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domingo, 10 de janeiro de 2010
VOCÊ É O QUE COME? ou SÓ COMEMOS O QUE DIZEM QUE SOMOS?
imagem publicada - uma das páginas abertas de um dos livros de Charles Elmé Francatelli(1805-1876), com as ilustrações de época de alimentos, com uma torta que é feita a partir de peixes, tendo um cabeça de peixe à esquerda, como uma parte que não é utilizada para a preparação deste prato, do livro The Cooks Guide, um 'guia para cozinheiros' de 1861.
InfoAtivo.Defnet Nº 4326 - Ano 14 - 10 de janeiro de 2010.
Diz um ditado popular que podemos conhecer as pessoas a partir do que elas comem. Parece que esta vox populi tem um gênese histórica nos tempos vitorianos, nesse período as pessoas eram destinadas a serem o que a elas era permitido comer. Por estar com a necessidade de refletir sobre nosso direito à comida e à luta contra fome, retomei estes dias uma leitura interessante.
Retomei o livro de Charles Elmé Francatelli, uma preciosa obra escrita em 1861, com um singular título: "UM SIMPLES LIVRO DE CULINÁRIA PARA AS CLASSES TRABALHADORAS". Encontrei esse pequeno livro em um sebo há muito tempo atrás, e foi esse título que chamou minha atenção.
Primeiro por ser um livro destinava receitas de uma economia alimentar específico para os trabalhadores, e pelo resumo de contracapa ficava ainda mais atraente, segundo o autor: "Meu objetivo a escrever este pequeno livro é mostrar como você pode preparar e cozinhar seu alimento diário obtendo a maior quantidade de nutrientes e gastando o menos possível; assim, com perícia e economia, aumentam, ao mesmo tempo seu conforto e seus recursos minguados...".
Em nosso mundo atual, talvez, esse escritor-cozinheiro real, que trabalhou, no alto da escala, como ex-maítre de hotel e cozinheiro-chefe de sua graciosa majestade, a Rainha Vitória, encontraria eco e apoio para uma "omelete popular", feita economicamente com ovos de codorna. Ainda temos, após séculos,as classes trabalhadores passando pelos mesmos estereótipos e estigmas da Inglaterra vitoriana.
Há ainda uma visão preconceituosa, que não deixamos transparecer todo o tempo, sobre a relação comida, valor dos alimentos, poder aquisitivo e classe social. Na época vitoriana escrever um livro somente para a classe dos trabalhadores tinha uma certa 'elegância' do autor, já que cozinhava preferencialmente para os lordes. Na Inglaterra no século XIX, os negros, os irlandeses, os que estivessem em classe inferiores eram considerados irracionais. Segundo a apresentação do livro: "Dizia-se que apresentavam comportamento infantil, eram pouco razoáveis, não tinham qualquer noção de propriedade privada, andavam sujos e se preocupavam excessivamente com sexo...".
Caso atualizássemos este discurso e modelização do que são os 'pobres' e os ' marginalizados', veríamos, com quase toda certeza, a similitude de uma massa de trabalhadores ou de desempregados que, em função de suas desigualdades sociais e da chamada exclusão social, continuam sendo assim 'classificados', donde ainda serem apenas comedores de 'arroz com feijão', quando estes grãos estão nos seus pratos.
Em 2009 um relatório da ONU sobre o direito à comida nos dizia que a causa principal da fome, dos 967 milhões de habitantes da Terra, não é a escassez de comida, mas sim a falta de poder de compra dos pobres e vulneráveis. Pensando no livro de Charles Francatelli, seria, então, irônico que uma nova edição atualizada por algum mestre-Ratatouille nos viesse ensinar como economizar comendo os talos de vegetais,cabeças de peixes, as partes "descartáveis" de algumas carnes ou mesmo as cascas dos ovos.
NÃO TEMOS ESCASSEZ DE PRODUÇÃO DE ALIMENTOS, e o agrobusiness confirma, apesar de sua concentração na soja, no milho ou em outras lavouras ou gados mais rentáveis. Temos é a urgência de uma nova concepção de valor sobre o direito à comida e a uma alimentação 'sustentada', não apenas por 'bolsas alimentação', mas, primordialmente, pela garantia do direito de 'ganhar o pão de cada dia', com trabalho digno e remuneração mais digna ainda. Um outro modo de ter o trabalho garantido às massas marginalizadas ou consideradas, vitorianamente, ainda subalternas. TEMOS, SIM, SUPERAVIT DE PRECONCEITOS E DESFILIAÇÃO SOCIAL.
Nesse sentido é que mando um breve recado ao Sr. Boris Casoy, cujo vazamento ilustrou nossa passagem ao 'ato falho', lembrando-lhe que foram uns sujeitos meio-sujos e com uniformes de lixeiros, que passaram pela madrugada, inteira, limpando os restos das festas do Ano Novo, regadas a champanhe bons petiscos, perus, chesters e, quem sabe, até o suposto alimento nobre dos ricos: o caviar.
Provavelmente a lata de lixo deste repórter e sua Band foi motivo de uma boa limpeza pelos trabalhadores do lixão...mas seria melhor aproveitada se lá aplicássemos as receitas do mestre Francatelli. Os restos de preconceito ou de discriminação também podem ser melhor "digeridos" se forem devidamente cozidos com bom tempero de reflexão sobre o que temos de Casoy/Band/Global em cada um de nós. Os mais baixos da escala do trabalho limpam os estúdios das televisões que, vez por outra, deixam à flor da pele nossas repulsas, por exemplo, pelos que cuidam de nossos lixos, inclusive os restos alimentares. O que comem os garis? o que eles podem comer?
