Imagem publicada – o quadro pintado por Pedro Américo (1843-1905), denominado "Tiradentes esquartejado", uma célebre representação pictórica do alferes, com um corpo cortado aos pedaços, após seu esquartejamento sobre o cadafalso, um
corpo insurgente e rebelde contra a Coroa de Portugal, um quadro destinado a
celebrar um herói da História do Brasil. Lá vemos a cabeça separada do corpo,
com um crucifixo ao lado, com a corda da força pendente acima, e seu tronco
embaixo, separado, com uma das pernas espetada e exposta. Um corpo que trai o
heroísmo desse condenado, pois não celebra sua Inconfidência Mineira, pelo
contrário anuncia o que pode ser feito em nome do Império: os corpos serão
ultrajados e fragmentados. Como em artigo citado há a pergunta: que outro herói
nacional político foi representado em tela grande aos pedaços? Talvez, hoje,
apenas os novos corpos descartáveis nas telas pequenas...
E A VIOLÊNCIA
NATURALIZADA QUE OS FAZ DESAPARECER.
Ontem li uma frase, nas
nossas redes ditas sociais, que me tocou profundamente: “Estou me sentindo um lixo humano”. Era forma indignada de não “curtir”
a notícia sobre a mulher morta a tiros e arrastada no camburão.
Foi a reação à imagem
de barbárie e destroçamento de um corpo humano. A cena e a notícia em mim
sintetizaram nossos corpos e vidas ultrajados. Historicamente ultrajados.
A imagem, a cena
obscena, com essa hiper difusão pelos meios televisivos, tocou os outros corpos
que somos. Será que sensibilizou algumas mentes? Só tenho a certeza de que o nome
invadiu nossas telas e mentes: Cláudia Ferreira da Silva.
Não preciso repetir o
que fizeram com seu corpo? Ele, aquele corpo-cidadão, já foi ultrajado no
simples ato de ser colocado na ‘caçamba’ da viatura dos PMs, mesmo que ainda
tivesse vida.
Junto com a indignação
e a identificação o que me trouxe esta violência? Primeiramente a indagação, o
como, depois o repúdio, o porquê, e, agora, a reflexão, para quê, até quando?
Quanto tempo dura, na nossa Sociedade do Espetáculo, uma imagem chocante de
violência contra um corpo, como memória?
Para que possamos
refletir juntos, abro o meu próprio corpo às sensações que estas guerras
urbanas e suas pacificações nos trazem. As nossas memórias não guardam as
histórias de heróis ou dos não heróis, reconhecidos ou desaparecidos, cujos
corpos foram destroçados.
Esta é a mesma memória que
vem junto com a própria História Oficial. Há um belo texto que lhes recomendo,
de Jean Pierre Vernant: A Bela Morte e o Cadáver Ultrajado. O historiador nos
conta como os gregos, em tempos da Guerra de Tróia e outras guerras, vivenciavam
o sentido de morrer em batalhas. A sua noção de vida breve e intensa, contra a
qual nem a violência destruidora a faz desaparecer.
O relato da morte de
Heitor, irmão de Paris o suposto causador da Guerra, por Aquiles, o herói grego
quase imortal e seu calcanhar, é emblemático para a nossa indagação de raízes
imagéticas e trans históricas da repetição que me veio à mente.
Quando o troiano é
morto em batalha na frente das muralhas quase inexpugnáveis da sua cidade,
começa ali a derrota de Tróia, que culmina com o Cavalo. Para quem não conhece há
o filme Tróia, versão de Hollywood com Brad Pitt, ou de Helena e Páris.
Entretanto, podem se
perguntar e me interrogar o que há entre essa cena e a violenta morte de
Cláudia lá no Morro da Congonha? E respondo que não há nenhuma “ligação” direta.
Há, quem sabe, apenas o
fio condutor, a-histórico, quiçá banal, do que apareceu agora na tela da minha
tele-visão. No meu zapping habitual: uma mulher com sua mão sendo colocada
dentro de um liquidificador. Não era o BBB e nem o filme Tiras em Apuros, muito
menos o seriado A Ponte, com um corpo cortado ao meio, no meio de dois países,
no meio da ponte.
Corte a cena e volte
para Tróia. Lá o Heitor é morto por Aquiles. Em seguida seu corpo é amarrado à
carruagem do protegido dos deuses, o invulnerável, e arrastado diversas vezes
em volta das muralhas. Era o que Vernant diria como o ultraje do corpo do
guerreiro, seu despedaçamento, e, caso ficasse insepulto, o apagamento de toda
sua glória. Um corpo sem história.
Os guerreiros
precisavam de uma Bela Morte, a ‘kalós Tanatós”. Morrer com algum feito que
chegasse como narrativa ao porvir, aos cantos e à memória. Pergunta-nos
Vernant: “Como poderia ultrajar-se o
corpo do herói e extirpar-se a sua lembrança?”.
Corte novamente a cena.
