia findas,
Diante de seus olhares pacientes e sempre aprendizes,
Por serem sempre ávido das incógnitas escarpas e abismos,
Entre as velhas trilhas, com seus pés insistentes,
Teimam, persistem nesse rumo ao horizonte,
O buscar suas próprias finitudes...
O meu pai caminhante, como os alpinistas sob avalanches,
Sempre em busca do próximo caminho ou vereda,
Subiu e desceu estas montanhas de muitas Minas,
E com ele aprendi que nada
Nem ninguém não nos detém,
Nem mesmo se a Terra treme,
Se andarilhos visionários encaramos
O que temos de destemer:
O nosso paralisante medo de morrer.
E hoje, nos seus 105 anos bio-lógicos, demos apenas,
Mais uma vez juntos, o próximo passo...
(Texto e poema dedicados e em
homenagem a meu pai Arnaldo Pereira de Andrade, o mais ‘velho’ dos andantes
romeiros de sua/minha cidade natal... que já atravessa as serras da Mantiqueira
há mais de 80 anos...)
LEITURA CRÍTICA PARA NOS ESTIMULAR MEMÓRIAS –
O TEMPO VIVO DA MEMÓRIA- Ensaios de Psicologia Social – Ecléa Bosi,
Editora Ateliê Editorial, São Paulo, SP, 2003.
POESIA COMPROMETIDA COM A MINHA
E A TUA VIDA – Pequena História Natural do Homem no Fim Que Vem Vindo do Século Vinte – Thiago de Mello,
Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, RJ, 1986.
MEMÓRIA E SOCIEDADE – Lembranças de Velhos, Ecléa Bosi, Editora
Companhia das Letras, São Paulo, SP, 2001.
INDICAÇÕES DE NOTÍCIAS NA INTERNET –
Centenárias dão dicas sobre como chegar bem aos 100 anos - https://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/07/120702_segredos_vida_longa_mv
‘Supercentenário' brasileiro faz sucesso nos EUA com seu estilo de vida
saudável http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/03/120313_centenario_rc.shtml
Metade dos nascidos hoje em países ricos chegará aos 100 anos, diz
estudo https://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2009/10/091001_bebe_expectativa_vida_np
LEIAM TAMBÉM NO BLOG –
ENVELHE=SER ou TORNAR-SE, + 1, VELHO? (29 DE ABRIL 2014) https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2014/04/envelheser-ou-tornar-se-1-velho.html
O MUNDO ENVELHECE, AS INJUSTIÇAS
AINDA PERSISTEM, E, ENTRETANTOS, MEU PAI FAZ 102 ANOS... https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/04/o-mundo-envelhece-as-injusticas-ainda.html
QUEM NÃO GOSTARIA DE VIVER 100 ANOS? https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2010/04/quem-nao-gostaria-de-viver-100-anos.html
AOS PAIS QUE APRENDERAM COM A(R) DOR AS PERDAS https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/08/aos-pais-que-aprenderam-com-ar-dor-as.html
EXISTEM PAIS DIFERENTES OU DIVERSOS PAIS? https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2010/08/existem-pais-diferentes-ou-diversos.html
Admirável, não apenas o longo tempo de vida, mas esse convívio prazeroso que vira poesia. Parabéns Jorge Marcio e seu Pai Arnaldo Pereira Andrade, 105 anos cantado em prosa e versos...
ResponderExcluirSeu Arnaldo é um pai feliz; concebeu um poeta, sensíivel e grato.
ResponderExcluirQue bela e linda história de amor entre um pai e um filho. Parabéns seu Arnaldo! Não só pelos seus 105 anos de vida, mas também, pelo filho que te ama e te admira com tanto esmero..."FELIZ ANIVERSÁRIO!
ResponderExcluirMuito bom, gostoso e emocionante.
ResponderExcluirUm beijo cunhado poeta
Taluana Nunes
ResponderExcluirProfundamente lindo e genuinamente verdadeiro...quanta beleza Jorge Marcio Andrade...beijo querido.
Taluana Nunes
ResponderExcluirProfundamente lindo e genuinamente verdadeiro...quanta beleza Jorge Marcio Andrade...beijo querido.
Lindo e emocionante... Tocante!!!
ResponderExcluirEdilene Máximo (via Facebook)
ResponderExcluirTambém guardo com muito carinho, gratidão e muita saudade a presença marcante e fundamental em minha vida e dos meus irmãos, q foi a presença do meu pai, em nossas vidas! Fazem 18 anos q ele não está mais fisicamente entre nós, e não há um dia( sem exagero) que não fale nele ou eu me lembro dele. Não há mesmo!
Muito lindo esse seu amor e admiração por seu pai, quando deseja que as novas gerações também tenham esse referencial.
Caminhando a passos lentos e sorrindo, sempre, Sr. Arnaldo nos ensina o segredo da longevidade.Que Gaia nos permita experimentá-lo.
ResponderExcluirLindo poema. Lindo texto. linda foto. Um pai guardado no coração para sempre. , pelo que era e pela vivencia, alguém inesquecível. Ele vive em ti e nas montanhas e matas de tua Minas.Que homem especial, que filho atento. Magia pura Jorge Márcio! Valéria
ResponderExcluirAs vidas são belas e significativas quando pessoas juntas fazem a caminhada e vão refletindo, apreciando o que foi construído, aprendido, vivido e amado durante o caminhar! Assim belo, significativo é o seu caminhar junto com seu pai Jorge Marcio!
ResponderExcluirObrigada pelo poema.
ResponderExcluirObrigada por sua sensibilidade e voos de alcance imprevisíveis.
Beijos.
Vera.
Invejo-o por haver tido esse pai, essas lembranças de uma infância rica de menino pobre. Posso me lembrar assim de meu avô, com quem tive uma infância de menina rica, mas, muito despreparada para enfrentar as agruras e amarguras que se seguiriam depois de ter meus filhos. Passamos, eu e eles por momentos de grandes dificuldades. Porém, nunca permiti que soubessem. Sabia como contornar e fazer de comidas simples, que inventava, parecerem verdadeiros manjares... dulcíssimoabraçoacalentador
ResponderExcluirmeu avô por paterno morreu com 102 anos
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