segunda-feira, 2 de julho de 2012

POR UMA MEDICINA QUE ENVELHEÇA COM DIGNIDADE


Imagem publicada - a imagem de Hipócrates (460 -377 a.C), considerado o precursor e fundador da medicina grega, com uma estátua à esquerda, tendo ao centro o texto do Juramento de Hipócrates. Este texto que ainda se lê nas cerimônias de formatura de novos médicos, considerado, nas suas modernizações, um estímulo ao exercício ético desta profissão. Ao lado e abaixo, à direita, encontra-se o caduceu, um bastão que tem uma cobra enrolada, um símbolo universal da medicina, que trans historicamente nos lembra de que é preciso o tempo para o aprendizado dessa arte, assim como o cuidado com seus próprios venenos curativos.

“QUANDO TOMAMOS CONSCIÊNCIA DE NOSSO PAPEL, MESMO O MAIS OBSCURO, SÓ ENTÃO SOMOS FELIZES. SÓ ENTÃO PODEMOS VIVER EM PAZ E MORRER EM PAZ, POIS O QUE DÁ UM SENTIDO À VIDA DÁ UM SENTIDO À MORTE,,,” 
Saint-Exupèry (Terra dos Homens)

Este texto foi escrito originalmente para a minha filha YASMIN – futura/presente médica, em formação, e, estando às vésperas de mais uma intervenção cirúrgica na minha vida/corpo, também o dedico para os muitos médicos e colegas dos quais dependo hoje para o cuidado e alívio de minhas fragilidades humanas.


EM 1977, ainda acadêmico de medicina, escrevi para meu convite de formatura a seguinte mensagem, até hoje continuo tentando realizá-la: -“UM MÉDICO NÃO SERÁ VERDADEIRAMENTE O QUE DESEJA SER ENQUANTO NÃO FOR O QUE PROPÔS ATINGIR: UM SER HUMANO...”. Ainda tínhamos no ar o peso dos Anos de Chumbo da ditadura militar. Os generais também ocupavam seu papel repressor e fiscalizador junto à medicina e os médicos.


Nesse momento histórico, devido ao que já havíamos vivenciado de restrições, estive contaminado por uma profunda e indelével necessidade de humanização de minha futura/presente profissão. Eu ainda ouvia em meu coração um desejo de uma medicina com os mesmos traços hipocráticos de muitos séculos atrás. Dedicava já naquele tempo um olhar para o médico como um terapeuta.


Na Grécia, de onde vêm também Asclepius e o teatro de Epidauro, onde se realizavam curas através do teatro e a música (o coro), os terapeutas também se tornavam os melhores mensageiros dos deuses. Eram eles que após uma noite, seja em um templo ou no oráculo de Delfos, ajudavam os que dormiam nesses espaços a interpretar e seguir seus próprios sonhos.


Nessa visão e minha prática clinica um médico deverá ser antes de tudo um terapeuta. Ele apenas é, pela etimologia, um mediador que pratica a mediação, entre um corpo humano e seu mundo interno e a nossa vida externa. É tendo esse papel que a medicina se utiliza dos instrumentos de mediação: os remédios. Hoje estão reificados pela indústria farmacológica, como parte de uma grande máquina do hiper capitalismo.

No mundo atual em que as biotecnologias têm se reificado, com bilhões de dólares sendo empregados para a busca de ‘’curas’’ ou de soluções para nossos males e sofrimentos, a terapêutica vem sendo substituída pelo mesmo mecanicismo de nossos primordiais fundadores da medicina ocidental, como Sanctorius e sua escola de fisiologia mecanicista.


Remetemos-nos ao passado de séculos atrás. Ainda repetimos suas busca de “máquinas’’, “medidores”, “balanças”, “termômetros” e todas as parafernálias que hoje se transformam em grande auxílio para as ressuscitações em Utis e das telemedicinas. Muitos avanços ocorreram, porém a frase fundamental do jovem que se formava em 1977 se perdeu diante de tantos ruídos provocados pelas novas ressonâncias, tomografias, lasers e desfibriladores.


