sexta-feira, 26 de agosto de 2011

CARTAS deVIDAs à DONA MORTE


Imagem Publicada - a foto do ator Al Pacino, com um par de óculos grandes, interpretando o Dr. Jack Kervokian. É o cartaz de propaganda do lançamento de um filme-documentário sobre a vida deste médico norteamericano que foi apelidado de ''Doutor Morte". Este médico patologista, obcecado com a questão a Morte, ficou conhecido mundialmente por defender, aplicar e criar uma máquina para o suicídio assistido de pacientes terminais. O documentário tem o título "You Don't Know Jack, The Life and Deaths by Jack Kervokian" (2010), foi, este ano, exibido pela HBO em seu canal, um mês antes da morte do médico. É um excelente exemplo da performance de Al Pacino e desmitifica o médico, trazendo-nos para o debate bioético e a crítica sobre o direito à morte com dignidade, para além de quaisquer questões ideológicas ou religiosas. Este cartaz tem uma interrogação no alto: "Is this a face of a killer?" ( Este é o rosto de um assassino?).

Estimada, querida, ilustrada/ ilustríssima e desejada 

Sra. 

DONA MORTE 
(hoje tão naturalizada, mas resisto em re-conhecê-la assim...) 

Tenho passado estes dias me perguntando se a Morte é a coisa depois da qual nada acontece aos Outros? Minhas interrogações são fruto de intenso e profundo questionamento sobre o morrer e a dignidade que a Sra. nos oferece ou oferecerá. Aliás, quem nos anda oferecendo uma ''boa ou dolorosa morte" é uma outra senhora: a Dona Medicina. Com seus avanços biotecnológicos, sempre acompanhados de uma ''boa e eficiente'' biopolítica para nossos corpos e órgãos vitais. 

Para o poeta Pessoa a morte é um acontecimento único, solitário, subjetivo, que não causa aos outros senão uma lembrança vaga. Uma lembrança que o tempo se encarrega de apagar. E, ao morrermos por aqui, nos tornamos apenas mero motivo de alguma forma de carpidação, ou seja lamúrias bem pagas que relembram/choram o morto e sua história já passada. E, para ele, o verdadeira mente morto, restará o esquecimento. Seremos lembrados apenas aniversariamente. 

Entretanto, Caríssima/Custosa Sra., digo-lhe nessas mal traçadas linhas que ainda és um enigma nos nossos singulares pós-mortem. Continuando um dilema enquanto somos considerados vivos. E, para lhe dar a deVida explicação, desta celeuma, lhe antecipo ser um médico, depois um psiquiatra e, pior ainda para seus admiradores, me aventuro nos des-caminhos psicanalíticos. 

Não me destes, nesses anos de Klínica, ou mesmo de convívio com a Loucura ou as neuroses, inclusive com meu temor ou pulsão, as respostas que gostaria. Por isso continuarei a interrogando e me assombrando com meus próprios fantasmas. 

Meus dias atuais me trazem de volta ao seu convívio. Não é um reencontro prazeiroso, Dona Thanatós. É, como pensou Canetti, refletindo sobre sua ''distinta'' figura: "o maior esforço da vida é não se acostumar com a morte". Realisticamente não lhe considero uma boa e agradável ''vizinha''. 

Embora a saiba rondando todos os espaços que frequento, passeie ao meu lado pelas ruas, me assombre em pesadelos ou se disfarce em agradáveis sonhos, até mesmo, principalmente, hodiernamente, na vida sexual. Basta lembrar como lhe deram uma nova metáfora, uma nova epidemia. Andaram e andam lhe associando à Aids. 

Associam-na com doenças ou sofrimentos. Imputam-lhe estigmas e preconceitos. Por isso lhe digo:- Cara distinta e nada distinguidora Dona Morte, a vetusta e impávida não pode ser a dona da Vida, embora alguns adeptos a considerem assim. Até mesmo o velho Freud a colocou em aparente separação/simbiose com Eros, mas vieram os existencialistas prá complicar nossas vivências e tentativas de vã filosofia. A sua presença, mesmo negada, está hoje até nos videogames, portanto, agora vivemos/ensaiamos também ''mortes'' digitais. 

As mortes "reais" que acontecem a granel, seja no Haiti ou na Somália, passando por Trípoli ou alguma comunidade pacificada do Rio, já são hoje pré-contabilizadas. Não nos sensibilizam tanto, e, tristemente, confirmam o Fernando Pessoa, são lembradas muito pouco depois que desligamos nossas tele-visões desses mortos alhures... 

