Espaço Aberto, Ágora Virtual, criados por Jorge Márcio Pereira de Andrade, como uma resultante do InfoAtivo DefNet,com textos, informações, comunicações, editoriais sobre Artes, Acessibilidade, Análise Institucional, Bioética,Cinema, Direitos Humanos, Educação, Ecosofia ...
sábado, 3 de abril de 2010
UM AUTISTA PODE VIR A SER UM ARTISTA COM A ÁGUA?
imagem publicada - um quadro pintado pelo pintor italiano Caravaggio (1571-1610) que representa o mitológico Narciso, que foi condenado pela Deusa da Ética, Némesis, a ficar fitando sua própria imagem refletida no Lago de Eco, infinitamente, como um jovem muito belo, com roupas de época do século XV, com um reflexo espelhado dele magnificamente, com as características do tenebrismo de Caravaggio, pela iluminação do rosto do retratado, com cor de fundo em marrom predominando nesta tela.
INFOATIVO DEFNET - 4385 - abril de 2010
"O inconsciente molha aqueles que dele se embriagam... mutuamente." (Jorge Márcio d'aprés Felix Guattari)
Me instigaram estes dias a escrever sobre minhas experiências klínicas com os AUTISMOS. E a minha lembrança/saudade retomou o tempo em que implantava um Serviço de Psiquiatria infantil no quase desértico, pelo clima já diferenciado naquela época , e excluído, pelas comunidades desfavorecidas que o cercavam, o bairro de Bangu, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, na década de 80.
A cena clínica que me volta a mente é a de um menino que eu cuidava. O jovem "A", 10 anos, nome referência a primeira letra do Autismo, era um 'caso difícil' quando me foi apresentado, como um desafio, em reunião de equipe. Eu passei a atendê-lo em sessões individuais, semanais, em uma sala onde ele passava quase toda a sessão balançando o corpo, repetindo palavras ecolalicamente, e, após várias tentivas de contato com ele, descobrimos que podíamos "falar com as mãos na água' de uma pia no canto da sala. E foi aí que pude com muita suavidade tentar um contato com este 'difícil' garoto.
A lembrança de A me fez refazer a leitura de um bom livro que encontrei em 2008: Do Silêncio ao Eco - Autismo e Clínica Psicanalítica. É um excelente trabalho de Luciana Pires, que após experiências na Tavistock Autism Service (Inglaterra) e na experiência de quase dez anos em atendimento clinico a autistas no Brasil. Refiz a leitura e a recomendo aos colegas e demais interessados, pois lá encontrei o meu 'eco' psicanalítico para referendar as experiências clínicas da Clínica de Reabilitação Psicomotora Vicente Moretti.
Nesse livro pude entender que, empirica e afetivamente, tive um magnifico aprendizado com o 'paciente' "A". Foi ele que me ensinou a 'falar' através de uma água que escorria pela torneira da pia, e as poças que criava dentro dela, quando propositadamente interrompia seu ralo.
Foram poucas as vezes que consegui vencer a antinomia gerada pelo Autismo: o contato físico desejado por quem cuida e a inacessibilidade física e afetiva que o sujeito autista vivencia. Minhas pequenas e perseguidas vitórias ficaram para sempre em minha memória: os pouquissimos momentos em que A "deixou" que as suas mãos esbarracem nas minhas dentro da pia. Quantas "artes" fizemos com a água.
Para Luciana Pires há a possibilidade de uma clínica com as crianças autistas, com uma interrogação respondida, em texto suave e agradável, acerca dessa clínica a construir e aprender: "como se dá o contato com a criança autista ?". Ela exemplifica em seu belo texto alguns 'casos clínicos', de nomes Fátima, João, Paulo e Bruno.
Ela reconhece, indo dos inacessíveis aos ecolálicos, que existem vários autismos, como diz: "... em primeiro lugar, porque são singulares os indivíduos autistas e, em segundo lugar, porque o autismo não é um diagnóstico que define um campo de homogeneidade ( etiológica e/ou caracterológica)". Para esta autora, ao contrário do que se difunde, o seu diagnóstico comporta uma série de outros diagnósticos virtuais. Assim se constroi o "espectro autista".
Com o jovem A eu pude aprender também que o Eco que produzia me chamava para saída de meu/nosso próprio narcisismo. Era um apelo a me deixar envolver afetivamente, mesmo que a distância física e corporal nos deixasse longitudes, um do Outro. O rumor da água no seu fluxo nos permitia acalentar por alguns instantes as rumorosas torrentes e/ou enchentes de emoções que cada um trazia em si. E ao elaborar a transferência e a contratransferência que A produzia em nossos encontros pude alcançar um outra Escuta: a dos bailados que a água fazia, diferentemente do esperado, em cada um dos gestos estereotipados, assim classificados daquele jovem autista.
