quinta-feira, 14 de novembro de 2013

RAÇA, RACISMO E IDEOLOGIA: ZUMBI ERA UM VÂNDALO, UM BLACK O QUÊ?

Imagem publicada – um menino zumbi? Uma foto colorida de meu arquivo pessoal com uma criança, com uma camiseta regata vermelha, onde se lê Salvador, Bahia, Brasil, uma cidade, um estado e um país bem pretos, com uma população infantil perdida e perambulante em busca de sentido e existência. Meninos e meninas, na maioria negros, que mendigam nossos olhares, nossa atenção, nosso respeito e nossa indignação. Meninos e meninas caídos, emagrecidos, dopados, como o da foto, em cima de pedras coloniais, por onde pisaram seus ancestrais escravizados, arrastando correntes, ou servindo aos seus donos senhores nas ladeiras como carregadores das liteiras, derivação de sua condição de mulas, ou seja, mulatos.

“Vós e nós somos raças diferentes. Existe entre ambas uma diferença maior do que aquela que separa quaisquer outras duas raças. Pouco importa se isto é verdadeiro ou falso, mas o certo e que esta diferença física é uma grande desvantagem mútua, pois penso que muitos de vós sofreis enormemente ao viver entre nós, ao passo que os nossos sofrem com a vossa presença...”.

Assim como o garoto “invisível”, esquecido e negado, para não deixar esquecer e com o desejo de não ter de repetir, pergunto-lhes, como já o fiz em 17 de novembro de 2010: de quem seria essa afirmação feita em 14 de agosto de 1862? Seria possível que fosse uma frase do eugenista Francis Galton (1822/1911)? Ou então de algum outro que pregasse à época a purificação das raças, sua higienização ou segregação para o “bem” de ambos os grupos étnicos, inclusive em nome da Ordem.

Não, a frase foi proferida por Abraham Lincoln, na Casa “Branca” para um grupo de negros, àqueles ainda sob a escravidão, e ditos motivos históricos da Guerra de Secessão. O norte abolicionista contra o sul escravocrata.

Historicamente aí nasce, ou melhor, se aprimora uma conceituação que alicerçará, por séculos, a ideia de raça. Naquele encontro presidencial estavam os que iriam receber uma ajuda governamental, aprovada pelo Congresso, para sua “instalação fora do país”. Seriam “ajudados” na sua volta a África, considerada já sua única pátria e nação verdadeiras. Então, Lincoln sublinhou que “neste vasto continente não há um único homem da vossa raça que seja considerado igual da nossa”.  E, como nossa Princesa, entra para a História como um defensor da abolição...

Escrevo este texto para nos lembrar, e em especial aos que negam a existência das consequências da ideia e da ideologia ligadas à raça, que quando se propõem uma comemoração ou celebração de um mês para a Consciência Negra, em nosso país, ao estarmos presos a velhos preconceitos ou falsas benevolências, a maioria da população deste país, apenas por ser a maioria, mesmo que tratada desde a Colônia como minoria ou marginalidade social.

Nunca gostei do que colocaram em minha certidão de nascimento: cor da pele – pardo. O que ouvia e o que sentia é que ainda  existia, pela visão de Abraham, uma diferença física que mesmo edulcorada com o “moreninho” permanecia como " a diferença". Uma diversidade não tão divertida, como os nomes que aprendia: cafuzos, mamelucos e outras “coisas”. 

Minha e nossa miscigenação era e é parecida com um processo de liquidificação genética de superfície; explico, apesar da pele mais “clara”, os processos de inclusão permaneciam, podem permanecer, na escola, na rua, nos mundos em volta, diferenciados. No fundo, no inconsciente colonizado, permanece a ideia da raça diferente.

São as sutis e negadas exclusões que permanecem subjacentes e como significantes nos processos ditos inclusivos. As construções das ideias intelectuais de raça foram, transhistoricamente, municiadas de “balas de borracha teóricas”, ou seja, continuavam repressivas, violentas, instauradoras de uma ordem, confirmadoras de um Estado de Exceção, mas sempre difundidas como uma solução para os conflitos das multidões e dos povos.