O meu desejo incipiente também se perdeu diante da massificação, desumanização e da grupalização da medicina. Somos hoje muito mais números do que pessoas. O que me parece, às vezes, principalmente na saúde coletiva, com o modelo usado para a produção de Vidas Nuas dos campos de extermínio ou concentração nazista. Apenas não tatuam agora nosso número, somos digitalizados e informatizados.


Ouvimos ainda nossos primordiais ancestrais? Recitamos no coração o modelo hipocrático ou de Cós? Retiramos os ‘’deuses’’ de nosso juramento hipocrático e o modernizamos? Não encontraremos quem se mantenha fiel ao pedido aos velhos deuses: “- Juro por Apolo médico, Asclepius, Higéia e Panacéia, todos os deuses e deusas...?.”


Da Grécia antiga a atual onde as colunas de velhos templos ainda estão de pé na acrópole, encontramos uma evolução da medicina e seus atos, que hoje podem ser considerados notáveis, porém ainda temos uma distância enorme, trans histórica, do que acreditavam os antigos seguidores de Apolo, o seu deus da verdade...


Há muito mais segregação de nossos direitos humanos em saúde do que nesse passado greco-romano? Talvez não, pois apesar dos princípios que nos legaram os gregos também se deixavam, como nós, iludir com os exercícios de segregação e desagregação (vejam a palavra grega no meio de tudo dos discursos da modernidade, principalmente o "agregar" valor).

Havia, por exemplo, na pólis, os que eram cidadãos e os não cidadãos, como as mulheres de Atenas e seus escravos, que não eram diferentes dos que hoje permanecem por horas a fio em uma fila do SUS. Mas nem por isso devemos deixar de defender essa conquista da saúde pública brasileira. Precisamos sim é que a política pública seja construída em novos paradigmas.

Há ainda, nesse modelo massificado, espartanamente uma segregação entre os ‘’homoi’’ (os iguais) e os ‘’periféricos’’, ou seja, os que têm acesso livre a cidade e os fóruns/ágoras. Sendo então, passíveis de cuidados como direitos. E os que vivendo na periferia, hoje, são os que devem continuar do lado de fora das clínicas e hospitais de alta complexidade: são as filas intermináveis que nunca conseguimos desmanchar.

A medicina e os médicos passaram por um processo de sofisticação de seus métodos, atos e recursos tecnológicos. Porém ainda precisamos caminhar a passos rápidos para um resgate dos princípios filosóficos que podem e devem nortear nossas intervenções e relações com a Vida e o corpo humano.

Por isso invoco os deuses antigos para que contaminem os jovens médicos da medicina baseada em evidências. É preciso perguntar, problematizar, criar dilemas e abrir um grande espaço para uma reflexão bioética do que é e o que chamamos de SAÚDE.


A medicina não pode ser apenas uma ciência das doenças. As doenças não existem sem o pressuposto da saúde. Segundo Gadamer: “Sabe-se mais ou menos o que são as doenças. Elas possuem, por assim dizer, o caráter insurrecional da ‘falta’. De acordo com seu aparecimento, elas são um objeto, algo que promove a resistência, a qual se deve quebrar. Pode-se colocar isso sob uma lupa e julgar o grau de doença através de todos os modos que uma ciência objetivante, em virtude da ciência natural moderna nos colocou à disposição...


Porém e para além da Medicina sem Médicos do Século XIX já entramos em uma Medicina PARA ALÉM DOS MÉDICOS no Século XXI. E a saúde, nosso maior objetivo e meta, muito mais que uma resposta aos milhares de exames que possamos pedir, por mais laboratórios que se passe, se subtrai disso tudo. Saúde é justamente algo que existe por se subtrair a todos os exames ou investigações a moda de um House televisivo.


A Medicina que desejo ainda, portanto, venha a ressurgir dentro das práticas clínicas, para além do se inclinar sobre nossos ‘’pacientes pacientes”, é a de uma velha e antiga senhora que possa aprender a se auto envelhecer.