A água e seu fluxo também foram incorporados nesse encontro, o que me trouxe e traz a mente o mito greco-romano de Narciso (*), como nas Metamorfoses de Ovídio, onde a ninfa Eco jamais se fazia ouvir pelo encantador Narciso, este preso à sua própria beleza e egolatria. Tive, nos encontros com A, de superar essa posição narcísista gerada pelo desejo de uma clínica perfeita e bela. Ele , mesmo prisioneiro de seu narcisismo patológico, rompia todos os tratados e teorias. E era ele, na condição do "doente" a ser tratado, que era 'difícil e agressivo', ele era, enfim, considerado entre os 'intratáveis', assim como muitos dos sujeitos com transtornos invasivos do desenvolvimento ainda são classificados.
Mas há histórias clinicas onde a experimentação e a interrogação geram incomodos institucionais, quase sempre acabam em 'intervenções autoritárias'. Um dia ao chegar à Bangu, tendo enfrentado o calor de 40º graus, encontrei um intenso e conflituoso acontecimento. O jovem A não parava de gritar, uivar e se agitar na estereotipia, e ninguém sabia o por quê. Haviam, por determinação gerencial, retirado a pia da parede, tinha cortado a nossa àgua-comunicação-afeto. E, feita a desfeita, não há como explicar para uma singularidade tão complexa que o mundo dos neuróticos, quando instituídos em papéis e hierarquias, é pleno de inveja, disputas de poder, arrogância e desamor.
Não consegui mais fazer jorrar a água-amizade secreta com um jovem autista. Tínhamos sido derrotados pela insensibilidade diante da inacessibilidade aparente dos AUTISMOS. Porém, aprendi, como Luciana, que os 'autismo(s) pede(m) a construção de novos paradigmas e um efeito renovador da clínica e da prática psicanalítica'.
E isto pode ser um convite aos colegas que se aprisionam em hermetismos e repetições teóricas, perdendo a ousadia primordial que nos foi deixada por Sigmund Freud, quando diz que se o psicanalista somente "efetuar a seleção [do material produzido pelo paciente], se seguir as suas expectativas, estará arriscado a nunca descobrir nada além do que já sabe" (1912)...
Este texto é uma homenagem ao DIA MUNDIAL DE CONSCIENTIZAÇÃO SOBRE O AUTISMO - Dia 02 de ABRIL, e ao jovem A, assim como o filho de uma amiga, Murillo e os muitos que estão fazendo ARTES por aí, mundo afora e mundo adentro... VESTI AZUL, COR DE ÁGUA DO MAR, UM DIA,UM TEMPO DE MINHA CLÍNICA, MINHA VIDA E MINHA "SORTE" ENTÃO MUDARAM.
FONTEs :
NARCISO - Mitologia - http://pt.wikipedia.org/wiki/Narciso
AUTISMOS - conceitos - http://pt.wikipedia.org/wiki/Autismo
Outras informações Dia Mundial de Conscientização do Autismo -
http://www.ama.org.br/
http://cronicaautista.blogspot.com/2010/04/dia-mundial.html
E indico o blog de um jovem autista, FELIPE -
www.arteautismo.com
Referência Bibliográfica:
Do Silêncio ao Eco - Autismo e Clinica Psicanalítica - Luciana Pires, Editora Edusp/Fapesp, São Paulo, SP, 2007.
Outras Indicações para leitura:
Psicanálise e Desenvolvimento Infantil- um enfoque transdisciplinar - Alfredo Jerusalinsky e colaboradores - Ed. Artes e Ofícios, Porto Alegre, RS, 1999.
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Adorei este relato de experiência com a água. Só saberemos a melhor forma de comunicação, comunicando. Parabéns pelo trabalho!
ResponderExcluirCaríssima Zulmira
ResponderExcluirAgradeço sua mensagem elogiosa e o estímulo para que nós, terapeutas, possamos aprender mais sobre outras formas de COMUNICAÇÃO além do verbal... continue prestigiando-me com seus comentários ou e-mails. um doceabraço
jorge
Jorge,que fala!!!! Esta semana chorei muito ao recer de meu irmão,pai de um autista.Marcos...este nosso querido Marcos!Estou passando para meu irmão o seu BLOG.Vou colocar no meu um breve bilhete para vc .Lá eu posso colocar algumas fotos.Abraços Odila
ResponderExcluirParabéns por mais esse trabalho, Jorge!
