segunda-feira, 8 de março de 2010

TODO ÚTERO É UM MUNDO ...

Imagem publicada- Foto de Prudence Mabhena, 20 anos de idade, que é uma cantora e compositora natural do Zimbábue que nasceu com uma séria deficiência física. Ela tem de enfrentar várias barreiras e o fato de que as deficiências são vistas no país como feitos de bruxaria. Por isso mesmo a jovem muitas vezes preferiria se manter escondida a aparecer em algum palco como uma verdadeira artista. 
O documentário Music By Prudence (Oscar de melhor Documentário/Curta - 2010) ainda revela as agruras e estigmas que as crianças com deficiência vivenciam no Zimbábue. Uma mulher negra sentada em uma cadeira de rodas que agora irá encantar o mundo, e também tem um útero musical que não pode ser silenciado.

InfoAtivo DefNet - Nº 4359 - Ano 14 - março de 2010

“ Segundo o dicionário, o útero é o lugar onde qualquer coisa é concebida ou trazida à vida. No meu entender, não existe nada exceto útero. Ao todo, há o útero da Natureza; depois há o útero materno; e finalmente há o útero em que em que se situa a nossa vida e o nosso ser a que chamamos de mundo...”. Henry Miller (A Sabedoria do Coração)

O Dia Internacional da Mulher deve ser comemorado também como o dia de algumas mulheres, que, erroneamente, alguns consideram "especiais", principalmente porque até bem pouco eram invisíveis. Falo e escrevo sobre e para mulheres com deficiência. Estas mulheres estiveram muito tempo associadas à ideia heredológica, ou seja de eugenia, herança e de doença aplicada às deficiências. 

Conheçam a "família Kallikak". Eram elas que, segundo essa lógica, transmitiam genes defeituosos ou geravam os seres considerados 'anormais', sempre como oposição do bom, do normal e do belo. Além do estigma da deficiência elas tinham de enfrentar, duplamente, os estereótipos e discriminações que estiveram colados, transculturalmente, ao gênero feminino.

Me lembro de quando apresentava em palestras, há alguns anos atrás, o documentário da HBO - Without a Pity: a film about Abilities, o Sem Piedade, nos tempos das fitas VHS, onde uma mulher com paralisia cerebral casava-se, tinha vida sexual, frequentava (apesar dos preconceitos) uma universidade, era cuidada pelo marido,e, por fim engravidava e tinha uma filha.

Neste documentário podia se demonstrar a possibilidade dela 'cuidar' sozinha de sua filha Tereza, com todas as dificuldades. Esta cena causava o espanto e a surpresa de muitos. Algumas interrogações me faziam ter de re-explicar que a Paralisia Cerebral não é e não era uma doença transmissível. Esclarecer que a mãe não tinha um útero potencialmente defeituoso.

Ela não deixava de ser um corpo feminino pelo fato de ter sua vida motora modificada pela anóxia que sofreu ao nascer. E mais ainda dizer que a filha não teria nenhuma deficiência, apesar de seu parto ter sido a fórceps, já que as paralisias cerebrais podem se causadas por traumas obstétricos. E mais ainda que o fato de uma mulher com paralisia cerebral ter uma filha isso não tornava mais especial que todas as outras mulheres sem deficiência. Era apenas uma mulher. Uma mulher uterinamente igual às outras mulheres do mundo. Para além dessa redução.

Em 08 de março de 2008 prestei uma homenagem às mulheres com um texto que interrogava: o Mundo é um útero?. Neste texto afirmei a necessidade de um resgate da suavidade no feminino, aproximando mais uma vez a Gaia, a Terra do corpo: " das fêmeas-mulheres-lunares-que-menstruam, aquelas tão bem homenageadas por poetisas, como Cora Coralina e Elisa Lucinda, deveríamos realizar a necessidade de uma intensa afirmação de nosso mundo-útero, de nossa Gaia em ameaça e devastação, ora gritante ora silenciosamente. Afinal todos temem transformar nossa ‘mãe-terra’ em nosso aprisionante túmulo futuro, mesmo que não reconheçam".

Hoje após tantos tremores, inundações, transbordamentos, devastações e ventos arrasadores, precisamos continuar desejando um outro mundo possível, bioéticamente, para homens, mulheres e todos os seres vivos. É urgente e vital mantermos ativo o desejo de produção de vida e de criatividade. Como nos avisou, poeticamente, Walt Whitman dizendo que "só desdobrado das dobras de uma grande mulher está por vir e nascer um grande homem". 

