quarta-feira, 8 de abril de 2015

SAÚDE, BIOÉTICA E POLÍTICA – Vendem-se corpos e compram-se consciências?

Imagem publicada – uma foto colorida que fiz de uma matéria televisiva sobre o uso de robôs e novas tecnologias a serviço das guerras, de indústrias de ponta nos Eua, onde um manequim é cirurgicamente operado por um robô, que é teleguiado e projetado para servir remotamente a cirurgiões, que irão abreviar atendimento emergencial de soldados feridos em combate. A legenda diz: um robô que pode realizar cirurgias no campo de batalha. Matéria do Discovery Channel onde a robótica é utilizada para criação de drones, robôs espiões e desarmadores de bombas à distância.

“... Ao final do século XX, o fenômeno que mais se destaca é que a compra e venda não dizem respeito ao corpo como um todo, mas envolvem as partes individuais do homem. Assistimos, em outras palavras, à fragmentação comercial do ser humano. Os limites entre os usos e abusos do corpo tornaram-se gradualmente mais sutis e imprecisos...” (Giovanni Berlinguer & Volnei Garrafa, in Mercado Humano, 1996)

In memoriam de Giovanni Berlinguer (1924- 06/04/2015)

Sempre me perguntam se faria uma nova cirurgia. Sempre me indagam se não há um ‘’novo’’ tratamento, para minhas perdas, inclusive da mobilidade física. Sempre se surpreendem quando digo que estou à espera dos robôs da Nasa ou de alguma invenção das biotecnologias que irão trocar toda a minha coluna vertebral e não apenas colocar novos parafusos de titânio. Ainda prefiro a re-existência titânica do viver.

Assisti, recentemente, um desses programas de TV, da Discovery, onde um robô estava a ser testado, como na foto que tirei, para ‘realizar (em tempo recorde e veloz) uma cirurgia em campos de batalha’. Me vi ali deitado e sendo, então, novamente operado. E o bisturi, tele manipulado como nossas atuais consciências, me abria novamente pelas costas.

Hoje uma amiga me telefona, após muitos anos de distanciamento geográfico, e me sugere que façamos, visto essa minha tendência robótica de introduzir titânio no meu corpo, uma campanha para que vá para uma frente de batalha no Afeganistão. Lógico que só com passagem de ida, pois a volta, após a identificação de meu “sanguíneo conteúdo” político, pode ser direta para Guantánamo.

Tenho um belo livro para releitura e reflexão: O Mercado Humano – Estudo bioético da compra e venda de partes do corpo. É o mesmo citado lá em cima. Nele há interrogações sobre nossos tempos de transplantes de órgãos, fecundação artificial, engenharia genética, e, interessantemente, a questão da ‘escravidão ao mercado tecnológico’.

De lá, o livro é de 1996, para os nossos dias de Século XXI posso ter de responder com um sim às suas indagações: “Pode tudo ser realmente comprado ou mesmo roubado? Os órgãos para transplantes, o sangue para as transfusões, os recém-nascidos para as adoções, as meninas para as prostituições?”. Se alguém tem dúvidas busquem, em separado, as perguntas, e as respostas, no grande dicionário digital, o Google.

A realidade cruenta, por exemplo, da questão de tráfico de órgãos veio novamente à tona por causa de médicos lá no Sul de Minas. Não muito longe de minha terra natal e suas águas medicinais. Lá na pacata estância hidromineral de Poços de Caldas. Lá ocorreu o chamado Caso “Paulinho Pavesi”, um menino de 10 anos que teve seus órgãos retirados, segundo matéria de jornal, “enquanto ainda estava vivo”.

Esses e outros ‘’casos’’ estão relatados em jornais de imprensa local e de outros veículos, dos quais listei apenas alguns. O que ligou às notícias foi o título do livro de Berlinguer e Garrafa. Além disso, o surgimento fugaz em redes sociais de matérias midiatizadas recentemente. Não estou e estarei aqui para o julgamento da ‘’Máfia dos órgãos’’, mas para tentar compreender de onde nascem as raízes desse mercado.

