terça-feira, 29 de abril de 2014

ENVELHE=SER ou TORNAR-SE, + 1, VELHO?

Imagem publicada – fotografia que fiz de meu pai ao por do sol, em Cambuquira, MG, em contraluz, há muitos, muitos, muitos anos atrás, pois agora, somente agora, aos 104 anos completos, sua silhueta começa a apresentar os chamados sinais físicos do envelhecimento. A sua memória e seu humor continuam os mesmos. Não conhecem esse crepúsculo, que para mim e muitos se antecipa: o não aprender a ser, apenas ao falso aprendizado do conformar-se, ao consumir-se a si próprio.

“A liberdade e a lucidez não servem para grande coisa, se nenhum objetivo nos solicita mais: elas têm um grande valor se ainda somos habitados por projetos. A maior sorte do velho, mais que gozar de boa saúde, é sentir-se que para ele, o mundo ainda está povoado de fins...” (Simone de Beauvoir, A Velhice).

Eu, aqui indagante, conheço um que ainda nutre projetos, romarias e caminhadas, rumo a um Norte de fé e solidariedade. E, se lhe for perguntado se teme as bolhas nas solas dos pés, o frio ou as distâncias, responde lúcido e livre, sem medo, visível, da Dona Morte: “eu ainda não morri”.

Tento seguir na sua trilha existencial, uma vereda imprevisível e sempre tortuosa, vencendo montanhas de temores ou amores, entretanto, uma pergunta me assombra nos tempos atuais: Envelhe=ser ou Tornar-se Velho? Essa inevitável pergunta me acompanha há alguns dias. Hoje me ficou mais próxima e íntima, mais intensa com esse aniversário de meu pai centenário. Um espelho vivo e intenso no qual tento me admirar.

A filósofa que cito, Simone de Beauvoir já me trouxe, há muito tempo, a revelação de que: Mulher não se nasce, Torna-se Mulher... E, usando e abusando dessa interpretação do feminino, reflui para o questionamento acima apresentado. Tornamo-nos apenas velhos? Velhos saudáveis sem projetos?

Repasso-lhes, sem respostas definitivas, a indagação: vamo-nos tornar apenas ‘velhos’, eternamente rejuvenescidos? Obsoletos? Asilados ou Exilados? Antigos ou “artigos científicos” de engenharia genética sem éticas que nos prometem a imortalidade ou a perfeição? Ou seremos, bioéticamente, os que querem re-nascer aprendendo a morrer?

Somos todos seres em processo, biológico e humano, em um processo vital chamado de envelhecimento. Nascemos já mortos. Nascemos já imperfeitos e na incompletude de nos sabermos mortais, finitos. Essa finitude nos leva a buscar asilo e abrigo na defesa inconsciente de uma eterna juventude.

Abrigamo-nos sob as asas obscuras da nossa própria obscenidade, nossos fins como obsoletos. Tudo muda com o tempo. Tudo se esvai. Somos, todos e todas, dispensáveis, quiçá, como diz Baumann, somos hodiernamente descartáveis. Poderíamos, ao menos, sermos, no futuro, corpos recicláveis?

Entretanto, quando nos defrontamos com nossos próprios estreitamentos daquela vereda e trilha existencial, o horizonte, que só era para os Outros, se torna mais próximo. Mais visível na estrada aberta em processo de fechamento, de sol poente. Um crepúsculo existencial, hora de chegada que também é uma partida, como disse Milton Nascimento. Um trem ou um treco?

Se formos, mineiramente, como meu ‘velho’, atrás da linha, atrás das Marias Fumaças, em cada estação, em cada parada, levando nossos sentimentos- locomotivas, nossos devires. Encontramos novas linhas, novas fugas, novos túneis. Ao fim deles sempre houve uma curva nas minhas serras geraes. Aos nossos fins também gostaríamos de saber quem e o que nos esperará na plataforma das próximas e insondáveis Estações.

O QUE CHAMAMOS, então, de VELHO, ao nos sentirmos assim?

Aquele jeans que já lavamos diversas vezes? Contraditoriamente, como a vida, a sua cor desbotada torna-se por isso mesmo o símbolo de juventude e, como antigamente, a roupa mais ‘cara’, como sentido de desejada. Já foram até artigo de luxo ou classificação. Hoje, dentro do modo shopping de ser, se tornam mais caros ainda se forem a farrapos. Como alguns seres humanos, hora depreciados como velhos e usados, hora inflacionados como moda.

