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publicada- uma foto que fiz, em 2015, do encontro de minha mão que segura suavemente a mão que o Tempo não endureceu: a mão afetuosa de meu pai. Um filósofo pré-socrático, Anaxágoras, escreveu há milhares de séculos: 'o Homem pensa porque tem mãos...", e essa frase faz parte de meu caderno de poesias dos tempos de ginásio... Continuarei à procura desse encontro com a ternura, que depois do olhos, só se revelam, intensamente, com as mãos. E com o respeito pelo que elas podem escrever ou deixar como registro histórico ou marcas indeléveis como aquelas que só sabem obedecer, ordenar, cumprir, iludir, torturar e por fim assassinar... sejam com bombas, balas ou até canetas de tinta cheias de dores e não de amores. As mãos da foto, uma lavrou a terra quase 100 anos, a minha ainda quer deixar aqui outras sementes... me ajudem a semear...
PARA AQUELE QUE SEMPRE DISTRIBUIU O LEITE OU O AFETO, NUNCA PRECISOU ROUBÁ-LO.
Venho
de muitas histórias, e muitas outras ‘’estórias’’, lá nas Minas que não são
minhas nem nunca serão. Lá tenho hoje, mesmo à distância que contar um ‘causo
verídico’. Contar um pouco da vida sempre resiliente de meu pai. Hoje passei o
dia pensando e lhe desejando mais um ano, com dignidade e lucidez, mas também
para que possa no próximo ano estar contando um pouco mais de suas sobre
vivências. Quem sabe os seus bisnetos um dia o lerão.
Meu
pai, embora filho do dono da fazenda e uma mulher negra, Julia Maria da Conceição, minha avó em sua
certidão, passou um bom tempo na função de empregado, de ‘retireiro’’. Aquele
que cuida das vacas e delas tira o espumante leite logo cedo, antes do galo
cantar. Viveu e sobreviveu um tempo que não sei dizer por lá. A sua certidão de
filho bastardo só foi feita 05 (cinco) anos após seu nascimento, em 1915. Por
ela agora ultrapassaria os 100 anos de vida, mas acho que já seriam
suficientemente seculares as suas aprendizagens.
Há,
apesar das lendas e estórias, entretanto e apropriadamente aos tempos que somos
forçados a viver, uma “grande” experiência super vivida nessa época de Três
Corações. Eram os anos da chamada Revolução de 1930, quando gaúchos e mineiros,
insatisfeitos politicamente organizaram o Golpe que derrubou o presidente
Washington Luiz, eleito, impediu a posse de outro presidente, Júlio Prestes,
acabou com a “República Velha” e a “política do café com leite”, quando os
cafeicultores paulistas romperam sua aliança com os mineiros. Começam aí
algumas de nossas “diferenças” macropolíticas.
O meu ‘velho’ só tinha então 20 anos, nasceu
em 30 de abril de 1910. A quebra da bolsa de Nova Iorque repercutia no país. E
mais uma vez em nome da ‘salvação da pátria’. Os sempre mesmos da oligarquia
(governo de poucos) e das elites (os escolhidos, a escol, os mais ilustrados
ou mais espertos) geraram uma crise
entre Minas e São Paulo.
Vieram
então os anos 32 e ele aos 22 anos foi o único que permaneceu na fazenda. O
único que não fugiu para as matas e embrenhados quando disseram que as tropas
‘paulistas’ vinham tomar o quartel de Três Corações. Como único que lá estava
quando as tropas, provavelmente não muito numerosa, e com suas matracas
(aparelhos que imitavam metralhadoras, já que o ‘exército’ constitucionalista
não tinha nem armas e nem munições, apesar dos esforços das elites industriais
de SP).
Eis
então, o que pode ser parte de outra história ou estória: o único refém do ali,
não muito longe do Túnel da Mantiqueira, o último bastião paulista, era o
cuidador da fazenda. Segundo o que ouviu muitas vezes, até dele, sei que é não
era uma invenção. Já havia lido nos livros de História sobre nossas ‘revoluções
e seus golpes’.