E, tristemente, reconheço que ainda não vislumbramos este nascimento. E o digo pelo fato de ainda estarmos nos negando a produção de uma nova suavidade nos encontros com o feminino, com o devir-mulher. E há mulheres que, por suas singularidades e diferenças, exigem mais ainda um outro e novo olhar para o nosso futuro. Elas trazem muitos mundos novos em seus úteros, ou além deles, no seu corpo vibrátil.

Há mulheres que, independentemente, se estiverem em cadeiras de rodas, sejam surdas ou com bengalas brancas e/ou com diversas estaturas, dimensões ou formas dos corpos diferentes, comprovam que todo útero é um mundo. Um mundo muito mais amoroso e amável. Um mundo onde as tormentas e as violências cessam e cedem lugar para a criação, para a poesis.

 Elas vem surpreendendo o mundo que acredita somente na uniformidade, no utilitarismo e individualismo. A sua generosa vivência da maternidade e dos afetos nos dizem que o mundo é muito mais uterino e que ele, apesar de nossos descuidos, mantêm-se gerador de vidas. Porém, não são apenas úteros mas sim corpos-vida que nos ensinam a sabedoria da não-segregação e das potências geradoras de um futuro menos triste, menos isolador, mais humanista e mais inclusivo.

Todos úteros são, por sua incomensuráveis e imprevisíveis possibilidades, múltiplos devir-mundos, e devemos também homenagear as mulheres e mães com deficiência, assim todas as outras que comprovam que o Planeta Terra, como o corpo feminino contêm tudo, a ele não falta nada, pois a elas, que não são castradas, segundo o poeta Walt Whitman, devemos dedicar esta exortação-poema em seu 
'Canto ao Corpo Elétrico':

"...Não se envergonhem, mulheres ... seu privilégio é conter o resto... ser a saída para o resto,
Vocês são os portais do corpo e são os portais da alma.
A fêmea contém todas as qualidades e as temperam ... está no lugar certo...se move em perfeito equilíbrio,
Ela é todas as coisas devidamente veladas... passiva e ativa ao mesmo tempo...
ela é que gera tanto filhos quanto filhas, tanto filhas quanto filhos..." 
(Folhas da Relva)

VOCÊS PODEM GERAR TAMBÉM UM OUTRO MUNDO, OUTROS MUNDOS, OUTRAS SUAVIDADES... para além de todos os úteros visíveis, biológicos ou autorizados.

PS.
E uma doce e suave BRISA nos levou Johnny Alf para encantar o mundo com sua saudade... e muita bossa.

(copyright jorgemarciopereiradeandrade 2010/2011 - favor indicar a autoria na multiplicação livre e através de veículos de comunicação de massa. Todos Direitos Reservados 2024)

FONTES - DIA INTERNACIONAL DA MULHER - histórico
https://pt.wikipedia.org/wiki/Dia_Internacional_da_Mulher
https://www.ibge.gov.br/ibgeteen/datas/mulher/home.html

MUSIC BY PRUDENCE - Diretor Roger Ross Williams
https://www.musicbyprudence.com/film/

FAMÍLIA KALLIKAK - eugenia e heredologia
https://topicosemautismoeinclusao.blogspot.com/2009/05/entre-jaulas-e-exclusoes.html

WITHOUT A PITY: A FILM ABOUT ABILITIESS - documentário - Exibido na HBO-Brasil em 1997

https://www.chrisreevehomepage.com/m-withoutpity.html

LEIA TAMBÉM NO BLOG -

EUGENIA - COMO REALIZAR A CASTRAÇÃO E ESTERILIZAÇÃO DE  MULHERES E HOMENS COM DEFICIÊNCIA -
https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2013/01/eugenia-como-realizar-castracao-e.html

MULHERES, SANGUE E VIDA, PARA ALÉM DE SUA EXCLUSÃO HISTÓRICA

https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/03/mulheres-sangue-e-vida-para-alem-de-sua.html 

16 comentários:

  1. Gostei tanto, que mesmo sem pedir, citei lá no blog.É bom que outras mulheres se vejam como úteros tb.

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  2. oi pedra preciosa e feminina
    obrigado pelo carinho e pela difusão, pois muitas mulheres ainda não se concebem sendo as concebedoras reais e profícuas do nosso MUNDO e dos mundos que somos...
    um doceabraço JORGE MARCIO

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  3. Você é um homem fêmeo. Recebi tantas mensagens comuns sobre sobre o dia da mulher. A sua fez a diferença este ano. Abraço
    Louca pela Vida

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  4. Jorge, fiquei extasiada com esse texto! Magnífico! Obrigada pela linda homenagem!