No meu universo empardecido procurei, pela voracidade do conhecer e do ler, encontrar um rebelde com quem me identificasse. Esse, que nos Anos de Chumbo, transformei em uma força constituinte e instituinte para meu próprio futuro: Zumbi (1655/20 de novembro de 1695). Um nome ligado a uma resistência ao colonialismo e à nosso histórico de dominação por Portugal. Um quilombola que os livros de história (com h minúsculo) diziam que tinha se suicidado na Serra da Barriga. Não, ele foi é traído e morto, como alguns das guerrilhas que se deram em outras matas da América Latina.

Segundo o livro de Joel Rufino dos Santos, como reparação dessa versão suicida, ao ser morto, após perder sua única fortificação e posição fixa no Quilombo dos Palmares, quando retomou a ‘guerra do mato’, demonstrou o vilipendio do seu corpo tombado por “quinze furos de bala e inumeráveis de punhal”. Tinham lhe castrado, e o seu pênis enfiado na boca, além de um olho tirado e uma mão direita decepada. Tinha se tornado uma vida nua, matável, despojável e uma ‘coisa negra’ que os vencedores do Império precisavam eliminar: um vândalo, um subversivo, um inimigo político dos bandeirantes, dos comandantes militares e dos aristocratas de Pernambuco e Alagoas.

Por isso quando leio que uma cidade brasileira impõe uma liminar para impedir a comemoração do Dia Nacional da Consciência Negra, 20 de Novembro, lá em Curitiba, me sinto, novamente, experimentando na pele esse disfarce e tática para a discriminação. A ACP (Associação Comercial do Paraná) entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, e a Justiça concedeu uma liminar, tendo como principal alegação: “...a ACP alega que o feriado (dia 20) causaria o prejuízo de 160 milhões à economia do município”.

Entretanto, como contradição a este suposto prejuízo, difundi pelas redes sociais o Relatório do DIESSE (Os Negros no Trabalho, 2013) que confirma que apesar de trabalhar mais a maioria dos trabalhadores negros, mesmo ao ter maior participação no mercado de trabalho, ainda ganham menos do que os não negros e ocupam os postos de serviços menos valorizados. 

Então, seja no Paraná ou no Amapá, continuam sendo uma maioria que alicerça a tal economia que seria prejudicada. Continuam uma ‘maioria’ em marginalização e discriminação laborativa. São os ‘zumbis’ que constroem prédios, novos aeroportos, novas estradas, novas economias, de novo denominados de mulatos e mulatas, inclusive no Global.

Para que não pensem que esta discriminação é localizada e datada na Colônia precisamos lembrar que a presença do trabalho indigno e escravo é mais atual do que nunca em nosso país. E, para nossa reflexão, um dos estados onde mais ocorre, o Mato Grosso, apenas 03 (três) de seus 141 (cento e quarenta e um) municípios, Corumbá, Ladário e Itaporã, irão comemorar o feriado do dia 20, o dia de Zumbi e da Consciência Negra. Em Campo Grande a Federação do Comércio também impediu o feriado. Entretanto, no Mapa da Escravidão, uma realidade e vergonha a ser enfrentada, este estado ocupa um grande espaço junto a outros que mantiveram mais de 43 a 200 mil trabalhadores em escravidão no séc. XX/XXI.

Então, alguns irão questionar o que há para comemorar? Não há nada para festa ou carnaval com mulatas globelezas nos encantando como sereias. Não há nenhum lamento ou banzo negreiro a ser rememorado. Não há nem mesmo nenhuma chaga gerada por velhos troncos ou torturas, ou chãos rasgados por mãos calejadas e ainda acorrentadas por novas escravidões.

Há apenas que, como a lembrança de Tiradentes, oficialmente autorizada, embora também martirizado por ser revolucionário, refazer a História, com participação ativa da população afrodescendente. Fazer, a partir das escolas, o resgate de um corpo, de uma História e de uma resistência, pela consciência e a educação, que retire os grilhões, hoje invisíveis, dos pés, mãos e cabeças dessa parte diferente e incômoda de cidadãos e cidadãs.