Estamos assistindo, tele e midiaticamente, um recrudescimento de atitudes preconceituosas em Faculdades de Medicina. Recentemente vimos ‘veteranos’ com as fardas e capuzes da Klu Khux Khan, estavam em suas ‘fantasias’ e trotes reproduzindo o martírio de negros nos corpos dos ditos ‘bichos ou calouros’, lá na Unesp. Entretanto já tínhamos precedentes. Antes tivemos os estupros e as violências dentro das ‘festas’ de iniciação da vetusta Faculdade de Medicina da Usp.
Cito apenas estas duas ocasiões violentadoras, em espaços de formação acadêmica, uma que foi naturalizada e outra que passou até por uma CPI, e como “notícias”, em tempos voláteis, só voltarão quando novos casos surgirem.

No texto que escrevi sobre o Holocausto brasileiro promovido, historicamente, lá em Barbacena, MG, já fiz as devidas ligações entre o comércio de corpos do hospício para as mesas de dissecção anatômica das faculdades de medicina. Eu, lamentavelmente, vi e tive esses cadáveres anônimos como ‘’lições’’ de anatomia humana, cheios de formol e de pele totalmente endurecida. Eram os Anos 70.

Creio que a dissolução, possíveis escrúpulos ou humanidades, no mais profundo de nossos inconscientes sobre o homem como sujeito, na formação dos profissionais de saúde, em especial os médicos, ocorrem nessa ‘iniciação’ onde temos uma ‘’oração do cadáver anônimo’’, mas podemos, no futuro, transplantá-lo a categoria de homem-objeto.

Os primeiros ‘poços’ profundos, ou gênesis, de nossa posterior desumanização dos corpos pode fincar as raízes nesse solo acadêmico. Afinal o que nos separaria dos médicos nazistas que, como nos diz Agambem, faziam experimentações com as cobaias humanas, as ‘versuchem person’, onde os judeus ou pessoas com deficiência eram submetidos às mais baixas temperaturas, ou extração ‘a frio’ de órgãos para fins dos ‘avanços da medicina germânica, e a proteção do exército do Reich’? Mas seriam necessárias biopolíticas, leis, e, principalmente escolas da  de-formação da Juventude Hitlerista ou das Faculdades de Medicina, ou não?.

Não estou trazendo de volta o fantasma de Mengele, mas que há um ‘cheiro’ mortal e incômodo de nazifascismo no ar não há como negar. As banalizações e naturalizações de violências estão autorizando, mesmo que não explicitamente, a ‘neomercantilização’, ‘neoescravidão’ e ‘neoexploração’ de nossos corpos insurgentes (como filme dos adolescentes). O Grande Irmão global nos incentiva à neo-guerra. Forjamos novas escolas hipermidiáticas do ódio e de novas Ondas? Ou apenas, neurótica e perversamente, repetimos os nossos passados?

As nossas raízes culturais também se alimentam de trans históricas posições eugênicas dos médicos e educadores do século XX. Lá em São Paulo nos anos 20 podíamos ainda ter a contribuição de eminentes escritores, intelectuais e ‘elites’ sociais que legitimavam a distinção de ‘corpos válidos’ e ‘corpos descartáveis’.

A Vida Nua pode ser captada como um discurso de Eugenia e Poder, segundo estudo de Vera Regina Beltrão Marques, no discurso de Monteiro Lobato, o mesmo das Reinações de Narizinho, que dizia: “-Muito cedo chegou o americano à conclusão de que os males do mundo vinham de três pesos mortos que sobrecarregavam a sociedade- o vadio, o doente e o pobre... A eugenia deu cabo do primeiro, a higiene do segundo e a eficiência do último...”.

E o escritor tinha relações muito próximas com os higienistas e eugenistas brasileiros. Para eles, que se consideravam uma ‘elite’, a eliminação ‘radical’, assim como propõem os fascismos, é a melhor solução para “a América (incluam o nosso país) aproximar-se de um tipo de associação já existente na natureza, a colmeia – mas uma colmeia da abelha que pensa”.

Eis aí um discurso que estamos sendo obrigados a escutar, ver e ler nos nossos tempos de Idade Mídia. Arautos do ‘bom combate’ das nossas corrupções, projetadas apenas no socius, dizem que devemos dar o poder político de gerir o país e a Vida aos que são ‘puros, imaculados e nascidos em berços esplêndidos das classes mais afortunadas’.

Aos outros, aqueles que contaminam nossos shoppings ou nossas periferias, cabe a continuidade do extermínio por ‘golpes brandos’. Mantem-se a alienação, o racismo, as discriminações e o trabalho escravo como naturais. Esses outros são as nossas misérias ou serão.

