sábado, 14 de agosto de 2010

FAHRENHEIT 451.0 ou O LIVRO ELETRÔNICO?

Imagem publicada - a capa do filme em DVD:  Fahrenheit 451, de François Truffaut, já lançada em dvd, com a figura de seus dois personagens principais: Montag (Oscar Werner), um dócil "bombeiro", cuja tarefa em um Estado futurista, não é um apagador de incêndios, mas um incinerador de livros e dos que os leem e suas bibliotecas proibidas, colocado em conflito após o encontro com Clarisse (Julie Christie), que no livro é uma jovem, uma adolescente, e no filme uma extrovertida e alegre mulher. Nesse hiper futuro que já é ontem, naquela sociedade fria e mecânica seria o oposto do que Montag compartilha com sua esposa. No mundo de Montag, que já pode ser o nosso mundo de agora (o texto de Ray Bradbury é de 1953), na frase em inglês, é que se provoca a interrogação sobre a censura do conhecimento que está nessa capa, separando os personagens com uma chama de fogo: o que aconteceria se você não tivesse o direito de ler?

Há dias em que um livro é indispensável. Isso mesmo, é um livro daqueles que, se deixamos próximo à janela, ouvimos o farfalhar de folhas de papel. Eu tive de colocar um livro, El Analizador y El Analista, de Georges Lapassade, ao sol. Textos impressos como estes, e seus releitores, precisam de ar, vento e sol na medida certa. Cada livro contêm uma essência de liberdade, não podem ser aprisionados e esquecidos em estantes esquadrinhadoras

Por isso ao me tomar novamente pela imobilização, com recomendação de repouso absoluto, após um tratamento medicamentoso anti inflamatório injetável, para tentar cessar uma dupla e incapacitante bursite nos quadris, resolvi retomar velhos livros e velhas leituras. E velhas indagações e outras memórias.

Tudo isso por estar impossibilitado, como um amante dos livros, de visitar a Bienal Internacional do Livro em São Paulo. Será, hoje, uma pequena e doce vingança com a releitura de velhos textos, uma bela compensação de minha frustração. Nenhum livro novo e cheirando a papel e tinta. Quero folhas manchadas pelo tempo e pela sabedoria de um livro ancião. Quero o bom, às vezes perigoso para alérgicos, cheiro de um velho e provocante livro.

Mas tenho, por isso, também uma reflexão feita após um inusitado encontro estes dias atrás. Eu andava, ou melhor, me locomovia, vagarosamente, com as minhas 7 pernas, quatro do andador, mais uma da velha bengala, por uma rua próxima à clínica de fisioterapia, aqui em Campinas. 

Nessa caminhada por calçadas inacessíveis é que pude encontrar uma cena digna de ser fotografada e memorizada: uma demolição em ação, onde uma biblioteca era lançada à caçamba dos entulhos. Eram diversos livros de capa dura, envelhecidos, de folhas tomadas pelo tempo, destinadas ao lixo. Era um descarte sem reflexão ou crítica.

Isso me deixou triste, pois quem reconhece em um livro mais que um simples amontoado de letras impressas ou de folhas de papel, isso nos perturba, nos afeta.

Nesse caso, como em um pequeno Farol da Alexandria, nos deixa indignados. Aqueles volumes, possivelmente até alguns clássicos ou enciclopédias, considerados 'velhos' ou 'inúteis' estavam sendo descartados junto a pedaços de tijolos, madeira e restos de demolição. Pensei em intervir, mas minha condição física não seria suficiente para um bom combate com este descarte demolidor.

Pensei em mil maneiras de salvar os livros... mas como já estava atrasado para meu próprio alívio temporário das dores, tive de seguir em frente, resolvi que iria memorizar e depois escrever este texto. Não tinha nenhuma mágica ou forças para esse resgate.