Por isso não consigo ver o livro citado como uma obra para ser lida apenas pelos "sujos, feios ou malvados" (citação ao filme de Ettore Scola). O Sr. Francatelli começa suas receitas com um prato que, a meu ver, faz parte do cardápio da maioria das classes trabalhadoras ou não: Carne Cozida.
E ele orienta: "Esta receita é para um jantar econômico, em especial quando há muitas bocas para alimentar, consequentemente, dentro de seus recursos. Compre algumas libras (uma libra equivale a 453,59 gramas) de peito salgado, barrigueira grossa ou fina, ou anca de boi (esses cortes sempre são obtidos a preço baixo)... Isso produziria um jantar substancial para dez pessoas e, além do mais, como crianças não necessitam de muita carne, quando comem chouriço, haveria sobras suficientes para o jantar do dia seguinte, com batatas..." (pág. 17)
Eu sou do tempo em que ir à praia e levar alimentos não configurava uma 'gafe social'. Ou então, com saudosa memória, ir ao cinema com meu avô, e levar deliciosos sanduíches de mortadela ou presunto e queijo, que saciavam minha fome de duas artes: os filmes e sua proximidade afetiva.
Aprendi com ele a valorizar tudo que emanava da cultura popular, dos chamados farofeiros da praia, dos alimentos vendidos em feiras populares e quitandas, passando pelo memorável Mazzaropi e a vida rural, até pirulitos e canudos de doce de leite que se vendiam nos espetáculos de circo. Talvez venha dessa herança cultural um respeito ao direito de comer do 'melhor' mesmo estando 'na pior', qual uma "Festa de Babette", onde convidamos, sem discriminação todos e todas, independentemente de sua condição social, para sentarem e aproveitarem de uma boa mesa, de um bom prato.
Dirijo então, após estas digressões, algumas dúvidas sobre a afirmação de que somos o que comemos. Talvez isso tenha um valor biológico ou nutricional, em termos de saúde. Porém sociológica e transculturalmente, a partir da produção de subjetividade vitoriana que está no livro, acho que temos de responder se: só continuamos comendo, inclusive na comilança televisiva e midiática, o que nos dizem que nos torna menos 'desclassificados', gerando uma aspiração de sermos uma elite que só se alimenta de pratos refinados e/ou muito caros? ou então de sermos doutrinados para a negação dessa massa de famélicos e famigerados que permanece sem o direito à um prato mínimo de comida das classes trabalhadoras...
Com o fogão dos pobres e a panela vazia, o Sr. Francatelli, podia ser convidado para um programa de TV da Ana Maria Braga, do Olivier Anquier, do Claude Troigois, ou do SuperPop.... Talvez, após ser decretada a 'comida para todos', sem discriminação de classe social, tenhamos menos desnutridos pedindo moedas nas esquinas depois... sua fome de justiça alimentar teria sido saciada, mas somente esta.
A quem se destinaria, a que classe social ou do trabalho, hoje, um livro de culinária sobre o direito humano de comer, com alegria, sabor e desejo? apenas aos gastrônomos e aos que 'sabem comer' porque podem ou são refinados?
jorgemarciopereiradeandrade copyright 2010-2011 (favor citar a fonte para a livre difusão e socialização do texto)
Fonte principal - Um Simples Livro de Culinária para as Classes Trabalhadoras - Charles Elmé Francatelli - Editora ANGRA, São Paulo, SP, 2001.The Cooks Guide (1861) - http://www.thecooksguide.com/articles/francatelli.html
A FESTA DE BABETTE (filme de 1987) - http://www.sensibilidadeesabor.com.br/festadebabette.html
DIREITO À COMIDA É CRUCIAL - http://www.unmultimedia.org/radio/portuguese/detail/160544.html
EDUCAÇÃO E DIREITO Á ALIMENTAÇÃO - http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142007000200010&lng=pt
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Jorge Marcio
ResponderExcluirA boca é o orgão mais perigoso de nosso corpo, segundo o judaísmo. Através dela podemos ter prazer,medicar, envenenar ,viver , morrer, comandar mortes, liderar massas...vale a pena continuar o debate sobre a comida.
O lixo tb revela quem somos...
Muito papo pode rolar.. bjos e saúde!
Cuidado com o que come! em todos os sentidos... rsrsrsrs
"faça do alimento seu medicamento."
ResponderExcluirhipocrates, 2.000 mil e tantos a.c. e continua a contenda.
bloguileia real de bengala, perai, festa de babete, nao, banquete de babete, comilança de
babete, locupletancia de babete...
um livro de receitas somente nao daria para
aquele rega bofe.
teria que vender todos os barracos ou metade da vila classe b media para pagar.
Blog do Ancelmo /Globo /13/01/10
ResponderExcluirDiário do Galeão
Dois amigos da coluna que precisaram usar o serviço de cadeira de rodas do Galeão-Tom Jobim constataram: o aeroporto da cidade-sede dos Jogos de 2016 (e, portanto, das Paraolimpíadas) está totalmente despreparado para a esta situação.
Sem elevadores apropriados e com caminhos bloqueados, fizeram um périplo pelas entranhas do Galeão até a saída. Acredite: se o aeroporto é assustador por fora, por dentro é indescritível.
Voltando ao papo gastronõmico que QUEMDIRIA tanto gosta recomendamos:
ResponderExcluirPara começar...FISIOLOGIA DO GOSTO de Brillat Savarin (1ª publicação 1848 -França)- Rio de Janeiro Salamandra 1989 que tive o prazer de receber neste mesmo ano do nosso querido blogueiro aí de cima.