quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O APRENDIZADO DA DOR - o alívio da dor é um direito humano?


imagem publicada - foto de uma mulher negra, da Àfrica, deitada sobre o chão, com uma expressão de dor intensa em seu rosto, com sua mão apoiando seu rosto, tendo ao fundo um filhote de ave, como contraponto a sua situação de sofrimento. Foi publicada na matéria sobre Margaret Somerville que é diretora do Centro de Medicina, Ética e Direito na Universidade McGill e autor de A Imaginação Ética : Viagens do Espírito Humano. Nessa matéria interroga-se se o alívio da dor extrema não é um direito humano?

"O vivido de uma dor é sempre o vivido da minha dor. Cada um sofre à sua maneira, qualquer que seja o motivo de seu sofrimento. Todas as vezes que uma dor nos aflige, venha ela do corpo ou da mente, ela se mistura inextricavelmente à mais antiga dor que revive em nós..." J.-D. Nasio ( A Dor Física)

Enquanto a macropolítica  temporariamente, nos inebria, entontece e anestesia, há outras sensações e vivências subjetivas que não podem ser aplacadas com este momento político e social. São as que "vivemos na pele", oriundas de um aprendizado da dor. São as que nascem somente no âmago de quem as experimenta, por longo período. Eu aqui, resilientemente, venho aprendendo com a convivência diuturna do ser e estar com a dor em meu corpo/mente.

Recebi uma matéria de um jornal de Bioética: The American Journal of Bioethics, que me fez refletir sobre minha condição cidadã e meu ser vivo em estado de dor. O artigo é de uma bioeticista, Margaret Somerville, que vivenciou na "pele" como é absurdo o pouco cuidado da dor humana.

E este absurdo se torna ainda maior quando as condições de vida e dignidade não são incluídas no respeito ao ser humano em situação de dor extrema. Principalmente quando isso ocorre com os excluídos. A exclusão, de qualquer tipo ou ordem, também acentua outras dores, outras intensidades.

A própria bioeticista relata sua experiência com seu pai: "Em 1983, meu pai estava doente terminal com câncer de próstata com metástase para os ossos. Eu estava em Montreal, quando ele me telefonou e disse que ele estava prestes a morrer , então entrei em um avião e fui para a Austrália".

Ela relata que teve de criar uma grande confusão no hospital universitário onde ele se encontrava. Ela, após seu estardalhaço, conseguiu um especialista em dor para ver seu pai: o Dr. Michael Cousins, um anestesista australiano. Ele é o médico que ajudou a coordenar uma Declaração em Montreal sobre o Alívio da Dor como um Direito Humano, que apresento uma tradução livre lá embaixo.

O mais interessante é a afirmação do pai desta médica, que ainda sobreviveu por mais nove meses. Ele disse: "Eu quero viver enquanto eu puder, Margo, mas eu não quero viver se isso significar viver com uma dor tão terrível . É ótimo o que você fez por mim, mas nem todo mundo tem uma filha que pode " perder as estribeiras 'para obter -lhes o alívio da dor que eles precisam. Você tem que fazer algo para ajudar outras pessoas com dor". Desde então ela tem procurado ajudar na difusão de uma plataforma de reivindicações dos direitos de pacientes com dor por todo o mundo, em especial nos chamados países em desenvolvimento ou emergentes.

Freud em seu câncer de mandíbula, após diversas intervenções cirúrgicas, também solicitou a seu médico e amigo Max Schur um alívio. Ele recebeu o seu direito humano de morrer com dignidade. O seu médico atendeu a seu pedido "in extremis", ou seja quando nada mais podia ser feito, quando nem os cuidados paliativos já amorteciam a dolorosa e sofrível situação do pai da Psicanálise.
  Foi ele que nos legou esse conhecimento: "O eu (ego) é antes de tudo um eu (ego) corporal; não é apenas um ser de superfície (psíquica), mas é ele próprio a projeção de uma superfície[ a superfície do corpor, isto é a pele]... Por longos anos vivenciou dores e sua inexorável insuportabilidade psíquica ao se prolongarem. Em 23 de setembro de 1939 descansou com a ajuda de Max Schur.

Nessa perpectiva de alívio da dor é que devemos, médicos e seus ''pacientes'', buscar um modo ético e bioético de cuidar e diminuir o sofrimento humano provocado pela dor. Não somos todos budistas, mas o somos na sua afirmação da universalidade da dor. Não há ser humano que não a tenha experimentado, física e psíquicamente, sem guardar uma lembrança.

Daí que, teremos sempre dores antigas, dores atuais e até dores ''amigas''. Aprendemos a conviver e respeitar nossa frágil condição humana corpórea quando ela se apresenta e persiste. Aprendemos também que devemos combatê-la quando nos incapacita. Mas ainda precisamos aprender a respeitar a intensidade e o desejo de alívio de quem a sente como insuportável.

