
Imagem publicada – a foto de Alysson de Azevedo, com seus óculos, seu simpático chapéu, diante de um computador, com um caderno espiral de inglês para vestibular na mão, em provável espaço de estudo e interação com o mundo. Um jovem com Síndrome de Down que passou na primeira fase do vestibular da UFRN, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que quer ser e um dia será turismólogo, ou seja, um estudante da Faculdade de Turismo que sonha também em ser escritor. Ele alimenta sonhos. Segundo a reportagem: ...” Outro objetivo, com o qual ele já começou a trabalhar, é o livro "A Revelação". Mas o que vai revelar? "Vou falar do bullying, do preconceito, do racismo que as pessoas têm". Hoje o trago à memória e para não ser esquecido, no mesmo tempo de comemorar a entrada de outro jovem Down na Universidade. Estes jovens me revelam ou nos revelarão?
“As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte, — seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera”.(Ranier Maria Rilke Cartas a um Jovem Poeta - 1929 – publicação póstuma)
Era preciso, no sonho, que esta carta fosse dirigida a uma pessoa jovem. Eu sonhei colorido, sonhei o que estava acontecendo nesses dias. No dia de ontem eu fiquei muito emocionado com uma notícia: “Aprovado no vestibular, 1º aluno com Down da UFG rompe preconceito”.
Afirmei, e postei de imediato no Facebook: Esta matéria trouxe no título da mesma a grande mudança de paradigmas que temos de continuar tentando implementar e realizar: ROMPER TODOS OS PRECONCEITOS CONTRA TODOS E TODAS...
Era o jovem Kallil Assis Tavares, de 21 anos que conseguiu, por mérito próprio e sem privilégios, entrar na Universidade Federal de Goiás. Ele irá estudar geografia.
Kallil faz com sua conquista uma mudança radical e neo-cartográfica no que se produziu de conceitos e preconceitos sobre as pessoas com Síndrome de Down.
Como escrevi no Face book, ao insistentemente difundir a notícia, ele nos ajuda a quebrar um paradigma sobre as deficiências intelectuais no campo universitário. Mas não deveria ser tomado como o primeiro e único sujeito com Síndrome de Down a romper essa barreira.
Mas como escrever a minha carta ao jovem Kallil ou ao jovem Alysson sem cometer, como no sonho, os erros que nos torna humanizados? Precisaria da valiosa ajuda da Profª Martha Antiero?
Será que, sem a minha saudosa professora, terei a capacidade de não cometer alguma falha como as que a mídia costumeiramente faz ao se reproduzir essas notícias ‘’raras’’ em manchetes?
Aliás, somos todos “raros”, únicos e singulares, por isso devemos nos lembrar que em alguns dias estaremos comemorando o Dia Internacional das Doenças Raras. No dia 29 de fevereiro, o Instituto Baresi, nos lembrará dos que por serem ‘’poucos’’ quantitativamente, tornam-se ‘’raros’’, mas nem por isso devem deixar de ser motivo de seu e o nosso mais profundo respeito. E de política públicas, é claro!
O Kallil ou Alysson podem também se tornar, para um olhar midiatizado, em ‘’raridades’’, quando deveriam aí sim se tornar uma afirmação de igualdade de oportunidade. Eles só conseguiram seus “feitos” por mérito próprio por terem acesso ao conhecimento, e nele terem afirmado o seu direito humano à educação.
Por ter tido uma professora tão marcante como a “Dona Martha” é que hoje posso estar fazendo esta tentativa de escrever a estes jovens. Ainda cometo alguns deslizes ortográficos, ainda erro algumas palavras, mas como a escritora e professora do “Desafio aos Limites” continuo arriscando a escrita, arranhando com carinho algumas letras...
AÍ VAI ENTÃO MEU RECADO AOS JOVENS DOWNS QUE ENTRAREM NAS UNIVERSIDADES: (pois muitos ainda entrarão!)
Caros jovens, meus doces desconhecidos Kallil, Allyson e outros meninos e meninas do futuro hoje.
