sexta-feira, 4 de junho de 2010

AS SELEÇÕES: OS ESTÁDIOS, OS PARADIGMAS E UM NOVO GAME


Imagem publicada - O cartaz do filme Rollerball, os Gladiadores do Futuro (1975) que traz o ator James Caan, personagem principal do filme vestido com um capacete e com sua mão em riste, com uma luva cheia de pontas, como parte da "armadura" que os jogadores devem vestir, nessa distopia filmica que fala de um futuro (2005) onde não havendo mais guerras, os países seriam substituídos por corporações, e este game novo seria disputado em arenas lotadas, como um jogo violento que serviria para aliviar as tensões e controlar a população, demonstrando-se a futilidade do individualismo.

Em tempos de futebol global, de novas "cóleras étnicas" e novas administrações de combates estatais das epidemias planetárias, com o porquinho gripal nos ameaçando a vida, com um passado recente de uma outra gripe que batia asas e colocava os ovos de serpente dos fascismos, faz-se necessário retomar a questão da BIOPOLÍTICA.

A produção da homogeneidade não exige mudanças de paradigmas mas sim a sua conservação e institucionalização, quase sempre de forma sedutora e muito bem desejada pelas massas. Já lotamos estádios de futebol com milhares de corpos humanos, tanto para as Copas como para o emparedamento de chilenos na era Pinochet. O campo de disputa lúdica, hoje uma grande máquina-indústria esportiva, pode ser o mesmo para a eliminação da discordância ou dissidência política.

Bastou trocarmos as chuteiras por botas militares... a única diferença é o rumor de torcida que não se ouviu no controle autoritário e ditatorial de prisioneiros políticos, mas a bandeira da pátria tremulava, e alguma forma de biopolítica serviu para justificar a sua '' eliminação ", tudo em nome do nacionalismo.

Para ajudar na compreensão do que escrevi anteriormente na linha de cruzamento entre a Biopolítica e a Bioética, e devido à proximidade da IV Conferência Nacional de Saúde Mental, estou trazendo algumas linhas já escritas sobre a questão do Paradigma Biomédico questionando seus fundamentos, história, sua ligação com a Biopolítica e os questionamentos que devemos produzir.

É uma tentativa de lembrar que os nossos paradigmas, ou seja normas ou padrões, ao se tornarem instituídos, naturalizados e ‘cientificamente’ comprovados, muitos deles podem perder suas forças instituintes, seu potencial de sonho e transformação, tornando-se fechados e rígidos. Passam de possibilidades de avanço para uma confirmação de retrocesso.

O paradigma biomédico é historicamente ligado ao surgimento de uma concepção de ‘normatização da vida’, uma proposta que foi denominada de ‘biopolítica’ pelo pensador Michel Foucault. Este paradigma era fundamentado na visão fisicalista e orgânica da vida, como uma nascente de um modelo, nos fins do século XVIII, de administração e controle dos corpos e uma nova ‘gestão calculada’ da vida (Foucault, 1978).


Pela primeira vez nesse período da história, o biológico ingressa no registro da política: a vida entra, através de um esquadrihamento estatístico, demográfico, uma concepção de doença e controle das epidemias, no espaço do controle do saber e da intervenção do poder estatal.

Os sujeitos, cidadãos e cidadãs, na qualidade de sujeitos de direitos, se necessário com a perda destes, passam a ocupar um segundo plano em relação à preocupação política de maximizar o vigor e ‘não-doença’ (aqui um conceito próprio para não me referir à saúde, como nos termos atuais propostos pela OMS). 

Para  Michel Foucault deveríamos, então, falar de uma ‘biopolítica’ para designar o que faz com que a vida e seus mecanismos possam entrar no domínio de cálculos explícitos, e o que transforma o saber-poder em um agente de transformação da vida humana.


Na biopolítica, os corpos e a população devem ser submetidos a um novo e sutil modo de controle. Passamos da Sociedade Disciplinar para a Sociedade do Controle. Viva o Big Brother dos corpos "saudáveis e válidos" que foram "selecionados". Para isso precisamos da naturalização de uma visão hegemônica e dominante da condição de ser, do homem e do conhecimento, que a História demonstra o quanto de exclusão, discriminação, segregação, racismos e eugenia puderam ser confirmados em fundamentos "científicos e biomédicos". Assim o Estado pode transformar muitas vidas humanas em "vidas nuas" (Giorgio Agamben).

Dentro dessa visão do Poder do Estado de Exceção é que podemos afirmar que um paradigma também é uma representação mental, socialmente aceita e legitimada, que se torna um marco conceitual para tudo o que pensamos, sentimos, fazemos ou dizemos. Passa ser o modo a partir do qual veremos a realidade, e, portanto, o substrato de nossas ações. Eis a Questão Humana?

Eis o momento ideal para o surgimento de nossas ‘cegueiras brancas’, como nos ensina e adverte Saramago. Bastará lembrarmos o que se constituiu o modelo biopolítico do Nacional Socialismo, da medicina nazista e fascista, que experimentou suas primeiras formas de controle, com extermínio e experimentações científicas, de milhares de pessoas com deficiência. Foram estas pessoas as primeiras, assim como ciganos e homossexuais, que sofreram os campos de extermínio e concentração, depois vieram os judeus, dissidentes políticos e demais ‘parasitas sociais’. A alegação principal é, eugenicamente, da ‘purificação da raça e da sociedade’.

