quinta-feira, 26 de maio de 2011

O MELHOR É A JAULA OU O GALINHEIRO? Deficientes intelectuais e o seu encarceramento


imagem publicada - a foto publicada no Jornal PB Agora, de um homem dentro de um galinheiro, onde foi mantido isolado, por sua família, ele foi diagnósticado, aos 35 anos como um ''deficiente mental'' em um Caps (Centro de Atenção Psicossocial).
Continuo aprendendo com a dor. Melhor ainda, aprendendo com a minha e a dos outros. Hoje, em uma manhã ensolarada, após minha fisioterapia, onde a dor cede um pouco e começo a tentar a saída desse aprisionamento corporal, ao buscar notícias sobre pessoas com deficiência me vi diante da dor maior de um deficiente intelectual brasileiro.

Hoje, 26 de maio de 2011, li esta notícia: "Deficiente que vivia em galinheiro é encaminhado à Funad, em João Pessoa", abaixo descrita, sinto, tristemente, a manutenção de métodos cruentos ainda estão na vida de pessoas com deficiência. O pior é que nas jaulas ou nos galinheiros serão mantidos os que ''por serem retardados'', tanto em direitos como em suas capacidades de autodefesa, podem ser motivo de isolamento social. Nossas sociedades, do campo até as metrópoles, os isolam há séculos. 


As formas de aprisionamento dos chamados deficientes "mentais", a partir de uma participação ativa da Medicina, foram sendo naturalizadas e banalizadas. Para o bem da sociedade, com seus princípios eugênicos sutilmente disfarçados, o melhor era e é afastá-los, tanto em casa com no espaço público, do convívio social. 

Eles são um risco de periculosidade? ou geram, há séculos, a necessidade de um "cuidado", chamado de internação, nascido no século XIX, antecipado pela biopolítica no século XVIII, onde as deformidades morais, físicas ou mentais precisavam da sua hospitalização?

A concepção da deficiência, em paralelo à da doença mental, veio constituir um paradoxo: o suposto amor ''caridoso'' por elas aumenta na mesma proporção do distanciamento desses objetos. Talvez seja melhor chamá-los de ''abjetos''. A exclusão dos desviantes da norma construiu os alicerces do que, em pleno século XXI, demonstra a permanência dos estigmas e estereótipos para estes sujeitos.

O Roberto, da Paraíba, hoje ''salvo'' do galinheiro, após 35 anos é tão ''limitado'', pela privação e pelos maus tratos, que primeiro o levam para cuidados psiquiátricos. Em seguida temos a concretização de um novo espaço para sua vida: a reabilitação que nunca recebeu. O que indago, hoje, é se a ele também serão destinados os "cuidados", para além do modelo biomédico, com seus direitos humanos garantidos pela Convenção?

Minha interrogação é, com a certeza de uma resposta institucional, de que há talvez um lugar ou espaço melhor para os milhares de Robertos, Sebastianas, Zaqueus, Ruis (em Portugal), Brandons (na Holanda) e outros, mundo a fora, que ainda não tiveram seus nomes publicados na mídia. Eles e elas experimentaram o resgate dos cárceres familiares, porém passaram depois para novos modos de tratamento determinados pela Justiça. Por isso tenho de insistir na pergunta: o melhor é a jaula ou o galinheiro?


OU, O MELHOR É A DEMOLIÇÃO DE NOSSOS PRECONCEITOS ENRAIZADOS NO MAIS PROFUNDO DOS NOSSOS CORPOS E MENTES, INDIVIDUAIS E COLETIVOS, QUE SE ALIMENTARAM E SE ALIMENTAM DOS PRECONCEITOS RACISTAS, EUGENISTAS E ''DEFICIENTEFÓBICOS''?

Aliás, todas as fobias se alimentam de movimentos contra-fóbicos. Todos os autoritários, fundamentalistas ou extremistas, políticos ou religiosos, gostam dessa posição e desse Gozo. Há, para além do falso amor pelas anormalidades, um olhar piedoso ou religioso que diz que estamos protegendo aqueles que nos pertubam com suas diferenças e outras formas de ser e existir. Isolar os ''monstros'', que também nos habitam, pode ser uma das raízes de nossos atuais modos de ser: xenófobos, homofóbicos, racistas, e, infelizmente ainda, eugenistas.

Espero que a nossa Presidenta Dilma compreenda a necessidade de outro modo de lidar com os preconceitos. Hoje ficou ,também, claro que, diante das pressões fundamentalistas e religiosas, podemos continuar mantendo o bullying com pessoas homoeróticas, com a cassação do kit anti-homofobia.


Lembra uma pesquisa feita pela Fundação Perseu Abramo que constatou: "A escolaridade é um dos fatores que mais influenciam o nível de preconceito da população em relação a homossexuais: quanto mais anos de estudo, maior é a aceitação do indivíduo em relação à diversidade sexual...". A educação inclusiva é, então, a solução?

Aos amigos da Funad envio meu desejo de que possamos compreender o lugar que o Roberto Félix de Meireles ocupa, historicamente, na mudança que temos de empreender na construção e consolidação do que chamamos de uma Sociedade Inclusiva. Temos de levar esta "inclusão sem preconceitos, respeitando as diferenças e singularidades" dos Robertos "deficientes" para todos os brejos, sertões, confins e Planaltos. Talvez, primeiramente, ao Planalto central, lá em Brasília...

copyright jorgemarciopereiradeandrade 2011-2020 (favor citar a fonte em republicações livres na Internet e outros meios de comunicação de massa)



Deficiente que vivia em galinheiro é encaminhado à Funad em JP



"O deficiente mental Roberto Félix de Meireles, de 35 anos, que era mantido trancado em um galinheiro pela família na zona Rural do município de Pilõezinhos, no Brejo paraibano, recebeu pela primeira vez em anos atendimento especializado no Centro de Atendimento Psicossocial - Caps do município.
De acordo com informações do Portal Correio, o paciente teve a medicação modificada e foi encaminhado para ser atendido na Fundação de Apoio a pessoa com Deficiência - Funad em João Pessoa.
A família vem recebendo o apoio da Prefeitura de Pilõezinhos que irá providenciar o transporte do paciente para a Capital.
O médico que atendeu Roberto disse que a família o estava medicando por conta própria e diagnosticou uma limitação severa no que diz respeito à comunicação e ao relacionamento social".
http://www.pbagora.com.br/conteudo.php?id=20110525123424&cat=paraiba&keys=deficiente-vivia-galinheiro-encaminhado-funad-jp