Então,
ele o super vivente, destemido, simplório, teve de cozinhar, alimentar, cuidar
dos animais e ainda indicar as trilhas que poderiam levar essa tropa na direção
certa. O que encontrei nas minhas pesquisas, como resumo, é que nesse tempo de
guerra, que durou poucos meses, com São Paulo é que os paulistas
‘constitucionalistas’ foram derrotados pelos ‘’federalistas’’ da ditadura de
Getúlio Vargas. Como se faz nos regionalismos ou separatismos: os 09 de julho passaram
a ser feriado, e não os 02 de outubro, que teve aqui Campinas o último reduto
paulista a se render.
E,
você, seguidor ou não do blog, me leu o texto homenagem até aqui, ficará se
indagando porque tanta descrição de um tempo já passado (?). Lá longe entre as
Mantiqueiras, nossos crepúsculos e as águas minerais...
É
que não poderia lhes falar do que mais aprendi com meu pai, principalmente ao
caminhar junto dele, na beira da estrada entre Cambuquira e Três Corações, no
caminho da roça, aquela que sempre amou: o exercício imprescindível, para além
de quaisquer tempos ou guerras, da resiliência.
Essa
capacidade de supervivência que pode até nos livrar dos sedutores abraços da
Dona Morte. Um e-terno desejo de sobreviver, mas com dignidade e sem a
necessidade de exterminar ou dominar o Outro. Muito pelo contrário como uma
arte de buscar sempre aprender, aprender com o solo, mesmo o aparentemente
árido, com a chuva que não veio, com a geada que virá, com as folhas que secam,
com o frio que congela sementes ou o calor ensolarado que secará os grãos de
café.
Tudo
isso, história, “grandes Guerras Mundiais”, “revoluções”, “golpes de Estado”,
“Ditaduras”, “Anos de Chumbo”, “porões”
e todos os mais intensos momentos da vida política brasileira puderam ser
transversalizadores do Seu Arnaldo/corpo/vida, dito do Bar, mas que sempre
fugiu para o chão a ser semeado, em busca de Paz com seus chamados “camaradas”
do campo.
Invejo hoje, e o confesso, a sua memória trans-lúcida
do que viveu e aprendeu. Contento-me com o fato de ter podido inclusive, com
ele, ter visto como se fazia a política dos tempos de UDN e dos Magalhães
Pinto. Como eram vendidos, comprados e ‘santificados’ os políticos de carreira
e suas promessas de campanha. Pela oposição ferrenha de minha mãe, e por seu
caráter e honestidade, nunca se deixou trocar de papéis como ator social. Nunca
precisou prometer o leite ou pão aos que precisavam em troca de votos.
Para
ele dedico hoje minha escrita, em prosa, ainda espero o sopro inspirado de
alguma poética para estes tempos onde se vende e compram até os mais legítimos
votos. Tempos onde sob a ameaça de novas ditaduras ou democracias neoliberais,
forjadas pelos mais vis espetáculos e midiatizações, me vejo mais envelhecido
do que um homem livre de 106 anos. E, por isso, estou muito mais triste, muito
mais desvitalizado do que ele.
PARA
TODOS NÓS que podemos ainda respeitar os seus muitos anos vividos, sobrevividos
e supervividos, deixo uma reflexão de Henry David Thoureau (1817-1862), no
livro A Desobediência Civil –
“...
Assim, a massa de homens serve ao Estado não na qualidade de homens, mas como
máquinas, com seus corpos. São o exército permanente, as milícias, os
carcereiros, os policiais, os membros de destacamentos, etc. Na maioria dos
casos, não há, em absoluto, o livre exercício do julgamento ou do senso moral;
ao contrário, eles se rebaixam ao nível da madeira, da terra e das pedras; e
homens de madeira talvez pudessem ser manufaturados para servir aos mesmos
propósitos [...]