'Em sua "Declaração sobre o Acesso a Cuidados com a DOR como um Direito Humano Fundamental", os delegados e participantes do Congresso Internacional da Dor propuseram que todas as pessoas:
1- Têm o direito de acesso ao cuidado da dor sem discriminação.
2- Tem o direito a ser informados sobre como sua dor pode ser avaliada e acompanhada através do registro de um quinto sinal vital, e informados sobre as possibilidades de tratamento.
3- Tem o direito de acesso a um conjuto adequado das estratégias de gestão eficaz da dor, a serem alicerçadas em políticas e procedimentos apropiados para cada quadro particular de saúde pessoal e os profissionais da saúde que os empregam.
4- Tem o direito de acesso a medicamentos adequados, inclusive, mas não limitados, ao uso de opióides, bem como o acesso a profissionais de saúde especializados no uso destes medicamentos.
5- Têm o direito de avaliação e atendimento por uma equipe devidamente instruída e treinada interdisciplinarmente em todos os niveis de atenção
6- Tem o direito à politicas públicas de saúde em cujos quadros possam participar do tratamento da dor, em nível social, econômico e ambiental, baseados na compaixão, na empatia e na informação acessível e clara.
7- Tem o direito de acesso às melhores práticas, aos métodos não-medicamentosos do cuidado da dor ( variando desde métodos de relaxamento ou fisioterapia até o tratamento cognitivo comportamental), assim como a métodos intervencionais por especialistas em dor, dependendo dos recursos de cada país.
8- Temos o direito de ser reconhecido como tendo uma manifestação da doença, exigindo-se o acesso aos mesmos patamares de cuidado de outras doenças consideradas crônicas.
Adicionalmente, a declaração propõe que:
1- Os profissionais da Saúde têm a obrigação de oferecer aos pacientes com dor os mesmos cuidados que seriam oferecidos, razoavelmente, por profissionais atentos e competentes na área da saúde.
2- Os Governos e as instituições de saúde devem estabelecer leis, políticas públicas e sistemas que promovam/estimulem - e não inibir - os cuidados, a gestão e o acesso aos tratamentos da dor".


ESTE TEXTO FOI ESCRITO EM HOMENAGEM A TODOS OS QUE NÃO PODERÃO COMPARECER ÀS URNAS PARA VOTAR, POR ESTAREM SE SUBMETENDO, TALVEZ NESSE INSTANTE, A UM PROCESSO DE TRATAMENTO INTENSIVO PARA DORES EM FUNÇÃO DE UM CÂNCER, UMA RADIOTERAPIA, UM AGUDIZAÇÃO DE QUADRO INFECCIOSO, UMA RECIDIVA DE SEU QUADRO DE IMUNOSUPRESSÃO POR HIV, UMA CONDIÇÃO PÓSTRAUMÁTICA NEUROLÓGICA, OU QUALQUER OUTRA CONDIÇÃO DE VIDA E SAÚDE ONDE A DOR ESTEJA IMPEDINDO-OS DO EXERCÍCIO DE SUA CIDADANIA.

Eu aqui, mesmo como as minhas dores e dissabores, estarei buscando no voto, na urna, e no exercício de minha condição cidadã a esperança de outro modo de cuidar, olhar e respeitar esses Outros que aprendem a dura convivência com a dor. A esperança pode ser um gramática civil de um outro modo de re-conhecer a dor que nos é imposta com a negação de nossas diferenças e singularidades, para além de nossas diversidades e pluralidades.

Espero que nossos representantes políticos, ao serem eleitos, possam entender que: os gastos com o alívio da dor, tanto para os cidadãos e cidadãs, assim como para os Estados têm ocupado a terceira posição dos gastos totais em Saúde (WHO) dos países industrializados. Por que então estes cuidados não tem a mesma atenção que os dedicados às outras formas de adoecimento e sofrimento humano no Brasil e no mundo globalizado?

FONTES DE PESQUISA: 
 Is Pain relief a human right?
http://www.mercatornet.com/articles/view/is_pain_relief_a_human_right/

13º Congresso Mundial sobre a Dor - Montreal 2010
http://communities.canada.com/montrealgazette/blogs/healthbites/archive/2010/09/03/montreal-declaration-proposes-pain-strategies.aspx

A DOR FÍSICA (uma teoria psicanalítica da dor corporal) - J.-D. Nasio, Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, RJ, 2008.

Indicação para leitura -
Hospital: Dor e Morte como Ofício
- Ana Pitta, Editora Annablumme/Hucitec, 5ª ed., São Paulo, SP, 2003.

LEIAM TAMBÉM NO BLOG -
NENHUMA DOR A MENOS OU MAIS  http://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/10/nenhuma-dor-menos-ou-mais.html

8 comentários:

  1. Oi Jorge,
    Parabéns pela sensibilidade ao escolher certos temas. Precisamos lutar por esse direito.
    Todos um dia deveriam passar por uma dor intensa, principalmente os médicos. A dor traz mais danos do que a própria causa. Ela nos tira a dignidade, a razão, nos escaviza. E quando chega, domina nossa vida. Vivemos em função dela.
    Mais do que um direito Fundamental, deveria ser um direito Constitucional, daí a importância do meu voto. Será que algum político sequer pensa nisso?