Escolaridade impacta nível de preconceito contra homossexual - http://www.msnoticias.com.br/?p=ler&id=65154

LEIA TAMBÉM NO BLOG:
Uma Violência Cotidiana e Banal? A Violação de Direitos Humanos de Crianças com Deficiência - https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2013/06/uma-violencia-cotidiana-violacao-de.html

Deficientes Intelectuais: encarcerar é a solução final? - https://infoativodefnet.blogspot.com/2011/01/deficientes-intelectuais-encarcerar-e.html

Inclusão/Exclusão - duas faces da mesma moeda deficitária? - https://infoativodefnet.blogspot.com/2011/02/inclusaoexclusao-duas-faces-da-mesma.html

Vulneração e Mídia no cotidiano da deficiências - https://infoativodefnet.blogspot.com/2011/04/vulneracao-e-midia-no-cotidiano-das.html


O Surdo, o Cego e o Elefante Branco -

 https://infoativodefnet.blogspot.com/2011/05/o-surdo-o-cego-e-o-elefante-branco.html

segunda-feira, 23 de maio de 2011

O SURDO, O CEGO E O ELEFANTE BRANCO


Imagem publicada - um elefante branco, ou seja um elefante que está pintado como um tigre, que tem uma máscara de um tigre, mas é um elefante, transvestido e com faixas pretas de tigre pintadas, ou seja o que nós chamamos de uma situação que parece mas não é... um pouco parecido com o momento do movimento político das pessoas com deficiência na defesa do direito à Educação Inclusiva... Estão querendo, como no reino de Sião (hoje Tailãndia), nos entregar um ''elefante branco'', estatutariamente construído, que pode nos levar até a "falência" de direitos conquistados, pois: ..."esses animais necessitavam de toda uma equipe para lhes prestar cuidados e, sendo sagrados, não podiam ser postos para trabalhar, de modo que, se tornavam uma pesada carga financeira, capaz de levar à ruína qualquer um que não fosse muito rico.". O elefante segura, com a tromba, uma placa com um rugido "Roar", completando a sua fantasia de tigre.

Um dia um homem cego encontrou-se com um velho amigo seu. Este era surdo. Ambos viviam em um planeta, como aquele do Pequeno Príncipe. Um microplaneta solitário, quase solidário. Lá as autoridades legais tinham estabelecido uma série de leis e de discursos que os faziam se sentirem "quase iguais". 

Porém, pela chamada ''natureza humana'', muito mais para a discórdia do que para a concórdia, eles começaram a discutir sobre seus modos de ''ver'' e ''escutar'' o mundo. Assim como o modo de interpretar essas leis e discursos. Os dois tinham suas razões. Tinham também muito mais é emoções, subjetividades e afetos misturados em suas propostas de discordância. Eles eram e são diferentes.


Ambos marcavam sempre um encontro para trocarem seus ''insultos'' midiatizáveis. Ambos também já trocaram, no passado, muitas gentilezas. O que os afastava, hoje, era que o cego defendia, ardorosamente uma nova constituição legal, chamada de Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Ela foi promulgada em um outro espaço sideral. Em uma reunião dos diferentes microplanetas humanos, também com muitas discordâncias. E, após muitas lutas conseguiu-se torná-la um decreto, uma emenda constitucional do nosso novo século.

Ambos, cegos e surdos, estavam agora defendendo aparentes polos opostos em suas diferenças. Nos é comum, quando o Outro, o diferente de mim, me questiona ou interpela que eu me faça sempre como divergência, principalmente se não o ''vejo'' ou o ''escuto". Os nossos paradigmas, como perpectivas dominantes ou hegemônicas, sobre o que é a verdade da autoridade podem se naturalizar. Podemos negar as diferenças e singularidades desse alter ego.

Um tal de Saussare disse que a diferença é fundamentada na linguagem. E, como o cego ''dizia que'' não via o que Outro via, enquanto o surdo "dizia", em Libras que não escutava o que o cego captava, lá iam os dois alimentando sua pendenga. Caminhando na mesma estrada, pisando nas mesmas pedras no caminho, tendo os mesmos obstáculos que exigem a cooperação de ambos. Porém, entretanto, todavia, contudo "diziam" que no riacho ou na encruzilhada, que chamamos de Inclusão, que a sua margem ou seta continha a perfeição. Ambos teimavam ter a verdadeira travessia ou ou verdadeiro caminho.

Um dia, quando ambos estavam, como disse Empedócles, antes de pular no vulcão: em plena discórdia. Aguerridos e prestes a se engalfinhar. Eis que surge, oportunamente, um tal de representante político do Planalto Central para complicar suas vidas. Estavam quase conseguindo ver e enxergar suas diferenças.


O tal representante popular lhes trouxe um complicador. Ele trazia, preso à uma corrente, um Elefante Branco. E, aos dois duelistas, insistia em apresentá-lo como a possível concórdia para todos e todas, cegos e cegas, surdos e surdas. Universalmente e indiscriminadamente deficientes. Segundo suas falácias e falas o animal paquidérmico seria a solução de seus debates excludentes.


Aos dois, que insistiam que havia uma única maneira de educar seus filhos cegos ou surdos, ou seja, de forma totalmente protegida e especial, o representante trouxe uma enorme, gigantesca e tangível questão/solução. Como apresentava, por seu carisma, um discurso novo sobre diversidade, identidade e diferença, o representante planáltico os convenceu a fazerem uma trégua. 

Enquanto não conseguissem descrever com minúncias e detalhes toda a extensão do paquiderme, assim como descrever com fidedignidade todas as formas de ruídos por ele emitidos, não poderiam ter a resposta da sua disputada busca pela afirmação de seus singulares direitos.