Em seu nome temos uma transformação do corpo de todos os seres humanos, como nos transmitiu Bettelheim, transformados em “mercadoria’: “Tanto os campos de concentração quanto os de extermínio, e o que ocorria neles, era uma aplicação irracional do conceito de trabalho como uma mercadoria. Nos campos, não só o trabalho humano como a pessoa como um todo transformavam-se em mercadoria. As pessoas eram’ manuseadas’ como se fossem feitas de encomenda. Eram usadas e substituídas ao bel-prazer do freguês, no caso, o Estado. Quando não prestavam mais, eram jogadas fora, mas com cuidado, para que não se desperdiçasse nenhum material aproveitável...”.

No final do século XVIII, em passagem para o século XIX, houve uma ruptura de paradigma no interior do saber e da prática médica; a medicina segundo a conceituação de Foucault deixa de ser classificatória para tornar-se anátomo-clínica. Bichat, um anatomista, ao estudar as superfícies tissulares do corpo humano, inaugurou uma nova concepção, denominada por Foucault de ‘medicina moderna’. Nessa perspectiva, passa-se a pensar a doença como localizada no corpo humano, e a anatomia patológica, até então sem nenhuma função para uma medicina eminentemente erudita, insere-se na prática médica.

Uma das mais importantes vertentes do paradigma biomédico, no século XVIII para o XIX, que irá atravessar ‘corpos deficientes ou inválidos’, é a do higienismo, confirmada por Canguilhem em seus Escritos sobre a Medicina: “A vigilância e a melhoria das condições de vida foram o objeto de medidas e de regulamentos decididos pelo poder político solicitado e esclarecido pelos higienistas. Medicina e política, então, se encontraram em uma nova abordagem das doenças, da qual temos uma ilustração convincente na organização e nas práticas de hospitalização.”

Para este autor, analisando particularmente seu país, a França, no decorrer da Revolução, houve um empenho em substituir os hospícios, asilos de acolhimento de doentes quase sempre abandonados (os loucos de toda sorte, alienados, miseráveis, débeis mentais, bastardos, prostituídos, etc...) pelo local higienizado do hospital, assim como ‘uma máquina de curar’, onde estes sujeitos passam a ser catalogados, vigiados, cuidados e analisados. No século seguinte proliferaram os Tratados de higiene industrial, chegou o tempo de um paradigma biomédico preocupado com a saúde das populações operárias.

Hoje com o crescimento demográfico e as epidemiologias nossos olhares biopolíticos, sem o atravessamento crítico da bioética, pode ser desviado na direção de novas formas de controle e de escaneamento das maneiras "sadias" ou "ideais" de vida coletiva e produtiva. A minha/nossa medicina dos dias de hoje tem um compromisso bioético de rever as suas práticas ao estar mais a serviço do Estado do que chamamos de sujeitos, cidadãos e cidadãs.

A questão da Loucura e dos loucos, nesse momento da busca de uma afirmação de novas formas de cuidado e novas tecnologias para a transformação da promoção de saúde, nos deve inspirar um ativo cuidado ético e bioético com os paradigmas.

Ainda temos muitos desses ‘velhos’ paradigmas atravessando e transversalizando nossos novos modelos de prática na Saúde, na Educação e na formulação de políticas públicas. Somos nós, ainda, herdeiros de um modelo biomédico que negligencia as importantes contribuições do meio ambiente, das relações sociais e da existência de uma subjetividade singular, ao procuramos afirmar todas as nossas incapacidades, nossas deficiências, nossos corpos 'defeituosos', nossas mentes conturbadas e transtornadas, apenas dentro de uma visão quase exclusiva de explicações genéticas ou fisicalistas?


A que interesses estamos submetidos no mundo hipercapitalista das biotecnologias que, por exemplo, no campo dos sofrimentos psiquiátricos cada dia mais se produzem novos "diagnósticos", novas "terapêuticas", novas "medicações" e consequentemente novas formas de produção de subjetividade e de controle biopolítico desses corpos?

Então os anormais serão normatizados, todos os 'inválidos' serão reabilitados, e os matáveis poderão ser eliminados em um novo jogo de "roller ball"... VAMOS VESTIR NOSSAS CAMISAS/UNIFORMES PARA A PRÓXIMA SELEÇÃO? Dizem que o novo "game" se chama: "FAIXA DE GAZA" ou será de nossa própria seleção verdeamarela.

EM TEMPO - este texto foi escrito após uma estimulante ajuda que prestei à minha filha de 09 anos em um exercício da sua escola sobre todos os Estádios de futebol da atual COPA MUNDIAL DE FUTEBOL na África do Sul, alguns desses estádios já foram palco do APARTHEID e de outras formas de utilização biopolítica pelos colonialistas em tempos pré-MANDELA.