No entanto, homens assim são geralmente estimados como bons cidadãos. Outros – como a maioria dos legisladores, políticos, advogados, ministros e funcionários públicos – servem ao Estado, sobretudo com a cabeça; e, como raramente fazem qualquer distinção moral, podem tanto servir ao Diabo, sem ter a intenção, como a Deus. Pouquíssimos – tais como os heróis, patriotas, mártires, reformadores em sentido amplo e homens – servem ao Estado também com sua consciência, e portanto necessariamente resistem a ele a maior parte do tempo; e costumam ser tratados por ele como inimigos. Um homem sábio só será útil na condição de homem, e não se rebaixará a ser “barro” e “tapar um buraco para deter o vento”, mas deixará esta tarefa, quando muito, para suas cinzas.” (págs.10-11)
No entanto, homens assim são geralmente estimados como bons cidadãos. Outros – como a maioria dos legisladores, políticos, advogados, ministros e funcionários públicos – servem ao Estado, sobretudo com a cabeça; e, como raramente fazem qualquer distinção moral, podem tanto servir ao Diabo, sem ter a intenção, como a Deus. Pouquíssimos – tais como os heróis, patriotas, mártires, reformadores em sentido amplo e homens – servem ao Estado também com sua consciência, e portanto necessariamente resistem a ele a maior parte do tempo; e costumam ser tratados por ele como inimigos. Um homem sábio só será útil na condição de homem, e não se rebaixará a ser “barro” e “tapar um buraco para deter o vento”, mas deixará esta tarefa, quando muito, para suas cinzas.” (págs.10-11)
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Começa pelas maravilhosas mãos de pai e filho num gesto de amparo e amor.Tece com beleza uma história bonita.Daquelas historias que se pára sempre para ouvir. Depois reflete sobre o importante, não diria o essencial(pois que o essencial no homem me provaste que é a empatia). Obrigada por essa beleza , sentimento, ternura que me fez lembrar tanto o meu pai. Valéria
ResponderExcluirSeu Arnaldo, exemplo de vida e de fé.
ResponderExcluirQUE FOTO MARAVILHOSA, ENCONTRO DE MÃOS, AMOR, AFETO SABEDORIA, APRENDIZAGENS! Me encantou e me comoveu! QUE HISTÓRIA POÉTICA! QUE VIDA QUE TRANSVERTEU COM SABEDORIA OS CAMINHOS POR ONDE PASSOU E AS PESSOAS COM AS QUAIS CONVIVEU! QUE 106 ANOS BEM VIVIDOS, APRENDIDOS, ENSINADOS! PARABÉNS COM MUITA TERNURA!
ResponderExcluirExemplo de vida, parabéns pelo carinho e respeito a esta história. Abraço. Angela
ResponderExcluir"Tempo, tempo, tempo" como diz a canção! Que privilégio desafiar o tempo no país que a expectativa de vida era muito curta!Que os ares das montanhas de minas e o amor pela vida de um solo fértil com raízes profundas regado pelo filho com muito amor! Eis o segredo da Vida pra ser vivida com sabedoria e dignidade!! Parabéns todos os segundos de um coração que não cansa de bater!!!Felicidades tamanho família!!!
ResponderExcluirNão sei exatamente por que, mas me deu uma sensação de solidão e de tristeza. Tempos difíceis.
ResponderExcluirMeu querido amigo, sua leitura é comovente, sempre. Tudo o que escreve, mesmo que não-poesia, é poesia pura. Ah, e as mãos! Essas permanecem presentes e, a cada vez em que cruze suas próprias mãos, você há de sentir o mesmo caloroso toque, ele nunca nos abandona... Muito linda a história que conta e posso entender de qual raiz você se originou. Veio das matas, das terras, dos rios, das águas, das profundezas das Minas Gerais...
ResponderExcluirParabéns Jorge, sensibilidade única! Para a alma! Grande beijo, Vanusa
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