E o cego, imbuido da suas ferramentas assistivas e ajudas técnicas, passou a mesuração e esquadrinhamento de toda a pele do elefante. Ao mesmo tempo que o surdo, após um implante coclear e usando a Libras tentava se comunicar com o animal. Ambos, mais uma vez, caminharam muito próximos de uma solução. O que os afastou novamente teria sido o peso do elefante? a sua cor não visível para o cego? o som ensurdecedor de sua tromba para o surdo? ou apenas a dimensão minúscula dos seus pelos e seu pequeno rabo? ou as politicagens do astuto representante planáltico, de olhos e orelhas em pé apenas nos dois votos?

O que me leva a escrever essa ''estória'' é a possibilidade de um retrocesso do que levou anos para ser conquistado. Quando soubermos todas as respostas sobre o Elefante Branco da macropolítica, se nos ''acordamos'' (do latim cordis=coração), ou seja nos colocarmos mais nos afetos comuns do que nas mentes egolátricas e vaidosas, talvez possa ser muito tarde para entender nossa história. Mais ainda, entender como nos enredamos nos descaminhos das supostas identidades engessadas. Eu sou cego, você é surdo, mas nos denominam a ambos como ''deficientes''.

Minha filha me fez reler, hoje, um conto do Congo, onde um sapo e um macaco se encontram na amizade, mas ao frequentarem os diferentes espaços familiares de cada um passam pela desigualdade de hábitos, culturas e modos de ser. Após um desencontro e risco para sua amizade descobrem que ''são diferentes'', quando um sábio macaco velho lhes mostra quão mesquinhos e egoístas tinha sido os pais de cada um. Para um trabalho escolar ela retirou do conto a seguinte máxima: "O mundo é povoado de pessoas discordantes. É a diferença entre elas que as torna interessantes, quem aceita e compreende isso enriquece, quem recusa, coitado, se empobrece". Eu diria: - ganha de presente um Elefante Branco.

Há, para mim em minha convicção momentânea, um quê de sabedoria nas histórias ancestrais. Elas tem, como as histórias dos dervixes, uma série de metáforas embutidas ou explícitas sobre nossa condição humana. E, se fosse possível sintetizar o que lhes quero provocar, diria a máxima popular: "cada macado no seu galho", enquanto "as raposas políticas continuam fazendo a festa no galinheiro", e, nós, chamados de incapazes ou incompetentes diante do Elefante Branco, não enxergando/auscultando o engodo da disputa sem saída sobre inclusão escolar, acabaremos ''engolindo mais um sapo''...

Por mais que sejam nobres nossas causas, em defesa de nossas culturas, ou posições ideológicas, nossos afetos nos impedem de "ver, escutar, sentir, dimensionar, tocar, descobrir...".Temos de ir além, refletindo que a identidade e a diferença são processos de produção social, e, como tal, são e serão processos que envolvem relações de poder. 

Aos dois querelantes imaginários, ou melhor às radicalidades atuais sobre o processo de inclusão escolar, agora em debate, solicito a inclusão do verbo POLITIZAR, antes mesmo do verbo militar. Já dizia o querido Guattari, sobre a revolução molecular: "militar é agir..." micropoliticamente, e não "grupelhizar". 

Vamos aprender, multiculturalmente, a linguagem diferente que permitiu a Gennet de Corcuera, em sua surdocegueira, chegar até a Universidade... e nesse devir mulher, negra, etíope e ''nem lá, nem cá'', nem surda e nem cega, muito pelo contrário, aprender outra língua, o espanhol, que não é o dialeto/diferença de seu povo original, e,transculturalmente, superar as discriminações e barreiras a partir do afeto que recebeu e retribuiu, agora incluirá... e incluiremos, diferentemente.


copyright jorgemarciopereiradeandrade (favor citar o autor e as fontes em republicação livre pela Internet ou outros meios de comunicação de massa)

Conto do Congo - Amigos para a vida inteira - pág.12 - in Pequenos Contos para Crescer - Mario Urbanet & Albena Ivanovitch-Lair, Ed. Companhia das Letrinhas, São Paulo,SP, 2009.

Imagens de elefantes que ''não são elefantes'' - http://triviaveg.blogspot.com/2008/02/cad-o-elefante.html

Lendas e curiosidades que envolvem o maior animal da Terra -
http://www.seuguara.com.br/2010/03/lenda-e-as-curiosidades-que-envolvem-o.html

Sobre Gennet de Corcuera -
http://www.elpais.com/articulo/sociedad/Alguna/gente/cree/condicion/han/puesto/facil/elpporsoc/20060929elpepisoc_6/Tes

Uma Luz no Fim do Livro - meu texto em:
http://www.feneis.com.br/page/noticias_detalhe.asp?cod=228

Leia também no blog:
Para além do Preconceito: a Convenção, Cidadania e Dignidade
 http://infoativodefnet.blogspot.com.br/2010/12/para-alem-do-preconceito-convencao.html
A Inclusão Escolar ainda usa fraldas? -
http://infoativodefnet.blogspot.com/2010/07/inclusao-escolar-ainda-usa-fraldas.html
Direitos Humanos como questão para a Educação Inclusiva -
http://infoativodefnet.blogspot.com/2010/05/imagem-publicada-uma-foto-de-tres.html
Inclusão, Racismo e Diferença -
http://infoativodefnet.blogspot.com/2011/05/inclusao-racismo-e-diferenca.html
Por uma Mídia que se preocupe com a sua língua -
http://infoativodefnet.blogspot.com/2009/12/por-uma-midia-que-se-preocupe-com-sua.html
Robôs, Política e Deficiência
 http://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/07/robos-politica-e-deficiencia.html

quarta-feira, 18 de maio de 2011

ALÉM DOS MANICÔMIOS - 18 de maio/ Dia Nacional de Luta Antimanicomial


Imagem Publicada - uma foto colorida, com uma jovem haitiana, ela olha para a câmera, com sua mão esquerda sendo levada à boca, me parecendo um silenciamento imposto, que utilizo para lembrar as milhares de crianças e adolescentes que foram e estão esquecidas no Haiti, pós-terremoto e cólera, que, com certeza, estão precisando de muitos cuidados, inclusive de Saúde Mental, mas certamente não precisam de maiores exclusões ou marginalizações do que o já vivido em suas peles negras durante os tantos anos de isolamento ou miséria a que seu povo foi submetido. Talvez ela se pareça com a personagem B.H do meu texto abaixo, ainda quando era jovem e sonhava com a sua liberdade. (foto capturada na Internet)

O dia 18 de maio precisa ser, também, considerado um data para não esquecer. Além de ser um dia para combater as sutis tentativas de retomada do modelo nosocomial, principalmente quando as mídias insufladas por crimes cometidos por ''loucos'', ''maníacos'' ou '' paranóicos'' como o jovem Wellington aparecem ou explodem pedindo o retrocesso histórico. 