Canetti nos diz que: "A monstruosa estrutura de poder surgiu dos esforços dos indivíduos para evitar a morte. Um número infinito de mortos foi exigido para a sobrevivência de um só indivíduo..." . Continuamos chamando isso de História?? 

Mas esta singela cartinha, ou melhor essa morte-ssiva, uma aglutinação de missiva com a Senhora, é apenas um princípio do nosso diálogo. Espero ter a chance de novas des-conversas, aliás monólogos, até o momento que a deseje mais que qualquer coisa da Vida. 

A grande chance é de que possa ter esse papo interrompido, coisa que não passa muito em nossas cabeças quando não estamos nos braços da depressão ou do suicídio. Por isso é que deveríamos lhe escrever mais vezes e tentar manter alguma proximidade ou acercamento subjetivo. 

Mando hoje esta mensagem, pensando em quem eu não gostaria que morresse, ou que a moda de Dr. Kervokian, pudesse ter uma ''morte digna''. Há um novamedicina reconhecida: os cuidados paliativos. 

Como já escreveu Raquel M. Ainsengart, com quem já tive a honra de trabalhar, o árduo trabalho dos paliativistas, em Utis (Unidades de Tratamento Intensivo), com os chamados ''pacientes FPT'' ( fora de possibilidades terapêuticas), gera uma nova administração do fim das nossas vidas, e: "...a assistência paliativa é solução para inúmeros dilemas éticos engendrados por uma determinada forma de exercício da medicina".

Dona Morte, com a deVida reverência às suas democráticas formas de extermínio, ainda não a naturalizei. Continuo como Simone de Beauvoir em busca de uma morte suave, porém digna. Continuo em busca de uma mirada bioética e crítica para a produção da ''boa morte'', as eutanásias, as distanásias e, mesmo aprovadas, as ortotanásias. NENHUMA DELAS SUAVIZA MEU CONFLITO COM A DONA MORTE. São as produções humanas diante do fato de não há uma morte, qualquer forma de morrer, ou qualquer morto que seja ''natural''. 

Para não me alongar, embora o tema de nosso confronto seja infinito, peço-lhe, hoje, que concedas aos moribundos um momento de poesia. Quereria estar em todas as máquinas que mantêm os sujeitos FPT sobrevivendo para lhes injetar, com todo respeito, um novo lenitivo. Iria lhes dar em doses progressivas o texto de Jacques Prévert, seu poema denominado Canção do Mês de Maio

O Burro, o Rei e Eu 
Estaremos mortos amanhã 
O burro de fome 
O rei de tédio 
E eu de amor. 

Um dedo de giz 
Na lousa dos dias 
Escreve os nossos nomes 
E o vento nos álamos nos nomeia 
Burro Rei Homem. 

Sol de Pano preto 
Já nossos nomes foram apagados 
Água fresca dos Pastos, Areia dos Areais, 
Rosa do roseiral vermelho 
Caminho dos alunos 

O burro, o rei e eu 
Estaremos mortos amanhã 
O burro de fome 
O rei de tédio 
E eu de amor 
No mês de maio. 

A VIDA É UMA CEREJA 
A MORTE UM CAROÇO 
O AMOR UMA CEREJEIRA.

PS - Uma última pergunta: porque seu nome, como a Terra, foi inventado no feminino? Assopre a resposta em meu ouvido... fico lhe devendo outras perguntas.

copyright jorgemarciopereiradeandrade (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet ou outros meios de comunicação de massa)

Sobre JACK KERVOKIAN - Morre, aos 83, Jack Kervokian, conhecido como 'Dr. Morte'
http://veja.abril.com.br/noticia/saude/defensor-do-suicidio-assistido-morre-aos-83-anos

Indicações para uma ''boa'' leitura sobre a morte e o morrer:

 Em Busca Um Sentido (para a Vida) - Viktor Frankl (trigéssima edição), Ed. Vozes, Petrópolis, RJ.

Sobre a Morte - Elias Canetti , Ed. Estação Liberdade, São Paulo, SP, 2006.

Em Busca da Boa Morte - Antropologia dos Cuidados Paliativos - Raquel Aisengart Menezes , Ed. Fiocruz/Garamond, Rio de Janeiro, RJ, 2004.

Uma Morte Muito Suave - Simone de Beavoir, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, RJ, 1984.