Este ano o 13 de Maio já passou. O dia 20 de novembro espero será menos negado e mais reconhecido, pois uma das mais comuns alegações ou justificativas, além das econômicas, para não torná-lo mais que um feriado, é a de que “não existe racismo no Brasil”. Assim se produziu, inclusive teórica e cientificamente, um embranquecimento de nossas memórias. Há quem não reconheça nem mesmo suas próprias identidades, origens ou negritudes.

Deu um ‘branco’ nas páginas obscuras de nossos movimentos eugênicos e higienistas que envolveram desde escritores infantis até grandes nomes das ciências. Estes esquecimentos já fazem parte de uma anistia que tentou esconder verdades de um tempo totalitarista e de exceção. O movimento de ocultamento de Amarildos e seus corpos reavivam essas práticas. O que a terra oculta, na nossa ‘culta’ sociedade, é para ser esquecido?  Zumbi diria que não, inclusive com armas ou pedras na mão, mesmo que decepada.

Por ter um dia me visto, reconhecido e re-existente através da história verídica de um homem livre, Zumbi, é que inventei nos tempos da Análise Institucional a “potência Zumbi”. Uma potência capaz, por sua força instituinte e desestabilizadora, de construir novos analisadores históricos, novas revoluções moleculares, novas cartografias, novas alianças e suavidades existenciais, para que possamos ir além das cotas e das ações afirmativas. Para que possamos realizar, em ato e mudança de paradigmas, minha frase premiada pela Seppir: “Abolir as novas escravidões e novos racismos, um futuro possível e urgente para o Brasil”.

Então, nem mesmo os mais radicais, os mais ‘poderosos’ ou os mais falsos abolicionistas poderão deter os novos Zumbis, novos black powers, novas singularidades, que não são mais massa, nem povo, são somente multidões indignadas e cansadas de sua exploração e escravidão neo e hipercapitalística. Martin Luther King, Malcom X e Frantz Fanon estarão juntos, de mãos e cabeças não decepadas, para nos inspirar essas potências Zumbis em nós.

- Se entrega, Zumbi! Eu não me entrego não, só me entrego LIVRE, VIVO e com o belo nas mãos.

Copyright/left jorgemarciopereiradeandrade 2013/2014 (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet e outros meios de comunicação de massa)

LEITURAS CRÍTICAS para reflexão e demolição de conceitos e preconceitos:

A IDÉIA DA RAÇA, Michael Banton, Edições 70, Lisboa, Portugal, 1977.

ZUMBI, Joel Rufino dos Santos, Editora Moderna, São Paulo, SP, 1985.

“A HORA DA EUGENIA” – Raça, gênero e nação na América Latina, Nancy Leys Stepan, Editora Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ, 2005.

Notícias citadas no texto:

NEGROS/INCLUSÃO NO TRABALHO - Relatório do DIEESE revela que mesmo trabalhando mais sempre ganham menos /Só escolaridade não garante presença de negros no mercado de trabalho, aponta Dieese http://infonoticiasdefnet.blogspot.com.br/2013/11/negrosinclusao-no-trabalho-relatorio-do.html


Mapa da escravidão (Lista suja do Trabalho Escravo no Brasil) http://cienciahoje.uol.com.br/blogues/bussola/2013/11/mapa-da-escravidao



Pesquisa mostra que raça é fator predominante na escolha de parceiros conjugais http://www.ebc.com.br/2012/10/pesquisa-mostra-que-raca-e-fator-predominante-na-escolha-de-parceiros-conjugais

Para quem só lê ou para fazer pesquisas na Internet –



LEI 10.639/2003 – (Para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira”) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm

LEIAM TAMBÉM NO BLOG:

01 NEGRO + 01 DOWN + 01 POETA = 01 Dia para não esquecer de incluir https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/03/01-negro-01-down-01-poeta-01-dia-para.html 

NA NOITE GLOBAL TODOS OS SERES TORNAM-SE PARDOS QUAL É A SUA RAÇA? - Nada a declarar... 
https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2009/11/infoativo-defnet-n-4305-ano-13-2122-de.html

RACISMO, HOMOFOBIA, LOUCURA E NEGAÇÃO DAS DIFERENÇAS:as flores de Maio https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/05/racismo-homofobia-loucura-e-negacao-das.html

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

AS BRUXAS RE-EXISTEM? COMO MANTER OU DEMOLIR UM PRECONCEITO.