Mas o que não podemos esquecer? Não podemos esquecer a maioria dos que ainda estão sob tratamentos psiquiátricos segregantes, os que permanecem na Casa dos Mortos, os que compõem um imensa maioria dos que necessitam de cuidados psiquiátricos por vivenciarem os mesmos campos de exclusão que geraram um dos maiores manicômios do Brasil: o Hospital do Juqueri, em Franco da Rocha.

Foi lá que, há alguns anos atrás, como preceptor de um grupo de jovens residentes em psiquiatria, em visitação à moda de Freinet, tive contato com um dos mais importantes documentos de minha carreira. Eu vi o documento de internação da primeira paciente deste manicômio. Em 08 de novembro de 1885 era internada, no Hospicio de Juquery, São Paulo, uma mulher, preta, denominada B.H, solteira, cozinheira, católica, aos 50(?) anos, com nacionalidade Brazil(eira), e em cujo registro está escrito que a sua ''revisão'' foi realizada em janeiro de 1910. 

Esta temporalidade confirmada, na virada de século, com 25 anos sem nenhuma forma de cuidado ou real diagnóstico, lavrou o testemunho de seu sofrimento ou sua exclusão. Resta dizer que ela faleceu por lá mesmo, provavelmente não muitos anos depois deste tempo de reclusão. Porém em minha memória não deixarei nunca sua história desaparecer. E aos que me lêem solicito sua memorização crítica e desalienante.

Esta mulher negra fazia parte, à época de um grupo de cidadãos e cidadãs que precisavam sair do caminho do progresso paulistano. Eram os que mais incomodavam ao Império e sua biopolítica de higienização. Este grupo social de excluídos passou a ser um ''fardo social'', bem como um ''perigo'' também para a República. Eram os que foram lançados na marginalidade, nos cortiços e nas nova senzalas, de um espaço urbano. 

Cidades em expansão, como São Paulo, que tentavam conciliar ex-escravos, migrantes e outros habitantes de um país neorepublicano. E, assim nasce em 1885 (não em 1895 como está na Wikipédia) o Asilo de Alienados do Juquery, no mesmo tempo em que a negra B.H entra por seus portões para nunca mais sair.

A Psiquiatria nosocomial e asilar, é um dinossauro, nasceu no Brasil com um decreto imperial em 1841. O imperador Pedro II, pressionado pelos que criticavam o “abandono” em que se encontravam os alienados, incluindo-se aí os proxenetas, "débeis mentais e portadores de taras", assim chamados os loucos da época, determinou a criação de um hospício voltado ao tratamento destes alienados.

Este fato coincidirá com o surgimento da psiquiatria no país. Junto com ela um movimento de higienização social, com seus ranços históricos ligados à eugenia, quando: "os negros e os leprosos foram identificados como portadores de perigo em potencial, e foi providenciado o seu afastamento das principais vias públicas..."

A inauguração de dos primeiros hospícios brasileiros, só ocorrerá onze anos depois do decreto imperial. Institucionalizou-se a segregação, o hospital foi o melhor território panóptico para o isolamento biopolítico destas diferentes formas de excluídos e despossuídos. 

Os manicômios e as prisões andaram, então de braços dados, circulando à caça dos desviantes, nas vielas, nos bairros, favelas, entre os artistas, os boêmios, os proletários e os alcoolistas. Os tempos imperiais lusitano-brasileiros prenunciavam o que hoje vivemos com o novo modelo de Império hipercapitalista, só que agora aperfeiçoamos as técnicas em Guantanamo ou outros ''gulags'' pós-modernistas.

Portanto, mesmo com todas as críticas que se façam à Reforma Psiquiátrica, aos equipamentos substitutivos, que vão muito além dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), ou às políticas para resolutividade dos impasses em Alcóol e outras drogas, temos de reafirmar nossos compromissos com um mudança radical de paradigmas. A história do higienistas, dos fisicalistas e dos chamados organicistas atravessam e transversalizam a Psiquiatria brasileira. E, apesar dos muitos avanços científicos, como os gerados pelas Neurociências e novas tecnologias, muitos ainda se prendem a um modelo biomédico que só vê corpos-máquinas, quiça ainda apenas Vidas Nuas, no cuidado exigido pelos transtornos mentais.

Quando foi que aprendi a justificativa para a exclusão de B. H? Aprendi, há muitos anos atrás, na escola ''primária'' que os nossos (meus) ancestrais africanos eram trazidos para o Brasil, nos navios negreiros, para ''substituir a mão de obra indolente dos indígenas''. Aprendia, nas gravuras de Rugendas, que eles mereciam os castigos, com representações de negros amarrados e com as costas riscadas pelo açoite. Eles eram os ''negros fugitivos''. 

Este deveria ser o possível diagnóstico da cozinheira B. H, uma Tia Anastácia, que por algum motivo deve ter sido ''incluída'' entre os que deviam ser afastados do convívio social. Entravam em um trem, como aquele dos nazistas, e desembarcavam na estação de ferro do Juquery.

Será que podemos afirmar que B. H., ou seja as muitas mulheres, negras, pobres (hoje temos 10 milhões delas incluídas na pobreza extrema=miséria, dos 16 milhões recentemente recenseados), ainda estão sendo hospitalizadas, com todas as prerrogativas cientifico-psiquiátricas obedecidas, por estarem delirantes do desejo de um outro modo de ser, um outro de existir, um outra condição de viver e sobreviver em nosso tão progressivo e cruel mundo globalizado?