Lembrei-me, então, do filme Fahrenheit 451, de François Truffaut, e da visão futurista, do livro de Ray Bradbury, onde o saber e o conhecimento, representados pelos livros em papel, seriam (ou são) incinerados à temperatura ideal para o total desaparecimento das letras impressas, sejam textos de literatura clássica, poesia ou mesmo fantasias ficcionais futuristas, como o livro de Bradbury. Os livros criavam ou criam aqueles que são chamados de 'subversivos' nas distopias?

Mas aí me veio a ideia de que há um renascimento dos livros, não previsto por Truffaut, pois hoje a Amazon Books já vende mais livros "eletrônicos" do que impressos, e muitos que antes estavam sem acesso a eles agora estão mais próximos da total digitalização dos textos. Estamos na cibercultura e nos tempos digitais da Era do Acesso.

Basta que reconheçamos o direito à leitura de todos os livros impressos aos cegos que, por exemplo, hoje já tem diferentes ferramentas e novas tecnologias que os equiparam a todos nesse direito inalienável: ler. Eles, e os que resistem às segregações e exclusões, a cada dia mais lutam pela universalização e socialização do livro digital.

Já escrevi um texto sobre essa resistência e o apresentei no XVI Cole, Congresso de Leitura do Brasil (2007). Um semi-conto ficcional/realista em homenagem a primeira surdo-cega, Gennet de Corcuera, que entrou em uma universidade na Espanha. Neste meta-conto já apelava para que buscássemos Uma Luz no Fim do Livro, ou seja um manifesto a semear uma outra leitura.

Agora relembro-me dessa defesa apaixonada pelo livro acessível a todos e todas. Agora em confrontação com a nova-velha forma de descarte dos livros considerados 'velhos', qual a visão dos que são considerados incapazes, me fiz algumas indagações: será que ainda assistiremos uma substituição de todos os velhos livros pelo novos livros eletrônicos? Pagaremos 360 dólares por um e-kindle, a segunda versão de leitor de e-books da Amazon? Como oferecer essa nova versão à milhões de brasileiros e brasileiras? Não somos ainda campeões nos diferentes analfabetismos, do funcional ao digital? 

O que aconteceria se fôssemos proibidos de ler, por lei e pela força? E se as formas de controle da Sociedade chamada da Informação estiverem sendo cada dia mais publicáveis? Em qual crematório, lixeiras ou lixões ou disco rígido estarão todos os livros produzidos até agora no mundo?

Não pude ir presencialmente à Bienal do Livro. Estou acompanhando, com 'àgua na boca' e comichões na mente, as reportagens e as comunicações via redes sociais da Internet. Descobri, por exemplo, que ocorrerá o lançamento de apenas 07 novos títulos sobre o tema "inclusão", muito embora haja lançamentos em braille, da Fundação Dorina Nowill para o público infantil. Eu espero que tenha alguém, nesse momento, escrevendo sobre o tema, alguém deve estar se preparando para a próxima Bienal.

Espero também que possam me reportar como foi respeitado conceito de Acessibilidade, em todas longitudes e latitudes do termo, nesse evento que marca a presença dos livros no Brasil. Espero, assim como desejo, que tenham convocados e respeitados os cadeirantes, os cegos, os surdos, as pessoas com todas as condições e formas de ser estar deficientes, pois os faço meus representantes, e que lá visitem e possam saborear, como todos os sentidos, os novos ou velhos títulos expostos ou vendidos.

E que o retrato a ser construído para o nosso futuro da leitura seja como disse em 2007: "“se a gente retirar as pedras, por direito e justiça, do meio do caminho dessa gente que chamamos, pejorativamente, de inválidos, paralíticos, malucos, esquisitos, anormais, incapazes, sem jeito, surdos, ceguetas, pretos, menores, índios, pobres, mulheres, marginais e deficientes, talvez eles e elas, unidos, possam construir com essas pedras (e muitos livros) uma estrada para o futuro”. E a luz no fim do livro se fará, luminescente, livre, instigante, curiosa, criativa, e, se apropriada pelo letramento, pode virar a própria re-evolução...

e que continuemos lutando contra todos os autoritarismos e seu fogo destruidor das memórias...

copyright jorgemarciopereiradeandrade (2010-2011) (solicitando a difusão e reprodução livre pela Internet sem deixar de citar as fontes e a autoria do texto) - todos direitos reservados.