Aquele que caminha sobre as três patas, interrogando-se sobre o Enigma da Esfinge, é o jovem ou o velho, o que decifra ou que é antecipadamente morto? Ambos acabam usando o cajado, a bengala, o suporte ou a morte. O seu entardecer vital já visível, sobre um apoio extra para sua caminhada, vira um símbolo da sua dependência, tanto para a marcha como do mundo, para uma posição curvada que o torna menos nobre, menos desejável? Não poderia tornar-se uma alavanca?

Ao completar os 60 anos? A idade que nos permitirá algumas ‘regalias’ ou ‘aposentadorias’? Aquele momento de encanecimento das mechas de nossos cabelos, pele e pelos, dos mais visíveis aos mais íntimos? Há, porém aqueles que nos dizem ser a melhor idade, o momento do sentir-se sábio, experiente e com a vida dos que só descansam, mesmo que o dia inteiro de pijamas?

Entretanto, pelas minhas vivências mais próximas e familiares venho aprendendo a desaprender esses conceitos eivados de preconceitos, de mitos e de falácias. O meu próprio pai, aqui lembrado e homenageado, com o texto e a poesia que segue, ultrapassa amanhã, no dia 30, os 104 anos. Ultrapassa muito mais ainda por continuar sendo querido, respeitado e amado.

E, para os que ainda lhe perturbam, como os médicos e as medicinas, ele diz, bem humorado: -“amanhã, vou ao consultório e luto boxe com eles... e verão como ainda estou forte”. Prova não de vigor físico, mas de sua outra força: o humor, bom e gozado, que não deveríamos jamais esquecer ou perder. Com certeza, hoje com os seus 104 anos já tem outros diálogos com a Vida e com a Dona Morte.

Quem sabe já encontrou algumas das suas quase respostas. Eu, aqui, buscador de novas veredas, cartografias e afetos, tento me/nos alertar ou alegrar com poesia e arte.

ENVELHE-SER

SERÁ APENAS VERBO, RIMA, DESFECHO,
SABÊ-LO É UMA SINA?
VERBO QUE PODE SE CONJUGAR, RIMAR OU TER DESCOMPASSO
COM O NASCER...! OU, COM ANGÚSTIA, APENAS SER...
 EM MOMENTOS DE LUCIDEZ FERINA QUE FERE,
ENQUANTO A MUITOS SUBJUGA,
EM OUTROSMOMENTOS, OUTRAS ÁGUAS LÚCIDAS,
ATORMENTA.

QUEM SABE E ESPICHA PARA ALÉM DO CORPO,
MUITO POUCOS AINDA ÁVIDOS, MESMO QUE JÁ PERDIDOS,
OUTRAS BÚSSOLAS, OUTROS NORTES, OUTRAS SORTES,
ORIENTA-LHES O PERDER-SE PARA VIVER...
EM-VELHO-SER

UM DITO ANTIGO E BEM DITO
QUIÇÁ EPICÚRICO E NÃO DE CIANURETO,
A CADA RUGA, A CADA UMA DAS RUSGAS,
INSISTE E RE-EXISTE, TEIMA E APRENDE,
A CADA GESTO MAIS LENTO,
NAQUILO QUE PERDE DE MEMÓRIA E MOVIMENTO,
A LEMBRANÇA DO ÁGIL, DO RÁPIDO E FORTE,
TORNAM-SE APENAS PROVOCAÇÃO...

REAPRENDER É SEMPRE IMPRECISO,
NÃO BASTA NAVEGAR, CARO POETA,
OS HERÓIS ARGONAUTAS, OS DESTEMIDOS,
AGORA GERÔNTICOS, SÓ APRENDEM, NESSAS ÁGUAS,
QUAIS INICIANTES, COMO SEUS DISCÍPULOS,
QUE SEU NORTE AGORA É DA DONA MORTE...