Em matéria recente sobre a presença do desemprego entre os negros e pardos, em afirmação da OIT (Organização Internacional do Trabalho), constata-se a permanência das desigualdades sociais como gênese das exclusões. Diz a matéria: "A OIT indica que apesar dos avanços na legislação antidiscriminatória, as crises econômica e social estão na origem da rejeição contra vários grupos sociais e trabalhadores migrantes"...

E, lamentavelmente, os dados recentes do IBGE confirmarão . E, possívelmente, este será, trans-historicamente, o motivo para alguns afirmarem a necessidade de velhas técnicas de controle social e biopolítico, trazendo a cena, novamente, os velhos modelos e tecnologias de cuidado dos que enlouquecem ou tornam-se ''pacientes psiquiátricos''.

Precisaremos, em face deste revival e retomada de modelos hospitalocêntricos, lembrar a persistência de violências e os atentados aos Direitos Humanos de cidadãos e cidadãs ainda em hospitalizações forçadas e prolongadas. Lembrar e não deixar esquecer, que muitas pessoas com deficiências intelectuais (ainda chamados de ''retardados'' mentais pela psiquiatria) ainda são rotulados de 'doentes mentais', tornando-os passíveis do isolamento e do encarceramento judicializado.

Lembrar e continuar combatendo, bioéticamente, a negação da autonomia e dos direitos de quem é, sem respeito à Lei 10.216, mantido internado em hospícios e manicômios. Lembrar as medidas simplificadores, com apoio da Justiça e da Educação, com a medicalização e o internamento para jovens adolescentes em situação de vulnerabilidade social.

Ir além dos manicômios é caminhar mais ainda na sua desinstitucionalização, para além da deshospitalização, pois corremos o risco da substituição destes por "minicômios" com novas tecnologias engessadas pela total falta de recursos. Aos novos equipamentos substitutivos também cabe uma mudança paradigmática urgente, com uma permanente avaliação/análise institucional.

E, além dos muros visíveis dos manicômios, continuar a demolição de muros sutis e invisibilizados e alicerçados pelos processos de judicialização dos sofrimentos psíquicos graves, tal qual as dependências químicas, que justificam até a retomada "científica" das lobotomias ou das velhas práticas manicomiais, em especial nas Casas dos Mortos (manicômios judiciários).

Teremos, portanto, e temos o dever de reavivar, constantemente, nossas MEMÓRIAS adormecidas, atingindo o seu cerne que é a fomentação de preconceitos contra nossa própria e falível humanidade, nossa indiscutível existência na DIFERENÇA. Parodiando podemos dizer que NENHUM HOMEM PENDE INTEIRAMENTE PARA A "NORMALIDADE" e seus discursos competentes, ASSIM COMO NÃO PENDEMOS PARA OS ANJOS..., principalmente os incomodados com as Loucuras e a Diferenças, dos outros. A Saúde Mental também merece uma Comissão da Verdade...

Por 126 anos esquecemos a cozinheira no Juquery... Por quanto tempo mais devemos nos esquecer dos desviantes enlouquecidos, e, ativamente providenciar uma nova Nau dos Insensatos, agora com aprimoramentos panópticos da Sociedade do Controle e do Espetáculo?


copyright jorgemarciopereiradeandrade 2011/2012 (favor citar o Autor e as fontes em republicação livre pela Internet e outros meios de comunicação de massa)

Referências para o texto:
HOSPITAL JUQUERY

18 de Maio - Dia Nacional de Luta Antimanicomial


Notícias sobre avanços em Neurociências, ao mesmo tempo da manutenção de antigos modos de Exclusão-
Criado computador para perceber melhor esquizofrenia - Um grupo de investigadores da Universidade do Texas, EUA, criou um modelo virtual de computador para compreender melhor a esquizofrenia nos pacientes humanos.

Taxa de desemprego no Brasil é maior entre negros e pardos, alerta OIT - Agência da ONU aponta novas tendências discriminatórias baseadas em estilos de vida -http://correiodobrasil.com.br/taxa-de-desemprego-no-brasil-e-maior-entre-negros-e-pardos-alerta-oit/240540/

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sexta-feira, 13 de maio de 2011

INCLUSÃO, RACISMO E DIFERENÇA


imagem publicada - um cartaz da Unicef que é parte da campanha contra o Racismo nas Escolas. Ele traz a imagem de uma jovem menina negra, tendo escrito ao lado: "Quézia Silva, aos 29 anos, advogada e o futuro todo pela frente", ela tem os cabelos à moda rastafari, bem negros e um olhar que confirma a frase abaixo: "Em um mundo de diferenças enxergue a igualdade", e solicita o acesso e participação desta campanha em: www.unicef.org.br.


"Era uma vez...", na antiga Iugoslávia, entre tiros reais e dentro da Terra de Ninguém de uma guerra entre sérvios e croatas estabeleceu-se uma comunicação, quase surreal, via rádio, de dentro destas trincheiras. O diálogo, segundo artigo de Kathryn Woodward (sobre aspectos téoricos e conceituais sobre Identidade e Diferença) são um exemplo magnífico de nossas construções de identidade sustentadas pela exclusão do Outro. Nessas conversas de trincheira ficava claro, no meio da escuridão do conflito étnico-racial, que todos estavam perdidos na mesma escuridão. 


Assim falavam os que guerreavam pertencentes a uma pequena cidade, segundo a autora, sobre uma história do radialista Michael Ignatieff: "... Todos mundo conhece todo mundo, eles foram, todos, à escola juntos; antes da guerra trabalhavam na mesma oficina; namoravam as mesmas garotas. Toda a noite, eles se comunicam pelo rádio "faixa do cidadão" e trocam insultos - tratando-se por seus respectivos nomes. Depois saem dali para tentar se matar uns aos outros...". O radialista indaga, por não conseguir distinguir entre os sérvios dos croatas: "O que faz vocês pensarem que são diferentes?"