Durante algum tempo, em meu âmago, vocês me lembrarão de um poeta: Ranier Maria Rilke. Ele escreveu há muitos anos atrás um livro que marcou nas primeiras leituras. Foi Rilke que me inspirou o título desta mensagem com suas “Cartas a um Jovem Poeta”. Por vocês devo relê-lo para reaprender...
Ele escreveu um texto que me inspirou a arriscar há muitos anos o campo tortuoso, envolvente e belo da poesia. Arrisquei, há época, dos meus vestibulares, em 1971/72, falar poeticamente de alguns temas.
Eram sonhos adolescentes em plenos Anos de Chumbo. Nasciam com asas cortadas e temores de altos vôos de liberdade. Havia muitos preconceitos, muitas barreiras, muitos temores e repressões a nos circundar.
Mas com Rilke e outras leituras me afirmava que algum dia outros tempos, outros ares, outras formas de amar e existir estavam por vir. E o que posso lhes dizer é que agora vislumbro mais ainda esta nova Era.
Vocês, com suas preciosas “obras de arte” da Diferença estão provocando uma demolição. Isso mesmo, em tempos de Inclusão e ruptura de paradigmas, vocês despontam em um meio dito universal da educação: a universidade.
Para que eu pudesse chegar também a ela, lá naqueles anos 70, também tive de superar alguns obstáculos. Tenham, portanto a certeza de que hoje meu coração se alegra com suas experiências. E, mesmo que não tivessem passado para as Universidades, sua chegada à sua porta de entrada já me teria deixado muito feliz.
Porém vocês não heróis, nem fomos nós também no combate aos que negavam a democracia e a liberdade. Apenas lhes lembro de que ainda não terminamos nossas tarefas do aprender a aprender. Não terminamos nossas lutas pela igualdade com respeito a quaisquer formas de ser e estar na diferença.
Por isso saibam que muitos os antecederam para estas portas da Universidade fossem tornadas mais acessíveis. Ainda há muitos que esbarram, em nosso país, em outras barreiras menos visíveis na educação universitária. As cotas que o digam, principalmente pelas reações que provocam.
Vocês até tinham, têm e terão direito a elas. O tratamento desigual para os desiguais deve ser mantido por lei. Porém, para que se faça justiça, devem ser garantidos também o seu sucesso e permanência no campus universitário. Sem nenhuma forma de discriminação, segregação ou preconceito.
Os seus anos de Universidade devem ser um passo para os seus sonhos alados e não cerceados. Vocês terão de entrar nesse mundo universitário onde ainda são muito poucos, onde ainda serão os “raros”.
Mas, se depender de minha tenacidade e desejo, um dia, não muito longe, serão apenas os novos calouros que chegaram. Não serão os “especiais”, muito menos os “comuns”, apenas serão iguais, porém diferentes.
Talvez, um dia no futuro, serão os que ocuparão, por mérito e dedicação, as vagas de ‘’alunos especiais’’ de mestrado e doutorado em alguma Universidade.
E, se preparem, pois muitos ainda assim sentirão, por motivos como a ignorância, que vocês são ou continuam “mentalmente limitados”. Eu lhes peço que sejam obstinados, determinados e resilientes. A demolição de preconceitos é lenta, mas é inexorável.
Enfim gostaria que se lembrassem deste ano de 2012. Muitas conquistas estão ocorrendo, muitos espaços novos de liberdade e afirmação de direitos humanos das pessoas com deficiência estão surgindo.
Lembrem-se, por exemplo, que nesse ano estará sendo comemorado o Dia Internacional da Síndrome de Down na ONU. No dia 21 março de 2012, como a idade de Kallil, será celebrado na sede da ONU em NY, com a Conferência “Construindo o nosso futuro”. E a afirmação do direito humano à Educação Inclusiva, à participação política e ao seu emponderamento para a Vida Independente serão os temas principais.