Como um dos mais raros vinhos em uma adega de difícil acesso que se produza a verdade em um vinho reconstituinte, um paciente resultado da solução de alguns dilemas bioéticos e éticos. Meu desejo e implicação com esta debatedora da Dona Morte, embora mais afastado do que gostaria, mais próximo de uma aposentadoria, é que seu diálogo se faça com máximo respeito. Por exemplo, o mesmo empenho para salvar uma vida deverá ser, bioéticamente, o da autonomia e desejo de um sujeito de sua morte digna e sem distanásia.


Aos novos médicos desejo velhas leituras de sacerdotes oraculares. E como um convicto freudiano diria a todos e todas: Conheçam-se a si mesmos. E quando os jovens postulantes a um novo exercício de um ato médico se derem conta estarão contagiados pelos velhos juramentos e as velhas filosofias. Tornar-se médico de si, com um esforço árduo e continuo de autoconhecimento crítico. E um infinito aprendizado sobre o Outro e os Outros.

Esta tarefa não é fácil e nem traz promessa de sucesso. É como a tarefa de Sísifo. Levamos nossas pedras-verdade até o alto do monte, e, castigados pelos nossos deslizes iatrogênicos, as vemos despencando morro abaixo. E retomamos suados e exaustos a sua reposição até o alto de nossas pretensões e orgulhos médicos. Aí se poderiam curar as feridas dos jovens e seu furor de cura: tornar-se também humildes e sábios.

Ainda restará aprenderem o sentido de Arte no processo de reflexão sobre a mudança de paradigmas no campo biomédico. É preciso reconhecer alguns limites e não aspirar uma vitória total sobre a Morte. Aprender a aprender com as nossas mortais carcaças, não caindo nos fisicalismos e materialismos exagerados sobre o que é/somos como seres humanos.

Conheçam por exemplo a história de Asclepius, que segundo o mito, era um mortal, filho de Apolo. Ao ser educado por um centauro, Quíron, como os mentores de residentes, aprendeu tudo sobre a arte de remediar e aliviar dores e doenças. 
Mas, historicamente, os discípulos sempre superam seus mestres. Asclepius, como Prometeu, desafiou os deuses e Zeus. Ao se tornar um benfeitor universal com sua arte que até ressuscitou mortos, teve morte por um raio de Zeus. Um médico nunca deve aspirar a ser um Deus.

Portanto, aprendendo todos os dias com nossas limitações humanas, não acreditando na força de nossas asas de cera como Ícaro, não nos pretendendo dar todos os fios de Ariadne para a saída de labirínticos diagnósticos, não nos tornando onipotentes e iatrogênicos na fúria de curar a tudo e a todos, não nos tornando semideuses oniscientes que abarcam todo o conhecimento enciclopédico das medicinas, não nos esquecendo de nossa mortal e frágil humanidade, quem sabe nos tornaremos apenas e simplesmente MÉDICOS. Ou melhor: terapeutas.

E que a vetusta, anciã e sábia, Senhora Medicina continue seu interminável e inadiável meta diálogo com a Dona Morte. E, com sabedoria e humildade, meus colegas, inclusive minha filha, saibam do seu envelhecimento e respeitem todas as outras atividades ligadas à saúde humana. Trabalham todos na mesma oficina, embora com ofícios diferenciados, também podem servir de mensageiros ou não desta Dona que não larga nossos pés.

Curta, breve e, às vezes, intensa é a VIDA. O que se pereniza é apenas a Arte do viver e do morrer.

Medicina, derivada do latim Ars medicina, significa a arte da cura. Desejo, enfim, que os novos médicos se tornem mais "arteiros" e bons de escuta do que "artificiais" e frios como os protocolos e os manuais que dizem quem está ou não com a tal da saúde/doença. E suas/nossas feridas narcísicas, quem sabe, talvez possam ser curadas.

Copyright jorgemarciopereiradeandrade ad infinitum - com todos direitos reservados - (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet e outros meios de comunicação de massa)



Para informações pela INTERNET:



Saúde receberá R$ 994 bilhões em investimentos até 2014

Indicações para leitura:
Mediar, medicar, remediar – Aspectos da terapêutica na medicina moderna, Jane Dutra Sayd, Editora UERJ, Rio de Janeiro, RJ, 1998.