Poemas - Jacques Prévert, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, RJ, 1985

Leia também no blog -
O SUICÍDIO E A DOR - 
https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2015/09/o-suicidio-e-dor.html

Aos pais que aprenderam com (ar)dor a perda -
https://infoativodefnet.blogspot.com/2011/08/aos-pais-que-aprenderam-com-ar-dor-as.html

A pagar-se uma pessoa com Síndrome de Down
https://infoativodefnet.blogspot.com/search/label/Mar%20Adentro

Saúde Mental : Quando a Bioética se encontra com a Resiliência 
https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/10/saude-mental-quando-bioetica-se_11.html

A DONA MORTE É GLOBAL, MAS NOSSO TESTAMENTO PODE SER VITAL 
https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/09/a-dona-morte-e-global-mas-nosso.html

8 comentários:

  1. Prezado doutor Márcio,

    Como sempre, mas desta vez em especial, adorei e devorei seu artigo.
    Passamos recentemente pelo falecimento de nossa mãe e em nome da "quality life", trilhamos um calvário de dúvidas, sofrimento e culpa que ainda não superamos. Somos 3 irmãs, nos damos muito bem e conseguimos consenso em nossas escolhas, mas nada disso nos deu a paz por enquanto.
    A dona Medicina, por meio de seus arautos, os todo poderorosos doutores, nos oferece soluções que fogem ao alcance de nosso parco entendimento e mais ainda de nosso manso e humilde coração.

    Nunca havíamos passado por essa situação e ficamos nos perguntando se é bom participar desse processo da escolha do que é melhor para o paciente, que acha-se à nossa mercê ou se a ignorância seria o 8º sacramento que nos libertaria das seqüelas do "saber".

    Obrigada pelo artigo e parabéns pela luta pela INCLUSÃO.
    Com meu respeito e admiração,
    Lidia Walder

    ResponderExcluir
  2. CARA LIDIA
    Obrigado pelo comentario e pela afirmação de que a VIDA precisa de dignidade antes de qualquer outro atributo. Irei publicar seu comentario no blog... E continuemos nossas lutas pela dignificação da vida, até a morte... Ajude a difundir este texto.
    UM ABRAÇODOCE DR JORGE MARCIO

    ResponderExcluir
  3. Jorge, refiz meu comentário:

    Jorge, em cinco meses, nesse semestre, perdi minha mãe e meu pai para a "Dona Morte" e os perdi em uma UTI, que não oferece morte digna, quando longe da família....recebi os dois telefonemas das UTIs.....
    Sou médica e continuo a querer entender (será que é para entender?) como a "Dona Morte" nos afasta, de uma forma meio assustadora, interrompendo vidas.....
    Somos humanos frágeis e parece, que não percebemos, até que a "Dona Morte"(gostei de como a chamastes) mostre a nossa impotência perante ela.....
    Hoje,sinto-me como em um local aberto, uma praia talvez, só, sem minhas muletas emocionais e escuto como alguém dizendo - continua o teu caminhar, mesmo com os teus vazios, mas precisas continuar....
    Abraços,
    Lina Bastos

    ResponderExcluir
  4. Olá meu amigo querido, mais uma vez vc nos presenteando com seus textos reflexivos, mesmo falando da única certeza que nós seres humanos temos, mas que temos dificuldades em aceitar. Dona Morte nunca será naturalizada. Ela sempre será comentada de forma assustadora e dolorida. Aprendemos a lhe dar com as perdas que a Sra. Morte nos proporciona, mas isso é a vida. Que Deus nos proporcione uma vida digna para termos uma morte tranquila. Um gde abraço!

    ResponderExcluir
  5. Estimado Jorge Márcio, obrigada pelas sempre lúcidas palavras. Neste texto em especial, obrigada pelo olhar "de frente" para "Ela" e para a stuação-autoridade medical que -- como mostrado nos comentários -- tira nossas pessoas da Vida digna (morrer entre os/as seus/suas) para uma morte indigna (viver fio de vida em FTP - e mesmo em FDP! para morer em total solidão. Peço licença para acrescentar uma obra à relação das recomendadas, no final do texto: "Morte", do filósofo brasileiro, mineiro, José de Anchieta Corrêa. São Paulo: Globo, 2008. Forte abraço, Ana, Rio de Janeiro

    ResponderExcluir
  6. Parabens Jorge pelo tema e a oportunidade do assunto que aborda. Escrevo a partir de Mocambique e tenho tido oportunidade de acompanhar os seus escritos que os acho magnificos (principalmente quando se trata das pessoas com deficiencia).

    Muculmano que sou, acredito no Alcorao, livro revelado ao Profeta Muhammad (que a paz e bencao de Deus seja derramada sobre ele) a mais de 1400 anos. Pois entao, o Alcorao diz "Toda alma provará o sabor da morte" (al-Imran 3:185).