    As leitoras do Deficiente Ciente precisam ler esse texto. Colocarei esse link no blog, ok?

    Abraços!
    Vera

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  5. Gostei muito do seu blog, já estou seguindo.
    Parabéns!

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  6. Louca pela Vida
    Eu agradeço a sua inovação sobre os homens que são 'fêmeos', pois quebra a dicotomia binarizante que o Poeta Walt Whitman há mais de um século desejou cantar em verso e prosa.
    Obrigado e volte sempre, trazendo também outras mulheres, homens e todos os seres vivos, independente de suas visões,opções ou escolhas do viver... um abraço JORGE MARCIO

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  7. Carissima Vera, como já disse você pode se considerar uma das musas inspiradoras deste texto dirigido a mulheres singulares... espero que outras também se sintam homenageadas...obrigado pela força no seu importante e rico blog. Um doceabraço JORGE MARCIO

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  8. Cara colega Priscilla
    Agradeço você ter se tornado mais uma seguidora do InfoAtivo.Defnet, e que tenha gostado de minhas idéias e textos. Há outros artigos que podem lhe interessar, mas creio que a mensagem de hoje lhe faça muito sentido. Um abraço doce JORGE MARCIO

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  9. EU SINCERAMENTE AMEI !!!!
    VC FOI CLARA E OBJETIVA EM SUAS PALAVRAS,QUEIRA OU NÃO NINGUÉM MUDA O SEU DIAGNOSTICO E SIM A MANEIRA DE SE ADAPTAR A ELE. TENHO UMA FILHA QUE TEM ARTROGRIPOSE COSTUMO DIZER QUE ELA NÃO É DOENTE E NEM TEM PROBLEMAS QUE O TEMPO DELA É O TEMPO DE DEUS...
    QUERIDA UMGRANDE BEIJO E FIQUE COM DEUS..

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  10. CARA TIA JACK
    Fico contente que tenha tratado no feminino, o que pode ter sido uma pequena falha mas é o que se espera quando se pensa e se escreve tentando captar o que há de profundo e criativo no mundo dos úteros... Obrigado e mantenha suas visitas pois há outros textos homenageando mulheres, em especial as que vivem com deficiências... um doceabraço DR JORGE MARCIO

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  11. Oi, Jorge!
    Li esta matéria e gostei muito. Recebi tb o seu email comentando sobre Johnny Alf. Então, queria comentar a nota de rodapé da sua matéria. Johnny Alf é uma doce lembrança da minha infância. Senti muito o fato de a mídia ter dado pouca importância à morte dele. Acei chiquérrimo saber que vc teve a oportunidade de trabalhar com ele. Oportunidades como essa são "coisas pelas quais vale a pena a viver.
    um abraço Telma

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  12. Querida Telma
    Realmente a passagem de Johnny Alf pela vida de algumas pessoas é fundamental. A música Eu e a Brisa faz parte de minha vida, de suas memórias mais ternas e românticas. Ainda devemos homenagear o 'ALFREDO', seu nome não artístico e ajudar a manter sua memória viva como uma suave e persistente BRISA na MPB... UM doce abraço JORGE

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  13. Como voce escreve bem!
    Obrigada pelo texto sensivel de dia da mulher.
    Grande beijo.

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  14. Há tanto sentimento neste texto, gostei muito. A mim provocou algumas reflexões,muito bom. Parabéns, mais uma vez e a cada vez que leio seus textos aprendo mais sobre a vida e bem viver. Obrigada.

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  15. Adorei o texto. Tenho uma amiga aqui que tem paralisia cerebral e parecia que vc estava descrevendo a história dela. Emocionante. Parabéns pela sensibilida jenny Pompe

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  16. Jorge, seu texto é lindo e muito forte. Depois de ler minha crônica, te convido a escrever sobre o amor, a sexualidade, e o papel da mulher com deficiência que não pode gerar um filho no útero. É um tema mais esquecido ainda do que a gravidez das mulheres com deficiência!!!!

    http://leandramigottocerteza.blogspot.com.br/2009/10/gravida-de-mim-mesma.html

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