LEIA(M) TAMBÉM NO BLOG:

SAÚDE MENTAL E DIREITOS HUMANOS COMO DESAFIO ÉTICO PARA A CIDADANIA https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2010/06/saude-mental-e-direitos-humanos-como.html


A SAÚDE E O SENTIDO PARA A VIDA II

AS SELEÇÕES: OS ESTÁDIOS, OS PARADIGMAS E UM NOVO GAME

O APRENDIZADO DA DOR - o alívio da dor é um direito humano?https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2010/09/imagem-publicada-foto-de-uma-mulher.html

SAÚDE, BIOÉTICA E POLÍTICA - Vendem-se corpos, compram-se consciências? 

9 comentários:

  1. Adoro ler seus textos. Aprendo. Reflito. E mais, me sinto ainda mais incomodada por mudanças que devem comecar por minha própria pessoa. Muito agradecida!
    Eneida

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    1. Querida e inesquecível Eneida
      agradeço seus elogios, mas principalmente pelo que sei que faz pela educação de crianças hospitalizadas todos os dias, há muitos anos... e mais ainda quando o que escrevo lhe provoca algumas reflexões e possíveis mudanças... continue lendo e difundindo estes textos do blog, volte sempre e receba meu doceafetuosoabraçoamigo jorge marcio

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  2. Querido amigo,
    hermano del alma.
    Su texto es una critica, un suspiro de esperanza, un alegato, una lagrima, un sueno, un deseo, un pedido, una suplica, una oración...
    Muchas veces te sentí como una persona que lleva una carga muy pesada. La consciencia es una carga de la mas pesadas, te admiro
    por que no se resiste en llevarla.
    Hombre valiente, padre amoroso, terapeuta profundo, amigo mi hermano del alma, a ti confíeme e delegue mis parientes y clientes.
    Que mas te puedo decir sobre mi respeto por ti y por tu postura como hombre y medico.
    El amor que te confieso es del tipo mas allá del terrenal, es la búsqueda del entendimiento del sentido del existir, del interlocutor
    valido de cuestiones del ser uno, con su espejo y el testigo confiable.
    Es mi testigo confiable, amigo mi hermano
    Te doy mi confianza y me suporte para lo necesites.Te doy mi amistad, mi consuelo, mi alegría, mi casa, mis oraciones...
    Y mas....
    Estoy a su disposición!

    Carinhos Flavia

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  3. Adoro ler seus textos,reflexoes que faz ao nosso redor! Sempre contribue para uma otima leitura e cultura de todos. Um forte abraco. Carmen Dinamarco

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  4. Interessante! e quando coloca a frase: “UM MÉDICO NÃO SERÁ VERDADEIRAMENTE O QUE DESEJA SER ENQUANTO NÃO FOR O QUE PROPÔS ATINGIR: UM SER HUMANO...”. Eu diria que um EDUCADOR não será...

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  5. Parabéns pelo texto Jorge! Acho que hj o que mais falta nos médicos é aquela coisa chamada amizade. Daí nasce a confiança do paciente e as doenças são desvendadas c maior rapidez, mas infelizmente, tendo q trabalhar em vários locais isto se perdeu no tempo.

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  6. Parabéns pelo texto Jorge! Acho que hj o que mais falta nos médicos é aquela coisa chamada amizade. Daí nasce a confiança do paciente e as doenças são desvendadas c maior rapidez, mas infelizmente, tendo q trabalhar em vários locais isto se perdeu no tempo.

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  7. Lu Morales
    Belíssimo texto, só quem conhece e se compadece, consegue tamanha profundidade. Mais um texto que só pode ter sido retirado das víceras e soprado da alma.

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  8. Parabéns amigo, você consegue expressar muito bem o que muitos pacientes sentem, a falta de vinculo entre médico e paciente, viramos numeros a merce de laboratorios, o capitalismo não cura mata.Ainda bem que ainda existe alguns médicos poetas e filosofos, como você que remam contra essa mare insana do lucro com a saúde das pessoas.Um grande abraço obrigsdo pela mensagem.

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