    Os homens (de varias ciencias) trabalharam no sentido de contrariar isso e o que ganhamos? Nao sei, mas bem o dizes (Jorge) acabamos ate fabricando instrumentos e tecnica para acelerar a morte (bem mencionastes os termos mais usados). A morte e um destino que toda a alma tera que experimentar - agora a ideia de morte digna, nao sei o que se pretende com ela. Digna em que sentido (a pessoa morrer feliz? Ou os viso ficarem felizes/contentes com a morte de outrem?). Nao sei se consigo me colocar sobre isso, agora de uma coisa sabemos que existem varias formas de morrer (com ligacao directa a causa - acidente, suicidio, homecidio, etc-idios), e sabemos nisso que sempre tentamos morrer naquela forma que nos parece menos dolorosa (mas isto tambem e quesitonavel - morte lenta (na cama?, na cadeira? na agua?) o repentina (na guerra?, na rua? no aviao?)e e deveras complicado encontrar respostas). Este e o limite de olharmos para a vida como o fim. Para nos que a olhamos como uma passagem em que devemos nos preocupar com o destino final (da nossa viagem) temos provavelmente um consolo quanto a isso. Morte digna seria quando essa acontecer enquanto os meus bons (de acordo com o mandamento da religiao) feitos sao muitos e reconhecidos por Deus e pelas pessoas. Deus nos promete uma morte (agonia) sem dores e uma vida futura promissora.

    Cumprimentos a todos, e pedir ao Jorge de nao para de escrever. Seus artigos sao uma marravilha.

    ResponderExcluir
  7. Querido Jorge,
    Talvez por experiências pessoais vejo o momento do nascimento e o da morte muito próximos, mais ou menos como o silêncio que antecede a tempestade.Se estamos aqui, conscientes, antes ou depois, ninguém sabe afirmar com certeza.Daí que o que me importa é o tempo compreendido entre os dois extremos.Posso buscar respostas no antes e no depois, mas não viver em função delas.
    Devo viver o mais dignamente possível e muitas vezes a Dna.Medicina, na sua ânsia por fazer dar certo o que os médcos julgam estar errado, acaba nos colocando no centro de uma avalanche de tentativas, aonde tanto os erros e quanto os acertos são imprevisíveis, justamente porque, diante de tanta diversidade, somos seres únicos.Sendo assim, o tratamento que recebemos na hora de nossa morte, dentro de um hospital, principalmente numa UTI está longe do ideal.
    Da mesma forma que ao nascer estamos, na maioria das vezes, cercados de carinho, assim também deveríamos estar na hora da nossa morte.E já que o que eu disse mais acima é que o que realmente importa é o tempo intermediário entre os dois extremos, talvez a medicina devesse olhar com melhores olhos para nossas dores e temores, além de respeitar nossas escolhas.Nós mesmos deveríamos olhar melhor para as pessoas que amamos. Acredito que isto facilitaria inclusive o nosso diálogo com a Dna. Morte.
    Um doce abraço :o)

    ResponderExcluir
  8. Sobre Dona Morte. Jorge, também não me agrada essa vizinha! Mas eu sei que um dia ela vem! Dona Morte não pede licença. Ela vai entrar na minha casa, como quem vem só para fazer visita. Que nada! Dona Morte me leva. Que seja discreta, silenciosa e sem antecedentes de doenças, sofrimentos. Pois, quero morrer numa manhã de sol com saudades da vida! Quem achar que eu mereço flores que me presenteie em vida!
    O pior balcão de negócios é o dos hospitais, clinicas etc! Quem deveria cuidar da vida com ética colocam diante do doente e seus familiares um balcão, onde os funcionários, em geral atendem muito mal e cobram preço tão caro! "Pela hora da morte!" A doença e a morte dá muito lucro! Os que usufruem lucros com a doença e a morte pouco importa o sofrimento humano! Não há diálogo com os donos dos balcões da morte, pois os funcionários são orientados a seguir o ritual burocrático e depois enviar os que estão sofrendo, morrendo passar por uma longa triagem. É preciso antes certificar-se se o pagamento será realmente feito! Se o cartão de crédito ou o plano de saúde autoriza. Mas, a Dona Morte não espera as longas horas para os devidos procedimentos burocráticos, então o jeito é abraçá-la sem medo, sem desespero e ir em paz! Pois, os "balcões hospitalares" são muito mais cruéis do que a Dona Morte! Desejo Doceabraço que fique bem distante dos "balcões da doença e da morte" e que Dona Morte não se lembre de visitá-lo tão cedo!

    ResponderExcluir