E, COMO A AREIA NÃO CESSARÁ SEU DESPERDÍCIO,
É HORA DE NÃO SE INCOMODAR, NEM DE SUPLÍCIO,
CONTINUA, CAMINHA, NAVEGA, SE PERDE
 E APRENDE, APRENDE
QUE SÓ SENTE, MENOS SOZINHO,
QUANDO A MÃO QUE É PRÓPRIA LHE ASSEGURA,
MAS QUE TAMBÉM SERÃO AS MÃOS ALHEIAS,
MESMO QUE DESBOTADAS, OU ATÉ FERIDAS,
QUE O REAFIRMAM,
COMO CORPO, COMO CARTOGRAFIA,
COMO DEVIR, O SEU INVISÍVEL CORPO, SÓ SEU QUE É NOSSO,
E DO PRÓXIMOPORQUEMPASSO,
 O PRÓXIMO QUE NÃO SOU EU...

E A SUA MIRADA AGORA VOLTADA PARA O FUTURO,
MIOPEMENTE, MIRAGEM QUE NECESSITAMOS,
ENXERGA, PREFERIVELMENTE LONGE, UMA FIGURA,
UMA SOMBRA, QUEM SABE UMA ASSOMBRAÇÃO
PARA OS ASSUSTADOS E TEMOROSOS,
MAS NÃO MAIS QUE DESATINO, NEM MESMO DESTINO,
PARA OS QUE NA POPA, NÃO NA PROA,
DESSE NAVIO, DESSA NAU DOS SEMPREMENINOS,
AQUELES, NÃO OS AQUILES, MAS SIM OS POR ELE DESAFIADOS,
NESSE COMBATE CONTRA ONDAS E HORDAS,
PARA OS SEMPREMENINOS,
EMBORA AGORA SABIAMENTE ENVELHECIDOS,
NEM SEMPRE AS SOMBRAS SÃO DA DONA MORTE...

COMO OS MARINHEIROS DE MUITOS PORTOS,
DE MUITAS SORTES, ENCARAM, ARREGANHAM OS DENTES,
MERGULHAM NO NOVO VASTO E INCÓGNITO OCEANO...

POR ISSO NÃO TEMO, NÃO TEMEREMOS,
ASSIM IMPRUDENTES NOS LANÇAR DENTRO DESSE REDEMOINHO...
ENVELHE/SER
ESMAE/SER
A NOITE/SER

CONVITE IRRECUSÁVEL DO HOLANDÊS E SEU TRIGAL,
PARA ESSAS TRÊS PINCELADAS INTENSAS,
N0 ONÍRICO TEMPO DO QUAL E AO QUAL PERTENÇO,
SEM ENSAIOS OU ANTEVISTOS,
ESSE NOVO ANTIGO QUADRO PINTO E FOTOGRAFO,
TRATO E RETRATO O ESMAECIDO,
PARA VIVER COMO NA TELA DAQUELA NOITE TÃO ESTRELADA,
UMA SÉRIE DE AZUIS CIRCUNSCRITOS, NOSSSOS CREPÚSCULOS,
NOSSAS MEMÓRIAS DAQUELES REDEMOINHOS,
SEM NENHUM BRILHO OPACO...

QUANDO DIANTE DESTE VAN GOGH ESTARRECIDO
IDENTIFICO-ME, E MOLECULAR EU FICO,
VEJO DE NOVO, SEMPRE O NOVO, O MOMENTO,
EIS A INTENSA IDADE QUE ME PROJETO,
UM ANOITECER RENOVADO, SABIAMENTE TECIDO,
MESMO QUE SOBRE UMA TELA OU PAPEL ENVELHECIDOS,
É O QUE SE DESENHA E SE MISTURA COM AS PRÓPRIAS TINTAS,
SUPOSTAS LINHAS, SUPOSTOS FIOS, SUPOSTAS TRILHAS...

TAMBÉM SUPOSTOS ENLOUQUECIDOS,
OS QUE ENVEREDAM E SE EMBRIAGAM COM O PRÓPRIO NÉCTAR,
LUTAM E RE-EXISTEM À SUA PRÓPRIA VERVE,
ALMA PICTÓRICA, DE HORIZONTES SOLITÁRIOS,
DE CORVOS QUE SOBREVOAM NOSSOS TRIGAIS,
ONDE DEVERIA ESTAR EM REPOUSO, AS AVES NÃO FÊNIX,
PELA SUA FORÇA DE FOGO E IMPRESSÃO DELE,
SEMPRE RESSUSCITA, MESMO QUE SUICIDADO,
SEMPRE RENASCE, MESMO QUE MAL-DITO...
PARA UM DIA, UM DIA AINDA NÃO PRESCRITO...