A exclusão social retoma seus ares de horror econômico e a cultura do medo retoma sua posição a favor de novas e sutis repressões, inclusive políticas. Os corpos são novamente Vidas Nuas, homo sacer.

E, aqueles dos quais se esperava o cuidado com a Saúde, em especial a pública e universal, chamada ainda de SUS, podem nos submeter às desqualificações e desumanizações que justifiquem esse novo mercado privado e altamente rentável. Seremos os novos pacientes doadores espontâneos dos nossos órgãos. E os úteros já estão alugados.

Portanto, não estreitando nossos olhares e visões, acredito que temos de buscar urgentemente uma ressignificação e revitalização de nossos corpos trabalhadores. Já nos terceirizam e comercializam, até quando nos prostituirão as consciências críticas e políticas? Até quando nos darão olhos biônicos e televisivos que nos afastam do Outro e nos dão uma sórdida ilusão de Poder?

A medicalização do viver tem andado passo a passo no mesmo caminho tortuoso da militarização da Vida. Os novos casos, sempre meninos ou meninas, que perdem suas partes fragmentadas, ou por balas de fuzil ou por bisturis eletrônicos, passarão a categoria perversa de ‘efeitos colaterais’ de nossos progressos? Ou são apenas vidas descartáveis que atrapalham as novas tanatocracias ditatoriais ou seus projetos globais, sejam elas nas Áfricas, na Ucrânia, na Síria ou no Brasil?

Portanto, dentro dessa minha visão, que não desejo ser antevisão, espero não ter o falso gozo de me tornar mais uma cobaia humana. As alianças das biotecnologias, das engenharias, das genéticas e das biopolíticas não aliviarão, nem aliviam, os meus mais profundos e poéticos ardores.

Eu, brasileiro, negro, e Lobatianamente descartável, prometo me manter na Re-existência e na Resiliência, política e micropolítica, para além do fato de ser mais um que deseja um envelhecimento com dignidade para a Medicina, em busca de um aprender a construir, bioéticamente, novas pontes para o Futuro ...

Copyright/left jorgemarciopereiradeandrade 2015/2016 (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet e/ou outros meios de comunicação para e com as massas)

INDICAÇÕES PARA LEITURAS CRÍTICAS –

O MERCADO HUMANO – Estudo Bioético da Compra e Venda de Partes do Corpo, Giovanni Berlinguer &Volnei Garrafa, Editora UNB, Brasília, DF, 1996.

A MEDICALIZAÇÃO DA RAÇA – Médicos, Educadores e Discurso Eugênico, Vera Regina Beltrão Marques, Editora UNICAMP, Campinas, SP, 1994.

O QUE É VIOLÊNCIA SOCIAL – Jorge P. de Andrade et alii, Escolar Editora, Lisboa, Portugal, 2014.


Notícias pesquisadas na Internet –

CRM absolve médicos condenados por tráfico de órgãos em Poços de Caldas (MG) http://noticias.r7.com/minas-gerais/crm-absolve-medicos-condenados-por-trafico-de-orgaos-em-pocos-de-caldas-mg-14022014  (vejam a quem pertence a empresa MG Sul Transplantes)

'Eles sabiam que a criança estava viva', diz juiz sobre tráfico de órgãos http://g1.globo.com/mg/sul-de-minas/noticia/2014/02/eles-sabiam-que-crianca-estava-viva-diz-juiz-sobre-condenacoes.html


Em 24/03/2015 - Médicos acusados de retirada ilegal de órgãos são presos em Poços



LEIAM TAMBÉM AQUI NO BLOG –



SAÚDE MENTAL: quando a Bioética se encontra com a Resiliência.

OS MORTOS-VIVOS DO HOSPICIO QUE ENSINAVAM AOS VIVOS SOBRE A VIDA NUA... BARBACENAS NUNCA MAIS! https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2013/10/os-mortos-vivos-do-hospicio-que.html

ROBÔS, POLÍTICA E DEFICIÊNCIA https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/07/robos-politica-e-deficiencia.html

OS DES(Z) MANDAMENTOS DO CORPO FEMININO https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2015/03/os-desz-mandamentos-do-corpo-feminino.html

TIROS REAIS EM REALENGO - a violência é uma péssima pedagoga https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/04/imagem-publicada-imagem-de-bracos-e.html


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