Eis a pergunta que poderíamos ter feito ao jovem Welligton, após sua triste matança na escola onde estudou, caso ele tivesse sobrevivido à sua guerra particular. Mas também é uma pergunta indispensável para que nos façamos agora, nesse momento, quando comemoramos uma histórica data. O que fez pensarem, aos colonialistas, que havia seres que não eram seres. Por essa razão ocidental e eurocêntrica eles foram tratados com ''diferentes'', e por uma longa jornada na História, escravizados, açoitados, torturados e mortos. 

O que fez, eugenicamente, pensar que os negros eram de uma outra espécie?. Uma categoria sub-humana e, portanto, uma sub-raça que poderiam colocar no tronco, no pelourinho e na senzala. E depois nos "libertarem" pela metade com uma alforria comprada.

Imaginemos uma outra trans-história, ou melhor "estória", onde os habitantes de uma pequena vila chamada Palmares, situada em um imaginário estado separatista de Saint Paul, na fronteira com Higienópolis. Lá, uma guerra pela diferença social esportista e espartana, faz com que os territorialistas palmeirenses estejam em conflito com os quilombolas corintios. Neste diálogo real vivenciado por Michael, lá na Iugoslávia, substituimos os personagens reais da Sérvia e da Croácia por nossos concidadãos armados e intolerantes. Eles e elas são habitantes comuns e não skinheads radicais.

Teremos, então, o seguinte diálogo, ou seja um metadiálogo: "O soldado coríntio (croata) com o qual estou falando pega um maço de cigarros, feitos em palha e fumo de rolo. '-Vê isto? São cigarros verdes (sérvios) . Do outro lado da trincheira e do estádio, eles fumam cigarros palmeirenses". Ignatieff, agora um brasilguaio chamado Marciano, sentindo-se um ET, indagará: " Mas não são, ambos, cigarros?". 'Vocês estrangeiros e intelectuais não entendem nada' - o soldado coríntio dá os ombros e começa a limpar o seu rifle AR 15 (versão latina da metralhadora Zostoco). 

Mas a pergunta do brasilguaio o incomoda, e após alguns silenciosos minutos na trincheira entre Higienópolis e a Zona Leste, ele deposita o rifle em um canto e diz:"Olha , a coisa é assim . Aqueles palmeirenses (sérvios) pensam que são melhores que nós (croatas). Eles (nós) pensam (os) que são europeus finos e tudo mais. Vou lhe dizer uma coisa. Somos todos lixo de Itaquaquecetubas (dos Balcãs)".

Hoje, 13 de maio, data comemorativa da Abolição ouso invocar a Potência Zumbi para desafiar o Capitão do Mato Bolsonada para que me prove a diferença que justificará sua resposta racista a uma indagação sobre a ''miscigenação" no seio de sua eugênica família ariana. E sei que mais um panfleto ou bravata, tipica de quem como ele, acredita que a menor diferença de hábitos, escolhas ou modos de viver, por si só, já justificam a sua exclusão ou extermínio.

Na essência dos temores dos muitos capitães de mato, herdeiros dos Anos de Chumbo, na Terra Brasilis, ainda circulam os mesmos princípios fascistas que circularam nos nossos vizinhos torturadores, para além das semelhanças, dos que frequentaram a Escola da Armada em Buenos Aires. A diferença é que lá na Argentina eles vão para o banco dos réus. 

Por isso os sérvios e croatas tiveram e terão de passar a limpo os genocídios cometidos em nome dos "narcisismos das pequenas diferenças", como a marca ou tipo de cigarros que do outro lado são fumados. Na fumaça de seus cachimbos de boca torta sai um pouco de seus ódios étnicos e raciais. Os capitães, coronéis e generais dos campos de exceção não podem ser esquecidos, muito menos impunes.

Mas para além de combater o esquecimento e reforçar nossas memórias é preciso ir em busca de soluções para nossas pequenas guerras particulares ou coletivas. Não podemos continuar estimulando processos de segregação, discriminação ou de exclusão, seja nos bancos de escola ou nos espaços sociais coletivizados. 

Entra aí a necessidade de um estímulo ao re-conhecimento das diferenças, sem negar as identidades culturais, buscando a convivência criativa com todas as diversidades, entra em ação, por exemplo, uma educação baseada em direitos humanos e de projeto/processo inclusivo.

Entre 13 de maio e 20 de novembro temos uma data esquecida: 16 de novembro. Uma data ainda fora do calendário escolar. Esta é data internacional para a Tolerância, promulgada pela ONU em Paris (1995). Entretanto, sabemos que a Tolerância é um desejo universalista ainda distante da erradicação das formações de novos ódios raciais/étnicos ou de cunho fundamentalista no mundo hipercapitalista. Tolerar, apesar do sentido etimológico de sofrimentos, é também a possibilidade de ir além das nossas mesquinharias narcisisticas.

O seu Artigo 26 : "A educação deve promover a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações, grupos raciais e religiosos" , precisa de consolidação por ações micro e macropolíticas que possam produzir novas subjetividades, novas identidades. Precisam de um re-conhecimento da urgência de uma educação anti-racista, anti-xenófoba, anti-homofobias, anti-fascista, anti-machismos, anti-escravidão no trabalho, anti-pedofilias, anti-imperialistas, enfim anti-homogeneização das diferenças.

Vamos, então, fazer um tratado, um pacto na Terra de Ninguém, aquela fronteira entre Eugenianópolis e Espartonópolis. Vamos dar o primeiro passo para que a inclusão, através do ato de educar ao Outro e si próprio, seja o melhor antídoto para o veneno do Ovo da Serpente de Vidas Nuas que habita o âmago de nossos corpos em serialização e controle biopolítico.

Mesmo sendo um antitabagista, convicto e militante, lhes pergunto: qual é a marca (estigma) da fumaça que sai de seus cigarros, cachimbos ou cigarros, sejam eles reais ou imaginários?


copyright jorgemarciopereiradeandrade (favor citar o Autor e as referências no texto em republicações livres pela Internet e veículos de comunicação de massa)

Referências bibliográficas no texto:

- Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual - Kathryn Woodward - in Identidade e Diferença - a perspectiva dos Estudos Culturais, Tomaz Tadeu da Silva (Org.) , Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 2000.

