quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

A MATEMÁTICA CRUENTA - Um povo amputado

Imagem publicada: Foto de Samira Makhmalbaf, jovem cineasta iraniana, para o filme de seu pai, Mohsen Makhmalbaf, O CAMINHO PARA KANDAHAR, exibido no Brasil em 2001, com muitos homens afegãos amputados, com suas muletas, correndo em direção a um paraquedas lançado pela Cruz Vermelha, com 'pernas de pau', ou seja próteses rudimentares, para esta multidão de mutilados pelas minas terrestres nas guerras do Afeganistão.

Minha filha, de 09 anos, levou uma calculadora para a escola. Recentemente eu a usara para calcular dívidas e imposturas, e ela, agora, precisa aprender a matemática e outras operações realistas. Eu continuarei calculando, como é de costume, o que devo, só que agora pedirei a calculadora emprestada a ela. Minha relação com os números nunca foi muito fácil, sempre preferi outras matérias. Portanto, os cálculos que pretendo fazer me preocupam...

Ela voltou a me solicitar um uso da máquina de calcular que eu não tinha aprendido. Era para somar 05 + 03 = = = = =, e no seu caderno de escola tinha a pergunta do que resultava dessa soma, e mais ainda, o que significava? intrigou-me os iguais = em seguida. Fiquei matutando e ela me ensinou, dizendo que aprendera que ao somar os números e depois clicar no símbolo igual, na sequência descrita, teríamos o número 20.

Ficou-me, então, a pergunta o que significa isso aplicado à Vida? Apenas soma ou multiplicação?. Ao ler hoje que a média de AMPUTAÇÕES no HAITI, por dia, era de 40 a 50 cirurgias realizadas nos hospitais de emergência pós-terremoto, havendo há alguns dias até 100 amputações/dia, segundo relato da Radio ONU  pensei novamente na matemática e na calculadora. 

E, triste, fiz a aplicação de uma matemática sinistra e terrificante. Se somarmos a cada amputação o mais + de uma outra forma de incapacidade ou deficiência, teremos uma chamada PROGRESSÃO GEOMÉTRICA do número de seres humanos a serem chamados, em breve, de pessoas com deficiência por lá.

Multipliquem os dias do ano de 2010, que ainda restam, 365 - 35 = 330 dias, por cada dia de mais amputações e novos mutilados. Ainda bem que é só uma Matemática 'cruenta". Mas se aplicássemos a regra da calculadora, hoje aprendida, teríamos milhares de sujeitos com deficiência em 31 de dezembro de 2010. 

Deixo para as máquinas de de singularização, que devemos construir, o resultado dessa conta. Deixo para a reflexão de cada um o que acontecerá com os meninos e meninas que, se não forem amputados, tornar-se-ão 'emocionalmente amputados' e traumatizados em meio à multidão dos sem-pernas.

Fiz na calculadora uma aplicação deste modelo matemático e cheguei a uma possível resposta: em 31 de dezembro de 2010 poderíamos contar e enumerar uma população de, aproximadamente, 825.000 (OITOCENTOS E VINTE E CINCO MIL) PESSOAS COM ALGUMA FORMA DE LIMITAÇÃO DE FUNCIONALIDADE OU INCAPACIDADE, se epidemiologicamente estiverem sendo registrados todos os mutilados do terremoto.

Isso se aplicarmos a CIF (Classificação Internacional de Incapacidade, Funcionalidade e Saúde), que considera que: "A funcionalidade e incapacidade de uma pessoa são concebidas como uma interação dinâmica entre os estados de saúde (doenças, perturbações, lesões, etc.) e os fatores contextuais (fatores ambientais e pessoais) (CIF, OMS, 2001). Para esta classificação uma incapacidade não é um atributo da pessoa, mas sim um conjunto complexo de condições que resultam da interação pessoa-meio".

 Não se simplificando a apenas o que está sendo gerado POR UMA OUTRA FORMA DE OPERAÇÃO, no momento numérica e de caráter biomédico: A AMPUTAÇÃO DE MEMBROS (SEJAM BRAÇOS, PERNAS OU ENTÃO SIMPLIFICANDO APENAS AS MÃOS/DEDOS) NO HAITI.

Outro dia estava jantando com minhas filhas, Isadora e Yasmin, e pensava com os meus botões sobre o mundo que elas vivem e o que estamos deixando para os nossos filhos e filhas como futuro planetário. Me dei conta de que olhava para um grão de arroz que estava fora do meu prato. Era apenas um grão de arroz. 

Me veio imediatamente a imagem do que vira à tarde na televisão. Eram haitianos disputando com pedaços de paus alguma forma de comida. Ainda se completava com a outra imagem que me tocou estes dias: os paraquedas norte-americanos lançando comida presa a eles, e, em seguida, milhares de haitianos correndo para pegar a preciosa carga lançada dos céus...

