
Imagem Publicada - a foto do ator Al Pacino, com um par de óculos grandes, interpretando o Dr. Jack Kervokian. É o cartaz de propaganda do lançamento de um filme-documentário sobre a vida deste médico norteamericano que foi apelidado de ''Doutor Morte". Este médico patologista, obcecado com a questão a Morte, ficou conhecido mundialmente por defender, aplicar e criar uma máquina para o suicídio assistido de pacientes terminais. O documentário tem o título "You Don't Know Jack, The Life and Deaths by Jack Kervokian" (2010), foi, este ano, exibido pela HBO em seu canal, um mês antes da morte do médico. É um excelente exemplo da performance de Al Pacino e desmitifica o médico, trazendo-nos para o debate bioético e a crítica sobre o direito à morte com dignidade, para além de quaisquer questões ideológicas ou religiosas. Este cartaz tem uma interrogação no alto: "Is this a face of a killer?" ( Este é o rosto de um assassino?).
Estimada, querida, ilustrada/ ilustríssima e desejada
Sra.
DONA MORTE
(hoje tão naturalizada, mas resisto em re-conhecê-la assim...)
Tenho passado estes dias me perguntando se a Morte é a coisa depois da qual nada acontece aos Outros? Minhas interrogações são fruto de intenso e profundo questionamento sobre o morrer e a dignidade que a Sra. nos oferece ou oferecerá. Aliás, quem nos anda oferecendo uma ''boa ou dolorosa morte" é uma outra senhora: a Dona Medicina. Com seus avanços biotecnológicos, sempre acompanhados de uma ''boa e eficiente'' biopolítica para nossos corpos e órgãos vitais.
Para o poeta Pessoa a morte é um acontecimento único, solitário, subjetivo, que não causa aos outros senão uma lembrança vaga. Uma lembrança que o tempo se encarrega de apagar. E, ao morrermos por aqui, nos tornamos apenas mero motivo de alguma forma de carpidação, ou seja lamúrias bem pagas que relembram/choram o morto e sua história já passada. E, para ele, o verdadeira mente morto, restará o esquecimento. Seremos lembrados apenas aniversariamente.
Entretanto, Caríssima/Custosa Sra., digo-lhe nessas mal traçadas linhas que ainda és um enigma nos nossos singulares pós-mortem. Continuando um dilema enquanto somos considerados vivos. E, para lhe dar a deVida explicação, desta celeuma, lhe antecipo ser um médico, depois um psiquiatra e, pior ainda para seus admiradores, me aventuro nos des-caminhos psicanalíticos.
Não me destes, nesses anos de Klínica, ou mesmo de convívio com a Loucura ou as neuroses, inclusive com meu temor ou pulsão, as respostas que gostaria. Por isso continuarei a interrogando e me assombrando com meus próprios fantasmas.
Meus dias atuais me trazem de volta ao seu convívio. Não é um reencontro prazeiroso, Dona Thanatós. É, como pensou Canetti, refletindo sobre sua ''distinta'' figura: "o maior esforço da vida é não se acostumar com a morte". Realisticamente não lhe considero uma boa e agradável ''vizinha''.
Embora a saiba rondando todos os espaços que frequento, passeie ao meu lado pelas ruas, me assombre em pesadelos ou se disfarce em agradáveis sonhos, até mesmo, principalmente, hodiernamente, na vida sexual. Basta lembrar como lhe deram uma nova metáfora, uma nova epidemia. Andaram e andam lhe associando à Aids.
Associam-na com doenças ou sofrimentos. Imputam-lhe estigmas e preconceitos. Por isso lhe digo:- Cara distinta e nada distinguidora Dona Morte, a vetusta e impávida não pode ser a dona da Vida, embora alguns adeptos a considerem assim. Até mesmo o velho Freud a colocou em aparente separação/simbiose com Eros, mas vieram os existencialistas prá complicar nossas vivências e tentativas de vã filosofia. A sua presença, mesmo negada, está hoje até nos videogames, portanto, agora vivemos/ensaiamos também ''mortes'' digitais.
As mortes "reais" que acontecem a granel, seja no Haiti ou na Somália, passando por Trípoli ou alguma comunidade pacificada do Rio, já são hoje pré-contabilizadas. Não nos sensibilizam tanto, e, tristemente, confirmam o Fernando Pessoa, são lembradas muito pouco depois que desligamos nossas tele-visões desses mortos alhures...