ResponderExcluirA experiência do jovem autista me emocionou.
Cada vez que passo por aqui, levo comigo um aprendizado. Obrigada!
Colocarei esse link no blog deficiente ciente, para que seja apreciado pelos leitores.
Abraços e uma boa semana!
Caras amigas Odila e Vera
ResponderExcluirObrigado em nome dos milhares de sujeitos diagnosticados como AUTISTAS e seus familiares pela atenção e leitura de minha matéria no blog. Espero que outros leitores e leitoras possam ser tão sensíveis como o que revelam. A emoção diante da escrita de outrem revela que alguma coisa pode mudar para sempre no nosso mundo interno... nos revela a necessidade constante de releitura crítica de nós mesmos. UM DOCE ABRAÇO JORGEMARCIO
minha Vera:
ResponderExcluirsabes da competencia que tengo,em assim te tratar,sim pois és minha e de dasassistidos todos,como fui,embora em berço de ouro,pompas and circustancias,fui entre poders e riquezas criado,masis desassistido sim,voce para mim mantra é, de feminina genitália,mas querubim para mim,em cada escudo e fortaleza que aqui fundamentas ,me faz de alegria chorar,chora chorar e sorrir por voce existir!
yesssssssssssssssssssssssssssss
te amo pessoa de Deus que sintonia ,me faz pessoa
te amo Vera Pessoa Querubin mio!
vida Vera Vida
OBRIGADO POR SUA SENSIBILIDADE TÃO CONHECIDA MINHA E AQUI EXPRESSADA:
ResponderExcluir"Isto aqui é de uma beleza ímpar, Jorge. Sua sensibilidade põe à prova seu estilo elegante, nobre e sincero de "adotar" um caso e torná-lo seu. Parabéns, fiquei encantada coma questão da água... Que descoberta simples e fantástica... Dá vontade de arranjar uma piscina e re-inventar o próprio nascimento através desse contato lúdico que enternece e revigora a gente, ao ler seu relato. Muitos beijos de luz.
Dora Alvarenga
www.doraversoetal.blogspot.com
www.escoladoraalvarenga.blogspot.com
HÁ MUITO RECEBO SEU, NOSSO, INFORMATIVO. É COMO RECEBER UM PRESENTE. SEMPRE APRENDO ALGO E ME PERCEBO MAIS. ENTÃO, QUERO AGRADECER PELOS INÚMEROS PRESENTES JÁ ENVIADOS. SEI QUE TEM MUITA GENTE ARRANCANDO AS TORNEIRAS QUE JORRAM ESPERANÇAS, MAS SEI QUE EXISTEM MUITOS SEMEANDO O AMANHÃ DA FRATERNIDADE. E ENQUANTO JORGES MÁRCIOS ESTIVEREM ATENTOS, NÓS TEREMOS ESPERANÇA E LUTAREMOS POR ESSE AMANHÃ. UM GRANDE E FRATERNO ABRAÇO!
ResponderExcluirCara Olivia
ResponderExcluirobrigado a você pelo estímulo a continuar enviando minhas mensagens, minhas idéias e meus afetos... que ultimamente jorram como as aguas que ainda não aprendemos a respeitar... um doceabraço jorge marcio
Parabéns pelo belíssimo texto!! Demonstra sensibilidade e sabedoria. No dia 02 de abril, uma data pra não ser comemorada mas por todos nós sentida, louvamos essa atitude honrando nossos milhares de autistas diangosticados ou não! Fique com Deus amigo!
ResponderExcluirBerenice
CARA BERENICE
ResponderExcluirAgradeço a sua mensagem-comentário e espero que tenhamo o mês de abril para afirmar a conscientização sobre os autismos, para alem de apenas o dia 02 de abril... continue acompanhando e comentando no "nosso" blog... um doceabraço jorge
Olá Dr: Jorge Márcio.
ResponderExcluirLi seu texto com emoção . Voce tem a sensibilidade apurada e tem muito senso de humanidade, ingredientes primordiais em um psiquiatra. Voce possui a arte de buscar na relação com o outro a possibilidade de compreender o seu sofrimento e oportunizar as condições para o alívio do seu sofrimento.
Foi isso que fez com seu paciente autista aqui no Rio de Janeiro.
E pensei , nem tudo está perdido, existe pessoas como voce neste mundo dispostas a escutar e deixar-me molhar para chegar até os autistas.