"A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, de 2007, revelou que cerca de 39% dos 95,6 milhões de leitores brasileiros têm entre cinco e 17 anos. A estatística aumenta na faixa etária dos 11 aos 13 (8,5 livros por ano) e cai levemente entre os jovens de 14 a 17 anos (6,6). O estudo demonstra, ainda, a importância da escola e da família como incentivadores do hábito de ler."

Referências no Texto:
Fahrenheit 451 = 232,7 º Celsius

http://pt.wikipedia.org/wiki/Fahrenheit_451

Fahrenheit 451 - filme de François Truffaut, França-Reino Unido, 1966
https://videotecaferina.blogspot.com/2010/06/fahrenheit-451.html

O Cheiro do Livro - entrevista com Ray Bradbury
http://helderbastos.blogspot.com/2009/07/o-cheiro-do-livro.html

Livros eletrônicos
http://tecnoblog.net/2403/voce-gastaria-360-dolares-em-um-livro-eletronico/

21ª Bienal Internacional do Livro - São Paulo - SP 12 a 22 de agosto de 2010
http://www.bienaldolivrosp.com.br/

Retratos da Leitura no Brasil
http://www.cultura.gov.br/site/2009/10/13/brasil-de-leitores-artigo/
http://blogs.cultura.gov.br/bibliotecaviva/2009/01/22/pesquisa-retratos-da-leitura-no-brasil/
http://www.prolivro.org.br/ipl/publier4.0/dados/anexos/48.pdf

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6 comentários:

  1. Ah..Jorge...esse seu texto me tocou em diversos pontos.Eu queria estar lá, não quero ver livros destruídos e não poder fazer nada, tenho medo de locais inacessíveis e por aí afora, ou adentro :o)

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  2. oi Doce Turmalina amiga preciosa
    A Preciosa já havia demonstrado no filme como é indispensável escrever... e sei que você sabe disso. A formação de leitores digitais de nossos blogs pode ser um amanhã libertário para que não tenhamos novos BOMBEIRO FARENHEIT para combater...pela acessibilidade e a distribuição de textos por todos os caminhos e meios... um abraçodoce jorgemarcio

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  3. Obrigada Jorge, por levar-me ao conhecimento do jovem Edgar.
    Ganhei um lindo presente!

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  4. Cara Nirma
    Agradeço a oportunidade de ter lhe apresentado um jovem poeta, ele merecedor de uma Carta a Jovem Poeta com Paralisia Cerebral, pois prova o quanto podemos romper barreiras quando as letras são livres em um livro, poeticamente, indo além do que chamamos e impomos como limite às nossas diferenças... um doceabraço jorge marcio

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  5. Jorge,
    O (direito) nos é negado e nem percebemos.
    A consciência está longe de (sentir) e (libertar) o conhecimento.
    Os livros são nossos (mestres), porém ainda alguns (alunos) são imaturos e as (editoras), se apropriam da alma dos seus (escritores).
    Tudo começa (dentro)...
    Adorei esta postagem. Você é verdadeiramente uma pessoal muito especial!

    Voltarei sempre!
    Nirma Regina

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  6. IMPORTANTE REFLEXÃO! Pois, "Bendito o que semeia livros ä mão cheia e manda o povo pensar. O livro caindo n,alma é germe que faz a palma, é chuva que faz o mar" Esses versos de Castro Alves são muitos significativos... Pois não importa a forma, mas o livro quando domina a mente faz o povo pensar. Poderosos detestam os que pensam e por isso destroem bibliotecas!

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