Canetti nos diz que: "A monstruosa estrutura de poder surgiu dos esforços dos indivíduos para evitar a morte. Um número infinito de mortos foi exigido para a sobrevivência de um só indivíduo..." . Continuamos chamando isso de História??
Mas esta singela cartinha, ou melhor essa morte-ssiva, uma aglutinação de missiva com a Senhora, é apenas um princípio do nosso diálogo. Espero ter a chance de novas des-conversas, aliás monólogos, até o momento que a deseje mais que qualquer coisa da Vida.
A grande chance é de que possa ter esse papo interrompido, coisa que não passa muito em nossas cabeças quando não estamos nos braços da depressão ou do suicídio. Por isso é que deveríamos lhe escrever mais vezes e tentar manter alguma proximidade ou acercamento subjetivo.
Mando hoje esta mensagem, pensando em quem eu não gostaria que morresse, ou que a moda de Dr. Kervokian, pudesse ter uma ''morte digna''. Há um novamedicina reconhecida: os cuidados paliativos.
Como já escreveu Raquel M. Ainsengart, com quem já tive a honra de trabalhar, o árduo trabalho dos paliativistas, em Utis (Unidades de Tratamento Intensivo), com os chamados ''pacientes FPT'' ( fora de possibilidades terapêuticas), gera uma nova administração do fim das nossas vidas, e: "...a assistência paliativa é solução para inúmeros dilemas éticos engendrados por uma determinada forma de exercício da medicina".
Dona Morte, com a deVida reverência às suas democráticas formas de extermínio, ainda não a naturalizei. Continuo como Simone de Beauvoir em busca de uma morte suave, porém digna. Continuo em busca de uma mirada bioética e crítica para a produção da ''boa morte'', as eutanásias, as distanásias e, mesmo aprovadas, as ortotanásias. NENHUMA DELAS SUAVIZA MEU CONFLITO COM A DONA MORTE. São as produções humanas diante do fato de não há uma morte, qualquer forma de morrer, ou qualquer morto que seja ''natural''.
Para não me alongar, embora o tema de nosso confronto seja infinito, peço-lhe, hoje, que concedas aos moribundos um momento de poesia. Quereria estar em todas as máquinas que mantêm os sujeitos FPT sobrevivendo para lhes injetar, com todo respeito, um novo lenitivo. Iria lhes dar em doses progressivas o texto de Jacques Prévert, seu poema denominado Canção do Mês de Maio:
O Burro, o Rei e Eu
Estaremos mortos amanhã
O burro de fome
O rei de tédio
E eu de amor.
Um dedo de giz
Na lousa dos dias
Escreve os nossos nomes
E o vento nos álamos nos nomeia
Burro Rei Homem.
Sol de Pano preto
Já nossos nomes foram apagados
Água fresca dos Pastos, Areia dos Areais,
Rosa do roseiral vermelho
Caminho dos alunos
O burro, o rei e eu
Estaremos mortos amanhã
O burro de fome
O rei de tédio
E eu de amor
No mês de maio.
A VIDA É UMA CEREJA
A MORTE UM CAROÇO
O AMOR UMA CEREJEIRA.
PS - Uma última pergunta: porque seu nome, como a Terra, foi inventado no feminino? Assopre a resposta em meu ouvido... fico lhe devendo outras perguntas.
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Sobre JACK KERVOKIAN - Morre, aos 83, Jack Kervokian, conhecido como 'Dr. Morte'
https://veja.abril.com.br/noticia/saude/defensor-do-suicidio-assistido-morre-aos-83-anos
Indicações para uma ''boa'' leitura sobre a morte e o morrer:
Em Busca Um Sentido (para a Vida) - Viktor Frankl (trigéssima edição), Ed. Vozes, Petrópolis, RJ.
Sobre a Morte - Elias Canetti , Ed. Estação Liberdade, São Paulo, SP, 2006.
Em Busca da Boa Morte - Antropologia dos Cuidados Paliativos - Raquel Aisengart Menezes , Ed. Fiocruz/Garamond, Rio de Janeiro, RJ, 2004.
Uma Morte Muito Suave - Simone de Beavoir, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, RJ, 1984.
Poemas - Jacques Prévert, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, RJ, 1985
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