 Aliás o Estadio Nelson Mandela não é que tem a maior capacidade de público ou de superpopulação. Podemos também não esquecer que em 1978, a setecentos metros do estádio, encontramos a Escola da Armada, hoje um arquivo da Memória da Ditadura Argentina, onde os gols foram ouvidos pelos muitos torturados, depois assassinados, assim como pelos seus algozes e torturadores. E, há registros históricos, de que, nessa época, contavam com o apoio irrestrito de nossos dirigentes ligados à Fifa... enquanto a bola rolava também se aplicavam choques elétricos nos prisioneiros dessa "Escola"...

copyright jorgemarciopereiradeandrade 2010/2020 (favor citar a autoria e as fontes indicadas na republicação e multiplicação livre pela Internet)

INDICAÇÕES de leitura:

Nascimento da Biopolítica - Michel Foucault - Ed.Martins Fontes - São Paulo-2008
O Poder Psiquiátrico - Michel Foucault - Ed. Martins Fontes - São Paulo - 2006
Homo Sacer - o poder soberano e a vida nua - Giorgio Agamben - Ed. UFMG - Belo Horizonte - 2007

Referências no texto:
Bettelheim, Bruno, O Coração Informado – autonomia na era da massificação, Rio de Janeiro, RJ, Editora Paz e Terra, 1985.

Canguillem, Georges, Escritos sobre Medicina, Rio de Janeiro, RJ, Ed. Forense Universitária, 2005.

Ortega, Francisco, Biopolíticas da Saúde: reflexões a partir de Michel Foucault, Agnes Heller e Hannah Arendt, Revista Interfaces, Comunicação, Educação e Saúde, V. 8, Nº 14, pág. 9-20, set 2003-fev2004

Indicação de Filmes -
Rollerball - os Gladiadores do Futuro - Lançamento: 1975 - Direção: Norman Jewinson - Genero: ficção científica (?)
http://www.adorocinema.com/filmes/rollerball/

A Questão Humana - Lançamento: 2007 - Direção: Nicolas Klotz - Gênero: drama
http://omelete.com.br/cinema/a-questao-humana/

matéria publicada no informativo (também) - iNFO ATIVO 4421 junho 2010

LEIA TAMBÉM NO BLOG - 

A PARÁBOLA DA ROSA AZUL - https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2010/05/parabola-da-rosa-azul.html

RACISMOS, BARBÁRIES, FUTEBOL... ONDE SE ENTRECRUZAM AS VIOLÊNCIAS SOCIAIS? 
https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2014/05/racismos-barbaries-futebol-onde.html

DEMOLINDO PRECONCEITOS, RE-CONHECENDO A INTOLERÂNCIA E A DESINFORMAÇÃO
https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/06/demolindo-preconceitos-re-conhecendo.html

10 comentários:

  1. Texto publicado em www.blogaodopereira.blogspot.com
    BLOGS EM REVISTA

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  2. CARO WASHIGTON
    Agradeço a republicação deste texto no seu blog com tantas notícias sobre a Política e os tempos atuais, que considero oportuno para nossas atuais realidades virtuais ou não, onde poucos se interessam em ir um pouco além das aparências e das maquiagens...
    um abraço carinhoso
    Dr JORGE MARCIO InfoATIVO DEFNET

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  3. Olá, Jorge! Encontramos seu blog por meio da republicação de seu post no blog de Washington Pereira. Queremos agradecer por usar "O Coração Inconformado" como referência em seu texto. Caso queira se comunicar conosco, nosso email é digital@pazeterra.com.br

    Um abraço da equipe da Editora Paz e Terra.

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  4. Caros editores da PAZ E TERRA
    Agradeço a sua atenção para meu texto e citação de Bettelheim, pois irei ainda utilizar muitos outros autores e autoras que a PAZ E TERRA publicou em nosso país, como Cornelius Castoriadis que já faz parte de minhas reflexões psicanalíticas e de analise institucional há muitos anos em minha biblioteca. Espero que tenham gostado de meu texto.Enviarei este agradecimento para seu e-mail e se permitirem os incluirei nos meus correspondentes do DEFNET. UM ABRAÇO

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  5. Obrigado pelo email, Márcio. Farei referência ao seu texto logo que possível. e, já agora, tente ler a minha série "Os desmaios femininos na Quisse Mavota"...Abraço.

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  6. caro CARLOS
    Envio um abraço agradecido desde o Brasil e indico o seu BLOG Diário de um Sociólogo com mais um na lista de meus blogs prediletos... e lerei sua indicação com carinho... agradeço sua resposta. um abraço jorgemarcio

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  7. Estimado Marcio gracias por la conección, muy interesante vuestro blog. Un cordial saludo desde Argentina.
    Sabrina Monzani
    http://psicoanalisisyotrasrutas.blogspot.com/

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  8. Estimada Sabrina
    Muchas gracias desde el Brasil y Campinas, puedo hacer un link de su blog en el InfoAtivo.
    Mi abrazo analítico y cordial
    JorgeMarcio

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  9. Nossa, espetacular esse texto!Lembrei de Marx, ao entender que no sistema capitalista o trabalhador é tratado como "coisa" Parabéns!!

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