Imagem publicada – uma reprodução de uma pintura onde uma mulher nua, presa pelas pernas, de cabeça para baixo, nua, amarrada e com um peso pendente desse instrumento de tortura, tem ao seu lado uma figura de um monge, um inquisidor, que lhe aplica os seus instrumentos para arrancar desse corpo feminino as justificativas que lhe permitirão apresenta-la ao Tribunal, uma corte de representantes da Igreja, com as provas cabais de sua heresia e bruxaria. Um dos meios mais comuns no século XV, na Idade Média, da Inquisição obter as confissões das mulheres que iriam para sua punição redentora: as fogueiras. (imagem capturada em site sobre bruxas na Internet)

Não gosto de filmes com fogueiras crepitantes para os corpos femininos. Entretanto parece que mesmo com as sutis maquiagens ainda hoje os jogamos no fogo. Hoje tivemos de comprar uma nova fantasia para minha filha. É o HALLOWEEN. É o dia delas, aquelas que não ouso dizer o nome, pois sei que elas re-existem em nós todos, e mais ainda como fêmeas.

Isso mesmo é dessa palavra que deriva a melhor e mais profunda expressão do gênero Feminino. São estas que em 1233 o Papa Gregório IX, como parte do processo de perseguição às feiticeiras e bruxas, admitiu a existência do sabbat e esbat.  Espero que procurem os significados no Google e verão que não tem nada de satânico, diabólico ou de ‘missas negras’, que pelos adjetivos já demonstram os preconceitos aí enraizados há séculos.

Tenho, portanto, no meu desejo de luta contra os preconceitos, já iniciado em texto anterior, que reapresentar um pouco de história e dados para que possam também desejar a quebra dos paradigmas que ainda cerceiam, ‘castram’ e ‘perseguem’ o corpo e a vida das mulheres.

Em 1326, quase 01 século depois, o Papa João XXII, autorizou a perseguição às bruxas sob o disfarce de heresia. Iniciava-se a “caça às bruxas”, uma perseguição biopolítica e social. O filme O Nome da Rosa, baseado no romance homônimo de Umberto Eco, nos serve de uma breve alegoria do que atormentava a Igreja católica nesses tempos do ‘martelo nas bruxas’ (Malleus Maleficarum). Assistam e verão que a ‘verdadeira’ bruxa se escondia é na Biblioteca do mosteiro ou dos claustros.

Um dos grandes encontros da Igreja nesse período, o Concílio de Basileia (1431-1449) fazia um apelo contra os ‘males’ desviantes ou instituintes que pareciam, ou que eram, como hoje, usados para infundir o temor de que a grande instituição religiosa  tivesse o seu ‘fim’. Já disse outro dia e repito: as instituições seculares não desaparecerão, apenas podem é mudar de nome e do tipo de adeptos ou convictos. Ou então mudar de clientela.

Transformaram confissões em “convicções”. Estas transformadas em dogmas religiosos. A partir daí é que milhares, aproximadamente 200.000 (duzentas mil) mulheres foram queimadas, após longo e doloroso processo de tortura. Para tal exercício de poder forjaram-se manuais e tratados sobre a bruxaria, encantamentos e feitiços, assim como são hoje as propagandas midiatizadas de alguns pastores.

Hora de produzir novos instrumentos de tortura e ‘classificação’. Nascem os ‘documentos’ e normas que autorizavam esse massacre. Inventam-se os fundamentos da Inquisição. E, por temor ou fervor, legitimaram os sadismos dos inquisidores, como Torquemada.

Entretanto, a eficácia da construção e manutenção de um preconceito que justifique um extermínio não se dá apenas nos macro poderes instituídos. É preciso para sua durabilidade, e não apenas sua duração temporal, que muitas massas sejam envolvidas nesse processo de ‘condenação’ e justiciamentos. Precisamos dos desejos e cristalizações de massa para condenar, dividir, separar e, biopoliticamente, controlar o que denominarmos de um Outro ameaçador, transgressor ou desviante, no caso em questão, institui-se a demonização das mulheres.