Lembrem-se de que passarão muitos anos para que um dia vocês, os novos e futuros cidadãos e cidadãs com Síndrome de Down, junto com todos os que desejam Outro Mundo Possível, estejam usufruindo todos os recursos de tecnologia assistiva como direito e acesso universal.
Lembrem-se, caros e doces jovens, os ecos de resistência às violentações e vulnerações de seus corpos estarão marcados pela memória dos cidadãos e cidadãs bolivianos que enfrentaram com suas “armas”, ou seja, seus corpos, suas cadeiras de rodas, suas rodas, suas bengalas e sua indignação pelo descaso do Estado com suas vidas e direitos.
Lembrem-se de que estarão um dia saindo pela mesma porta que entraram na Universidade. Nesse dia, espero e desejo, teremos conquistado a efetivação de políticas públicas que garantirão os seus postos de trabalho e emprego, com dignidade, acessibilidade e respeito às suas capacidades, habilidades ou limitações. E, ninguém, nenhum empregador, se sentirá fazendo-lhes nenhum favor ou concessão.
Lembrem-se caros diferentes fenotipicamente, seres misteriosos, como disse Rilke, porém não mais exóticos ou orientais habitantes da Mongólia, que muitos campos culturais e das artes propiciarão novas cartografias, novos modos de suavidade das relações existenciais, que permitirão a exposição e o desenvolvimento de suas potencialidades humanas. Seremos, então, menos eugenistas, higienistas e utópicos?
Espero então, jovens universitários, que também são cidadãos e cidadãs com Síndromes ou condições de vida e saúde que os tornam diferenciados, que suas diversidades, heterogeneidades e diferenças se tornem o motivo micropolítico e ético de sua entrada, permanência e sucesso nas escolas. Do ensino fundamental às pós-graduações universitárias. Com sua inclusão para além de todas as exclusões.
E, nesse devir e porvir estaremos comemorando uma memória de muitas lutas e ativismos na defesa intransigente dos nossos, de todos e dos seus Direitos Humanos, como os que alicerçam, por exemplo, a Convenção sobre os Direitos de Pessoas com Deficiência.
E, então, eu estarei apenas como uma doce lembrança de quem lhes escreveu estas “mal tortuosas linhas”, lembrando-lhes o que vocês fizeram: romperam um preconceito, ou melhor, repetiram o grito de liberdade e igualdade que muitos cegos, surdos, pessoas com paralisia cerebral, surdo cegos, como Gennet de Corcuera, já haviam feito ecoar.
E, como me ensinou uma professora de português há muitos anos, lá em Minas Gerais: mais que viver além dos limites é preciso continuar a desafiá-los...
Até uma próxima e lhes envio, todos e todas, o meu mais doce abraço e afeto
Jorge Márcio Pereira de Andrade
Campinas 25 de fevereiro de 2012
PS- preferi publicar a foto do jovem Alysson e não de Kallil, pois sei que a imagem deste foi e será muito mais difundida pela mídia, vejam os links abaixo, mas ambos estarão em minha memória para sempre. E estou aguardando a “Revelação” de Alysson contra todos os racismos, preconceitos e bullying...
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Indicação de leitura no texto:
Rainer Maria Rilke https://pt.wikipedia.org/wiki/Rainer_Maria_Rilke
Cartas a um jovem poeta (Primeira carta) http://www.releituras.com/rilke_menu.asp
Matérias publicadas na Internet:
Aprovado no vestibular, 1º aluno com Down da UFG rompe preconceito
“Disciplina garantiu a vaga dele no vestibular”, diz mãe de jovem com síndrome de Down aprovado na UFG
Jovem na UFRN....É só acreditar!!!
Alysson vence as barreiras da vida e da educação
Primeiro Dia Internacional da Síndrome de Down na ONU terá forte presença brasileira https://www.inclusive.org.br/?p=21924
Ato de deficientes físicos acaba em violência na Bolívia
Sobre Dia Internacional das Doenças Raras – Instituto Baresi https://institutobaresi.com/
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