Indicações para Leitura e utilização para reflexão sobre o Racismo:

- Superando o Racismo na Escola - Kabengele Munanga (org.) - Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.
- Discriminação Racial nas Escolas (entre a Lei e as práticas sociais) - Hédio Silva Jr., UNESCO, Brasília, 2002.
-Tornar-se Negro - Neusa Santos Sousa - Ed. Graal, Rio de Janeiro, RJ, 1983
- Racismos e Anti-racismos no Brasil - Ed. Pallas, Rio de Janeiro, RJ, 2001.
- Raça Pura (uma história da Eugenia no Brasil e no mundo) - Pietra Diwan, Ed. Contexto, São Paulo, SP, 2007.

13 de maio - Data comemora a assinatura da Lei Áurea

Dia Internacional da Tolerância - 16 de novembro

Dia da Consciência Negra - Dia de Zumbi dos Palmares - 20 de Novembro

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QUAL É A SUA RAÇA?


01 NEGRO+ 01 DOWN + 01 POETA - Um dia para não esquecer de incluir -

sexta-feira, 6 de maio de 2011

ADEUS ÀS ARMAS - Sem Tiros no Futuro ou Cem tiros?

Imagem publicada - uma mulher negra, angolana, de lenço na cabeça, sentada em um banco de madeira, com uma prótese de perna esquerda junto a uma bengala canadense e uma prótese para sua perna amputada, que nos olha e interroga sobre o uso de armas contra civis, já que sua perna direita foi amputada por motivo de mina terrestre ou uma bomba cluster, das que foram e são usadas em guerras colonialistas ou de falsa emancipação, seja na África, seja no Norte ou no Oeste, ou, então, no Afeganistão. Ela tem um par de tênis All Star, um calçado e outro sem, pois calça a prótese que muitos ainda usarão. (foto em preto e branco de José Silva Pinto)
O texto que republico hoje foi uma tentativa em 2005, outubro, de que muitos pudessem refletir sobre a questão apresentada pelo Referendo sobre a proibição de comercialização de armas de fogo e munições, que ocorreu no mesmo mês. Nesse momento estávamos respondendo à seguinte questão: "O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?".

E minha resposta foi sim na urna eletrônica, mas a maioria disse não (63,4%). Nós tivemos a opção de fazer uma mudança de rumos no campo, nas cidades e no País. Optamos pelo temor e pela cultura do medo, onde é melhor estar armado contra violências físicas com o uso de outras formas de violências.

Eis o que hoje me faz sentir que cumpri a minha parte, e deixo como nova homenagem aos já em esquecimento jovens sacrificados por duas armas de outro jovem na Escola Tasso do Realengo. Os tiros reais não matam os fanáticos, os terroristas e os que acreditam nas armas, nas guerras, e que, com suas máquinas biopolíticas mortíferas, retroalimentam ódios, xenofobias, intolerâncias, racismos, fanatismos e as culturas do terror. Uma das faces do Capitalismo de Desastre.

Com vocês, leitores e leitoras do blog um ''velho-novo" texto meu:

"...Há muitos anos, no interior do Brasil, lá em Minas Gerais aprendi que não se deve portar nenhum tipo de arma de fogo. Mesmo de pequeno porte, e, principalmente estas. A história que me foi ensinada e transmitida, pela minha mãe, transformou-me de admirador de Johns Waynes e outros pistoleiros ou cowboys. Eu me tornei um admirador dos que foram submetidos ao genocídio de uma primeira colonização Oeste Americano: os índios. 

Primeiro me identifiquei com os peles-vermelhas, os apaches (hoje vilipendiados pelo codinome Gerônimo no assassinato de Bin Laden, ou quaisquer Outros que se 'tornem meus inimigos mortais'), depois descobri que era um afrodescendente, em uma miscigenação multicultural e étnica, direto dos nambiquaras e tupis, e outros selvícolas (combinados com portugueses colonialistas e colonos italianos, como meu bisavô Antônio Pompeo).

Eu brincava, como muitos meninos, de faroeste, admirava os ‘colts’ e as ‘winchesters’, até que conheci a história de meu avô, homem de muitas façanhas, pelo menos no meu imaginário. Ele fizera uma viagem de trem, para uma cidade e lá ele comprou uma garrucha, uma pistola de dois canos. No meio da viagem, entre Minas e São Paulo, ele resolveu experimentar sua arma, colocou-a para fora da janela do trem e atirou a esmo. 

A Maria Fumaça que fazia curvas na serra foi despertada pelo barulho desta desastrada experiência, o cabineiro advertiu meu avô, e na primeira estação ele foi desembarcado... Contada a história do Seu Filomeno, a primeira vista, nenhuma coisa de grave ocorreu, porém, na minha consciência a despertar, surgiu uma indagação que até hoje trago comigo.

Minha mãe a semeou muito bem. Ela me indagou o que eu achava que poderia ter acontecido com as balas, os projéteis, que saíram pelos canos da garrucha. A quem ou ao que elas podem, como as balas perdidas-destinadas de hoje, ter ceifado a vida ou dado uma cadeira de rodas de presente. Um detalhe contava também na minha aprendizagem: minha avó, a quem não pude conhecer em vida, usava uma cadeira de rodas.

No dia do referendo vou acordar com a certeza de que já tenho minha definição do voto a favor da proibição do comércio de armas de fogo. Não será apenas a história do Seu Filomeno, será a minha convicção de muitos anos de defesa de Direitos Humanos. Muitos anos convivendo com uma certeza: ainda estamos no meio de um faroeste. Sei que muitos, a moda dos mocinhos e heróis colonialistas, acreditam que as armas são indispensáveis para a ‘segurança’. Sim, respondo a quem me indaga sobre sua existência e permanência na história da humanidade. Porém, devido ao seu uso lesivo, com uma freqüência excessiva, fica cada dia mais claro, que: mais pessoas são mortas ou feridas por armas de pequeno porte do que por armas pesadas.

Eu fundamento meus argumentos em documentos internacionais que discutem o uso legítimo das armas, e questiono aos meus interlocutores com a pergunta simples: de que serviria a garrucha do Seu Filomeno se ele não tivesse as balas para municiá-la? Quem sabe a minha consciência crítica dos bang-bang demorasse mais alguns anos para acontecer, e quem sabe ele teria dado mais cedo o seu adeus às armas, e melhor ainda não teria sido expulso do trem, algo profundamente penoso e vexatório para um mineiro daqueles tempos.