Essa ameaça do devir-mulher perdura. Hoje milhares de meninas estão vestidas de ‘bruxinhas’. Vestir-se fantasiosamente, como passado, no presente é um excelente e lucrativo negócio há muito tempo. Vestir-se temporariamente de alguma coisa que já foi tão perseguida, proibida, violentada e explorada, como o corpo feminino dito luxurioso e pecaminoso, reedita uma carnavalização da vida e uma permissão ‘temporária’ para, nos tempos modernos e pós-modernos, se “brincar de bruxa”’, contanto que essas fantasias desapareçam até o dia dos Mortos.

Já escrevi sobre como ‘queimar’ as diferenças femininas na atualidade. Uma das formas sutis de manter esse preconceito e sua permanência é manter a “bruxalização” (um termo e ação que inventei) do feminino e das mulheres. Podemos também atualizar as ações de “histeria” coletiva que ocorreram, por exemplo, na Aquitânia (1453). Mulheres e a transmissão de doenças foram uma das ‘heresias’ que estes corpos perigosos e antros do pecado receberam como acusação para sua exclusão e castigo público.

Lá uma epidemia provocou muitas mortes que foram imputadas às mulheres da região, de preferência as muito magras e feias (hoje, além das já citadas, seriam as muito gordas ou muito pobres?). Presas, submetidas a interrogatórios e torturadas, algumas acabavam por confessar seus crimes contra as crianças (futuros crentes e população), assim como aos homens (aos quais contaminavam), e condenadas à fogueira pelo conselheiro municipal. As que não confessavam eram, muitas vezes, linchadas e queimadas pela multidão, irritada com a falta de condenação.

Por estamos novamente em tempos de multidões é que relembro estes dados de massas que se alimentavam, nas suas misérias humanas, de espetáculos de violências, inclusive sexuais, e de naturalização das mesmas. Ontem difundi um Relatório da ONU: "Maternidade na Infância: Enfrentando o Desafio da Gravidez Adolescente”. Nele encontramos um número: “todos os anos 7,3 milhões de meninas e jovens menores de 18 anos têm filho nos países em desenvolvimento”. E o que isso tem a ver com as bruxas e as Inquisições?

É que o mesmo preconceito que alimentava cárceres, torturas e fogueiras ainda é o que se utilizam, lamentavelmente, para a justificação de exploração, hiper erotização, vulgarização e banalização do corpo de meninas e jovens mulheres: são passíveis de serem apenas Vidas Nuas. Ou seja, passam para o campo das coisas, dos objetos ou das vidas matáveis.

O motivo de tantas meninas e jovens já na maternidade é, segundo a ONU, uma questão a ser enfrentada urgentemente é que pelo menos 02 milhões delas têm menos de 14 anos. A essa precocidade da maternidade, assim como as suas consequências sócio-culturais e econômicas, se conjugam as causas das mesmas: violências sexuais, pobreza e, em alguns países, a tradição ou obrigação de casamentos infantis, geralmente por razões religiosas, forçados pelas famílias.

Meninas que são proibidas de serem apenas meninas. Malala Yousafzai e Talebãs não são privilégios do longínquo Afeganistão, tão invadido, tão devastado como foi mostrado no filme A Caminho de Kandahar. As burkas mais invisíveis são as mais violentas. A negação do corpo feminino não se dá pelas camadas de tecidos que o escondem ou protegem. A negação se dá pela permanência transhistórica de seu “lugar” diminuído atrelado à suas diferenças, como tradições, privações, discriminações e, a se perenizarem bruxas, aos preconceitos que permitem sua vulneração.

Herdeiras de Lilith, obrigadas por séculos a caminhar alguns passos atrás da opressão masculina ou machista, são ainda os corpos que mais vendem, mais atraem e mais sofrem. Muitas vezes mais trabalham e menos ganham. Ontem me indaguei outro por quê? Porque no ‘Bolsa Família’, para além de suas questões mais visíveis, são as mulheres que tem a maioria dos cartões, 93%, e destas 63% são negras?