Vamos aos Anos de Chumbo. Um homem, um cidadão, chamado Stuart Angel é amarrado
a um jipe militar. Ele está ali após longo período de cárcere e torturas.
Colocam a sua boca no cano de descarga e o arrastam pelo aeroporto militar.
Fica parecido, mas não é o troiano. É um jovem que sonhava mudar o país e
lutava contra uma Ditadura.
Ao jovem de 25 anos, do
MR-8, um re-existente à violência do Estado, também foi aplicada a pena de não
ter uma bela morte. O seu corpo, como um Amarildo de 1971, foi negado à sua
mãe, Zuzu Angel, mesmo que esta tenha bravamente lutado para recebê-lo, como o
pai de Heitor.
E, mesmo destroçado,
honrá-lo como todo corpo tem o direito de sê-lo. Ser sepultado ou cremado. Stuart,
Sônia, Fernando e muitos outros, aeticamente, como os Amarildos de hoje, se
tornam apenas mais um na lista de desaparecidos. Um corpo político, violentado,
ultrajado e negado. Para o regime violentador eram apenas “corpos de
subversivos”.
Portanto, ao olharmos a
transversalidade histórica desses corpos, incluindo o corpo esquartejado de
Tiradentes, buscar entender esta perversa estratégia naturalizada pelo Estado.
Um corpo que pode ser desfigurado, transformado em coisa abjeta, desumanizado e
sem direitos. Um futuro cadáver a ser esquecido. A ser transformado em ninguém,
a ser apenas nada.
Não podemos, então,
como se fôssemos tão invulneráveis com Aquiles, tão despedaçados como Heitor,
tão mutilados e arrastados como Stuart, e, enfim, tão coisificados como Cláudia,
também arrastada cruamente, aceitar a negação destes corpos em nós. Estão eles
e elas, heróis ou zé-ninguém, incrustados nos nossos chamados inconscientes
coletivos e nas nossas reterritorializações vividas.
Os corpos, nas suas
diferenças e multiplicidades, são nossa maior e verdadeira obra de arte, já o
disse Guattari. Entretanto, quando seus direitos são castrados, na banalização
e naturalização das violências, principalmente as exercidas em nome da Ordem,
do Controle, do Progresso, da Família, e nos hipercapitalismo, em nome da
Propriedade e do Consumo, biopoliticamente, podem ser vivenciados como lixo.
Para os funerais não
realizados por decreto de generais é que agora estão sendo lembrados alguns
desses que foram lançados em cemitérios clandestinos, como Perus, em São Paulo.
A Memória, assim como o corpo humano, não pode ficar fracionada ou vilipendiada.
Se tivermos semelhantes sem corpo ou sepulcro, mortos, desaparecidos ou
suicidados, ou, como Cláudia também trucidados, não poderemos cicatrizar nunca
estas feridas no chamado corpo ou tecido social.
Os velhos soldados,
fardados e autorizados por novas marchas, podem nos jogar no porta-malas. E,
mesmo que os prendam ou desmilitarizem, ainda assim podemos continuar sendo
arrastados...
Desejamos fazer,
inventar e construir outra História? Ou, só caminhamos alienados ou
conscientes, para nossa Bela Morte?
(copyright/left - favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet e outros meios de comunicação de massas e para massas. TODOS DIREITOS RESERVADOS 2025)
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Leituras recomendadas/fontes para resgate da
História:
A Bela Morte e o
Cadáver Ultrajado – Jean Pierre Vernant
A fragmentação do corpo
do herói e a sensibilidade do final do século 19
Stuart Angel
Jones- https://pt.wikipedia.org/wiki/Stuart_Angel_Jones
Brasil Nunca
Mais (Digital) https://bnmdigital.mpf.mp.br/#!/
Sobre Cláudia Ferreira da Silva - 'Trataram como bicho', diz o marido da mulher arrastada em carro da PM - https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/03/trataram-como-bicho-diz-marido-de-mulher-arrastada-em-carro-da-pm.html
Sobre Cláudia Ferreira da Silva - 'Trataram como bicho', diz o marido da mulher arrastada em carro da PM - https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/03/trataram-como-bicho-diz-marido-de-mulher-arrastada-em-carro-da-pm.html
Filme – Tróia - https://www.ustream.tv/recorded/2647736
(com legendas em espanhol e dublado)
Helena de Tróia - https://www.youtube.com/watch?v=AUlTQHVdesM
(só dublado)
LEIAM TAMBÉM NO BLOG –
Negros, Deficientes e Mestiços - as encruzilhadas das neo-velhas eugenias ...
https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2015/05/negros-deficientes-e-mesticos-as.html
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MULHERES PODEM SE TORNAR DEVIR, NÃO
SÃO UM DEVER -
https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2014/03/mulheres-podem-se-tornar-devir-nao-sao.html
O MEDO TEM MAIORIDADE! CRIANÇAS LOUCAS E ABUSADAS OU ADOLESCENTES SELVAGENS, QUEM SOMOS?
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