AÍ, SENDO COMO SOMOS, SÓS, SOLITÁRIOS,
 NÃO MAIS FINITOS,
SÓ MÁQUINAS OU ROBÔS SEM MIRAGENS E SONHOS,
ESTAR SÓS NOS ADMIRANDO, FEITO NARCISOS,
NO VASTO LAGO, APAIXONADOS, MOUCOS E SEM ECOS,
A MORRER DO PRÓPRIO ENVELHE/SER...
EM MIM, EM TI INDAGO:
SOMOS APENAS DURAÇÃO OU DURÁVEL-IDADE...?
(jorgemarciopereiradeandrade e ciailimitada)

Copyright e left – jorgemarciopereiradeandrade (favor citar o autor e as fontes em republicações infinitas na Internet, com seu Marco Civil, e em outros meios de comunicação para e com as massas)

LEITURAS QUE NÃO ENVELHECEM:

A VELHICE – Simone de Beauvoir, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, RJ, 1990.
UMA MORTE MUITO SUAVE – Simone de Beauvoir, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, RJ, 1984.

LEIA TAMBÉM NESTE BLOG:

POR UMA MEDICINA QUE ENVELHEÇA COM DIGNIDADE

O MUNDO ENVELHECE, AS INJUSTIÇAS AINDA PERSISTEM, E, ENTRETANTOS, MEU PAI FAZ 102 ANOS...



2 comentários:

  1. VIDAFLOR
    por Albea Regina
    Envelhe-ser,
    Envelhecer???
    Ainda que ambos pudessem ser flexionados
    Ainda que envelhecer fosse algo do tempo dos errantes e dos navegantes
    Porque se preocupar tanto com a Dona Morte?
    Ela não é pomposa como acredita
    Não escarnece, nem é intrépida
    Ela é apenas uma senhora de cada história
    E enquanto permanece fica perplexa
    Quando a resistência violenta o gosto de sua aproximação
    As vezes é chegada a hora de ir embora
    Na utopia da eternidade
    Numa historicidade que afugente o medo
    Os turbilhões mentais gritem
    Viver é a glória da existência
    Não é possível querer SER e envelhe-ser simplesmente????
    Além do benquerer
    Ou do malquerer?
    O que bendizer?
    Pra que maldizer?
    Viver em êxtase, sendo apenas SER.
    Sem pensar em ponto final, em partidas ou chegadas
    Apenas manter-se vivo, liberto, sem ser idiota
    Com um gosto salífero ou adocicado,
    Sem ser insalubre...
    Viver com a intensidade de amar a si e aos outros
    Sem esmaecer
    Redescobrir o gosto do falar e calar
    Perpetuar o saber e o rever
    Onde os conceitos e valores místicos e míticos
    Tenham ardor em momentos de a dor chegar
    A quentura da vida não tem finitude
    Tem espaços abertos que se vão
    Voos ousados de pensadores
    Os dissabores sejam apenas capazes de nos revelar passagens
    Onde o gosto do sal, salive as lágrimas
    O choro acalme os espíritos
    A presença do acaso seja preservada...
    Querer envelhecer com o gozo de tomar o suco açucarado
    Lembrando conscientemente de que há homens caídos no canavial
    Crianças exploradas em sua meninice
    Jovens exaltados pelo tráfico e pala ausência do poder público
    Envelhe-ser com suor no rosto
    Com o espaço do espelho que nos mostre a face e o que carregamos por trás dela
    Cheiro de famílias encharcadas pelo fardo das obrigações
    Pela economia espoliada, exploradora, massacradora e vil
    Mas felizes pela partilha das esperanças...
    O peso da idade não arrebata os sonhos
    Não dizima vontades
    Não mediocriza o SER, ainda que envelhecendo
    O gerúndio é processo que reina
    Sem reis e rainhas, com seres humanos
    Letais, fatais, finitos em sua incompletude
    Portanto fecundos nos serrados, nos gelados, nas cidades...
    A cada estação uma maré, mudando as ondas dos oceanos
    E os navegantes são levados pelo mar adentro
    O pólen resiste e persiste, com a profundidade
    De renascer em outros tempos, por outros ventos
    Em flores, em jardins, em vida...
    Mesquita, 29 de abril de 2014.

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  2. Só um comentário poema. Pois te afianço. Choravam todos mergulhados
    nas palavras, nos cenários. Nas próprias histórias não contadas. Permanentemente lindo, comunicável.Ao mestre, Gracias.Valéria

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