Será que estas também não são, além do arrimo de suas famílias, muitas das que começaram a ter filhos aos 13, 14, 15 anos, com as suas “carreiras” do lugar único de mães? O quanto e quando puderam viver outras fantasias que não as de ter um fogão e uma geladeira? Enfim, não quero ficar buscando estas perguntas-respostas já que também elas se tornam as que mais necessitam da Lei Maria da Penha.

Afinal não são apenas mulheres? Não, são apenas “bruxas” remodeladas e sem os tradicionais defeitos físicos, monstruosidades ou aberrações; se tornam, sim, milhares de Marias cujas penas a cumprir, em suposta liberdade, são serem capturadas por novas crenças, novos fundamentalistas, novos tabus, novas interdições e promessas de salvamento e vida eterna. E novas burkas lhes são aplicadas sutilmente, religiosa e evangelicamente.

Por isso espero que as meninas, como a minha, possam se educar e serem educadas em busca de outro modo de liberdade de uso dos seus corpos e vidas. Por isso desejo que, indo além do brincar de bruxa, possam aprender a se descolar desse secular e instituído pecado original.  Será que podem aprender a aprender como resistir?

Sim elas re-existem, as bruxas e as feiticeiras, mas já serão mais as donas das ‘perseguidas’, um nome popular para o seu sexo, primeiro lugar, para os inquisidores, da busca da maldição e da luxúria. A grande entrada de onde a vida brota, mas que tinha e tem o direito fundamental de escolha refinada do que lá pode ser colocado como vida, não como tortura ou violação.

 E, após entenderem como se criou o mito das vassouras voadoras, dos unguentos mágicos que alucinavam os homens, outras mulheres, outros sexos, ao serem submetidas aos estupros e outras violências sexuais, possam romper com esta simbologia fálica. Rompendo também as duras correntes que ainda estão invisivelmente aprisionando e mutilando suas posições desejantes, os ‘objetos muito claros’ e caros das atuais perseguições.

Quem sabe, então, na produção de suas subjetividades, não terão como único objeto de desejo obscuro se manter presas ao paradigma de que seu lugar é perto do fogo, do lado ou em frente ao fogão, entretanto complemente apagadas, nunca mais ardentes. Nunca mais erótica e livremente bruxas. Bruxas livres das bruxas já queimadas vivas.

Copyright/left jorgemarciopereiradeandrade 2013/2014, ad infinitum, todos os direitos reservados (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet ou outros meios de comunicação de massa)

LEITURA CRÍTICA INDICADA –
Biblioteca: Malleus Maleficarum — O Martelo das Bruxas (em português) https://mosaicum.org/2010/10/04/biblioteca-malleus-maleficarum-o-martelo-das-bruxas-em-portugues/

O Martelo das Bruxas ou O Martelo das Feiticeiras é uma espécie de manual de diagnóstico para bruxas, publicado em 1487, dividindo-se em três partes: a primeira ensinava os juízes a reconhecerem as bruxas em seus múltiplos disfarces e atitudes; a segunda expunha todos os tipos de malefícios, classificando-os e explicando-os; e a terceira regrava as formalidades para agir “legalmente” contra as bruxas, demonstrando como inquiri-las e condená-las.

Filmes Indicados:

A CAMINHO DE KANDAHAR - Mohsen Makhmalbaf
Trailer for "Kandahar" 

O NOME DA ROSA - livro e filme (1986) - Jean Jacques Annaud - https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Nome_da_Rosa  https://www.adorocinema.com/filmes/nome-da-rosa/

Sobre citações na INTERNET
Malala Yousafzai: uma menina que queria apenas estudar https://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=5511&id_coluna=20



LEIAM TAMBÉM NO BLOG –

O MARTELO NAS BRUXAS – COMO QUEIMAR, HOJE, AS DIFERENÇAS FEMININAS? https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/11/o-martelo-nas-bruxas-como-queimar-hoje.html

MULHERES, SANGUE E VIDA, para além de sua exclusão histórica https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/03/mulheres-sangue-e-vida-para-alem-de-sua.html



EUGENIA – Como realizar a castração e esterilização de mulheres e homens com deficiência?