Agora se lançam suprimentos, mas houve um tempo em que os paraquedas traziam pernas de pau. Um tempo que quem sabe ainda está acontecendo, com o despejamento aéreo de próteses rudimentares para mutilados por minas terrestres no Afeganistão. Esta cena foi muito bem retratada no filme no Caminho para KANDAHAR, de Mohsen Makmalbaf, merecedor de uma atenta crítica e atenção no Brasil. 

Um filme que traz a visão de um país arrasado pelas repetidas invasões e guerras ali realizadas. É o olhar de uma mulher, Neloper Pazira, jornalista e atriz que passeia e registra, atrás da burca, em busca de uma humanização dos estragos físicos e éticos a que o Afeganistão foi submetido no regime Taleban. Esse olhar debaixo daquela vestimenta repressiva tem o sentido humanitário do cineasta acerca da fome e dos terrores daquele povo, onde a mutilação de membros virou rotina e naturalização para o resto do mundo.

Minha permanência no tema Haiti é na esperança de que não tenhamos a repetição da cena de Kandahar. E que tenhamos, o mundo espectador, um maior engajamento na reabilitação de todos haitianos que se tornarem necessitados de próteses, órteses e demais ajudas técnicas em suas deficiências. 

Espero continuar olhando para o futuro desse povo e nação com respeito e afeto. E, sonho que não haja um só grão de arroz, como pensei naquele jantar familiar, sendo desperdiçado dos pratos de comida globalizados em reverência à fome e a miséria que lá permanecem provocando as massas sobreviventes, e podem continuar intensas. Escolheremos outros CAMINHOS?

copyright jorgemarciopereiradeandrade 2010/2021 - ad infinitum, todos os direitos reservados (favor citar a fonte para a livre difusão e multiplicação por quaisquer meios de comunicação de massa)
( publicado e difundido peloInfoAtivo DefNet -Nº 4339 - fevereiro de 2010 -Ano 14.)

FONTES:
Mohsen Makhmalbaf -
https://www.makhmalbaf.com/persons.php?p=4
https://www.makhmalbaf.com/gallery.php?g=32
https://publifolha.folha.com.br/catalogo/livros/135570/

Sobre o trabalho com socorro a vítimas do Terremoto pela HANDICAP INTERNATIONAL ver:
https://www.handicap-international.fr/

Milhares de pacientes amputados são prioridade da OMS no Haiti
26/01/2010 http://www.unmultimedia.org/radio/portuguese/detail/175703.html

De acordo com a agência da ONU, alguns hospitais chegam a realizar 100 amputações por dia; cuidados especiais são necessários para evitar infecções.
Julia Borba, da Rádio ONU em Nova York*

A Organização Mundial da Saúde divulgou nesta terça-feira que está priorizando os cuidados com pacientes amputados, conforme decisão do governo do Haiti. Até então, as cirurgias de emergência eram o foco dos atendimentos hospitalares.O porta-voz da OMS, Paul Garwood, informou que milhares de haitianos sofreram a retirada de algum membro. Alguns postos de atendimento chegam a realizar de 30 a 100 amputações por dia.

Cuidados
Segundo Paul Garwood, também há urgência no tratamento pós-operatório, para evitar as infecções.O objetivo é dar atenção e tratamento fisioterápico aos pacientes com lesões traumáticas e amputações, para que a recuperação deles seja mais rápida.

A OMS aponta ainda a reabilitação adequada como peça fundamental para evitar deficiências a longo prazo, e assim, reduzir as consequências econômicas para as famílias.

A agência da ONU afirma que 48 das 59 instituições hospitalares do Haiti estão funcionando, mas encontram dificuldade de suprir a demanda.
*Apresentação: Leda Letra, da Rádio ONU em Nova York.

LEIA TAMBÉM SOBRE O TEMA NO BLOG - 
OS DESASTRES, OS HAITIS E AS SERRAS NO HIPERCAPITALISMO - https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/01/os-desastres-os-haitis-e-as-serras-no.html

AS MASSAS E OS SOBREVIVENTES - TERRA TÊMULA - https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2010/01/as-massas-e-os-sobreviventes-terra.html

2 comentários:

  1. Realmente as vezes me parece que vivemos em um mundo paralelo. Me responsabilizo, como à todos.
    Pelo menos, esse conhecimento dos acontecimentos deveríamos ter.

    Belo texto.
    Um Abraço
    Mister T.

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  2. Ontem...havia beleza apesar de toda discriminação. Hoje, um povo lutando pela sobrevivência contra a fome e a natureza destruida.
    Um povo que libertou-se do jugo insano do passado, porém continua sofrendo com acusações impostas por uma sociedade que intitula-se como alta classe.
    Hoje,olhos tristes imploram socorro.
    É um povo indefeso, porém nobre,que renasce dos escombros,com suas emoções e sentimentos amputados.
    Mesmo distante coloco-me à disposição, meus irmãos queridos.
    Rosane

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