E é verdade o que voce disse , existem médicos narcizistas que não conseguem esta proeza , pois acham que sabem tudo e não se deixam olhar por nínguém, muito menos por um autista . Os autistas são pessoas que se deixam abordar. Mas é preciso saber aborda-los,e voce soube maestramente fazer isso.
Voce é muito inteligente. e humano.
Conte mais experiências sobre o as suas vivências sobreo autismo em sua cliníca! Com certeza estrá ajudando nós pais e aos profissionais de saúde que precisam da sua experiência.
Parabéns pelo belo texto.
Ray mãe de Filipe , o pintor autista!
CARA RAY
ResponderExcluirObrigado por seus elogios que me estimulam e animam na busca de novos textos e novas idéias...em especial sobre temas que muitas vezes estão distanciados da experiência dupla de ser pai e de profissional, o que talvez me possibilite estas reflexões implicadas de corpo e alma... um abraço ao Felipe o ARTISTA mais que Autista...
Pois bem, dr. Jorge, aqui estou para te agradecer o apoio e sua fonte inesgotável de textos interessantes e sensíveis que repasso sempre adiante. Penso que a sua diferença nítida em relação aos outros médicos, é a sua generosidade de alma e prática na defesa da diversidade. Muitos anos atrás, quando minha filha foi diagnosticada como portadora da Síndrome de Asperger, o psiquiatra me disse que ela dificilmente terminaria a escola, teria amigos e um relacionamento afetivo. Realmente li tudo isso em livros. Olhei bem nos olhos dele e respondi: " o senhor não me conhece, não foi à toa que fui escolhida pra ser mãe dela". Pois bem, hoje aos 20 anos, minha boneca está fazendo a faculdade de Design em Animação, tem um grupo legal de amigos, frequenta baladas, shoppings, viagens, mergulho profissional em cavernas subterrâneas e namora um ótimo rapaz faz 5 anos. Se foi fácil? DE JEITO NENHUM, mas acredito que a inclusão começa dentro de casa. Também tenho um filho TDAH com agravante em impulsividade, hoje com 12 anos. A mesma coisa tem se repetido com ele. Arregacei as mangas e também luto pela informação, pela quebra dos preconceitos, do pessimismo alheio e do desinteresse de alguns profissionais da área da saúde e da educação. Lutarei por meus filhos e pelos filhos de outros pais, até o fim de meus dias, pois acredito na força desse amor incondicional que sentimos por eles e acima de tudo, pelo respeito que nos move sempre a tentar uma saída, uma solução, um passo pra frente e se necessário, dois pra trás pra pegar impulso. Juntos, estaremos tentando a re-humanização das pessoas que fingem não nos ouvir...um abraço e parabéns pelo seu trabalho!
ResponderExcluirCara Simone
ResponderExcluirfico contente com seu relato por provar que a persistência aliada à resiliência podem mudar a vida e os acontecimentos em qualquer situação de nossa transitoriedade... pois também acredito na dedicação amorosa ao cuidado de nossos filhos e outros entes amados... assim como esse amor abrangente e sempre qual FENIX capaz de resssurgir de suas próprias cinzas... Obrigado por sabê-la mais uma que crê em outros horizontes e vislumbres para as pessoas com diagnóstico de AUTISMO... UM doce e terno abraço, extensivo aos seus filhos e familiares, e continue comentando e difundindo o meu trabalho no blog e fora dele. jorgemarcio
Obrigado Jorge por compartilhar mais esse momento com a gente, estou sempre aprendendo com você. Aprendizado que me faz uma pessoa melhor a cada dia. Um grande abraço.
ResponderExcluirCarissimo Adelino
ResponderExcluirAgradeço por ter deixado seu comentário e mais ainda pela possibilidade de este tema do Autismo com suas singularidades vir a ser um tema do debate e conhecimento através do Facebook, onde a Claudinha nos provocou para uma reflexão importante... um abraçoforteedoce
Sim, é na prática amorosa de se colocar à disposição do sujeito, que uma clínica pode se instituir. Parabéns Jorge Marcio, por tão belo testemunho.
ResponderExcluirSim, o efeito renovador da clínica psicanalítica está nessa capacidade do se deixar surpreender Jorge Márcio. Parabéns por tão belo registro clínico.
ResponderExcluirSimplesmente vital!!!
ResponderExcluirMuito tocante. Triste e bonito. Bela maneira que conseguisse toca-lo. Mesmo assim triste.
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