Hoje me preocupo com os discursos fundamentados no medo e não na conscientização. O que teria me acontecido se o discurso de minha mãe fosse somente da punição e do castigo? E não da indagação sobre as consequências da irresponsabilidade e da insensibilidade momentânea do meu velho avó?.

Por esse aprendizado é que lhes darei alguns dados para sua e nossa contínua reflexão (nosso trabalho de desarmamento não acabará com a resultante deste referendo).

Um dos primeiros argumentos que tenho lembrado é a existência de mutilações e de produção de pessoas em situação de deficiência, como a existência (por exemplo) de mais de 80.000 pessoas com próteses de pernas e braços em Angola, sendo uma boa parte desta produção uma resultante de minas terrestres fabricadas no Brasil. Para este país africano ficar com seu solo sem minas terrestres serão necessários 800 anos. Lá há para cada cidadão duas minas enterradas no chão. Pode-se argumentar que lá houve uma guerra civil. ( Minas ainda espalhadas em 68 países, alguns, como o Iraque, motivo de guerras de intervenção norte-americana, veja matéria atualizada sobre Minas Terrestres e bombas antipessoas)

Entretanto tenho de lembrar que aqui em Campinas, SP, Brasil, no intervalo de menos de 24 horas (outubro de 2005), cinco pessoas foram baleadas e mortas, e se esse número permanece, temos pelo menos 35 mortos ou feridos por semana e um total de 140 cidadãs e cidadãos com a possibilidade de óbito por ferimento de arma de pequeno porte, ou possíveis candidatos a um longo, imprescindível e cuidadoso processo de reabilitação física. Hoje mesmo li que mais uma fábrica de armas deseja instalar-se no município, de mais de 01 milhão de habitantes, onde moro, e desejo continuar ‘vivo’, intensamente.

Há aproximadamente 639 milhões de armas de pequeno porte hoje no mundo, sendo mantida por uma indústria de mais de 1135 empresas, uma falsa máquina hipercapitalística da segurança, em pelo menos 98 países. Quantas armas ainda precisamos mais?

Por isso não podemos lamentar ou apenas criticar este movimento da macropolítica pelo referendo. Abriu-se em nosso país uma incomoda questão: continuaremos nos iludindo sobre a violência armada? Continuaremos, agora, hoje e amanhã, aqui, no Haiti, em muitos outros distantes lugares, em Angola, a não ‘dar bola’ e nem se importar com esta morte pelas balas... Não estaríamos no trem da globalização fazendo uma pérfida e silenciosa experimentação de nosso três-oito-tão da negação e da segregação em massa? Afinal o maior número de cadáveres é dos desiguais e excluídos.

Parodiando o Milton Nascimento, outro amante das máquinas a vapor (lá das nossas Minas Gerais), podemos dizer que: o trem que chega (no vagão dos excluídos) é o mesmo trem da partida (no valão do esquadrão da morte), que temos de fazer de nossos encontros uma nova despedida: saudar com um lenço branco, na plataforma desta estação, chamada Terra, dizendo adeus às armas, dando boas-vindas à VIDA".

Tudo isso dito e escrito há 06 anos atrás. Tudo isso sentido novamente e gritando dentro de mim depois dos Realengos, dos Alemães, dos Zona Leste, dos Jardins, dos Nordestes, dos Estes e dos Faroestes cotidianos que inundam e, a mim, incomodam nos nossos noticiários Datenados televisivos.

ENFIM, a todas as mães que militam e ativamente participam das campanhas de não-violência, defesa da Vida, erradicação da miséria e da fome, desarmamento civil, respeito às diferenças e inclusão social com direitos humanos, envio meu mais doce abraço e minha ternura. A essas mães imprescindíveis na luta contra todas as formas de exclusão, pobreza ou violências sociais dedico um novo nome: MÃES CORAGEM. A minha foi assim.

copyright jorgemarciopereiradeandrade 2005-2017 ad infinitum... (favor citar o autor e fontes na republicação livre pela Internet e outros meios de comunicação de massa, todos direitos reservados)

Indicações para Leitura e Reflexão:

Referendo (do desarmamento) no Brasil em 2005 https://pt.wikipedia.org/wiki/Referendo_no_Brasil_em_2005

Minas terrestres e bombas de fragmentação são um perigo mortal http://br.kindernothilfe.org/Rubrik/T%C3%B3picos/Minas+terrestres.html

Campanha Nacional de Desarmamento é lançada: “Tire uma arma do futuro do Brasil”
https://primeiraedicao.com.br/noticia/2011/05/06/campanha-nacional-de-desarmamento-e-lancada

Parentes das vítimas de Realengo reclamam da facilidade na aquisição de armas
https://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/noticias/parentes-das-vitimas-de-realengo-reclamam-da-facilidade-na-aquisicao-de-armas-20110506.html

Pesquisa aponta que jovens negros são maiores vítimas da violência no Brasil
https://www2.camara.gov.br/agencia/noticias/SEGURANCA/196591-PESQUISA-APONTA-QUE-JOVENS-NEGROS-SAO-MAIORES-VITIMAS-DA-VIOLENCIA-NO-BRASIL.html

Nordeste é líder em mortes por arma de fogo e sofre com polícia 'deficitária'
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/2011/05/06/nordeste-e-lider-em-mortes-por-arma-de-fogo-e-sofre-com-policia-deficitaria-dizem-especialistas.jhtm

LEIAM NO BLOG:
A Violência Nossa de Cada Dia Dai-nos Também
https://infoativodefnet.blogspot.com/2010/11/violencia-ou-melhor-as-variadas-formas.html

Tiros Reais em Realengo

https://infoativodefnet.blogspot.com/2011/04/imagem-publicada-imagem-de-bracos-e.html

A Morte do Fanático Não Matou o Fanatismo

https://infoativodefnet.blogspot.com/2011/04/morte-do-fanatico-nao-matou-o-fanatismo.html