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  2. Boa tarde, Jorge!
    Eu posso lhe afirmar que, as melhores leituras que tenho realizado ultimamente são as provenientes dos seus textos. Estes são lúcidos e nos mobiliza muito mais que a simples reflexão. Sempre com questões reflexivas e fazemos uma viagem interessante durante o processo de leitura. Você sintetiza tantas coisas importantes em apenas um texto e também deixa a abertura para infinitas ponderações, questionamentos etc... Difícil responder sem pensar. Ou seja, a resposta pronta não dá conta de responder aonde quer nos levar, por meio das entrelinhas dos seus textos. Portanto, ainda estou refletindo...
    Parabéns! Abraços,
    Ana Floripes

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  3. "A exclusão, de qualquer tipo ou ordem, também acentua outras dores, outras intensidades." ... Será que teremos que passar pelos meus caminhos de aprendizado de alguém, em algum momento de exclusão específico, para termos noção da dor causada e da dor sentida? Não basta que alguém passe pela dor e assim aprendamos a lutar por melhores condições de vida? Por que será que estamos tão distante de sermos considerado humanizados, em plena época em que se diz que as informações circulam tão rapidamente?

    Ana Floripes

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  4. Sou portador de HIV ha 16 anos. Nestes dezesseis anos conheci a dor em muitos matizes, formas, conceitos e abstrações.

    Neste exato momento estou em dor. E não é pouca a dor, haja visto que nem um opiáeco a resolve.
    "I've become confortably numb" (eu me tornei insensível à dor) NUMB é dor no sentido mais exacerbado da dor, quandoe la chega a ser um transe...

    Acredito que cada um conheça seu limite e que possa e deva determinar quando "isso deve parar"...
    Eu, particularmente, continuarei até que o ultimo neuronio esmoreça. Quem me acompanha na minha luta cibernética pelos direitos das pessoas que vivem com HIV ou AIDS sabe dos inumeros sacrificios morais e espirituia, bem como materiais que tenho feito ao longo dos ultimos dez anos para simplesmente manter um site no ar, distribuindo informação que evite que outras pessoas contraiam o virus mas, que, também, de alento e esperança a quem ja contraiu.
    Recuso me à ideia da eutanasia.
    Mas recuso-me também à ideia da sustentação da vida a qualquer preço!
    eu li em algum lugar que a vida é, também, uma entidade estética e que, morsta a nossa capacidade de sentir o que é belo e o que é bom, já não importam mais os zumbidos e os zigues zagues das maquinas nos sustentando com noradrenalira à espera da falencia multipla de orgãos. Quando fui voluntario em um hospital que cuidava de soropositiovs terminais assisti a este processo inumeras vezes e nunca consegui entender bem o por quê daquele prolongamento insensato.
    Já não há consiciencia então nção há vida.
    Isso, assumindo-se que todas as medidas para a recuperação do deoente foram tomas e que, sob nenhum pretexto, venha-se a declarar "morte cerebral" com a finalidade de transplante de orgão unicos i vitais.
    Como portador de HIV estou isento do "desmonete para reciclagem", ms sei que há muitos casos de obssessão e perseguição espiritual que pdoeriam ter sido evitados se simplesmente se esperassem que alguem verdadeiramente morresse antes d e lhe retirarem os orgãos. E que não me venham com sofismas que, não fora de outro modo e os órgão estariam inutilizados...
    Os órgãos pertencem àquele que com eles naceu e só ele tem direito de dispor destes iorgão em benefico de outrem.
    Alívio da dor não pode significar assassinato travestido de piedade.
    Por Deus no céu e pela luz que há em meus olhos, se você, que agora me lê, estiver perto de mim, algum dia, num leito de transe, e pensar por um segundo em me "aliviar a dor", afasta-te silencioisamente e, quando muito, concede-me o benefinio da prece.
    Tudo tem tempo e hora determinada, há o tempo de plantar e o tempo de colher.
    Há também o tempo de viver, o tempo de sentir dor e o tempo de morrer.

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  5. CARA MARIA HELENA
    Obrigado por sua visão da importância política de uma outra forma de cuidar e gerir as estratégias médicas, sociais e biopolíticas da dor humana. Espero que seu voto possa ajudar nessa direção de afirmação e consolidação de nossos direitos humanos. Agradeço sua visita e comentário, volte sempre jorge marcio

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  6. CARA ANA FLORIPES
    Mais uma vez você me oferece mais um lenitivo e estímulo para continuar aprendendo com e sobre a dor humana. MUITO OBRIGADO por seu elogioso comentário e sua visita/leitura sensível de meus textos. Mantenha-se conectada no blog pois novos escritos brotaram com estas estimulantes mensagens como a sua... um abraçodoce jorge marcio

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  7. Caro Amigo que se indenfica como Soropositivo
    Respeito e admiro sua posição e lhe desejo que continue tentando superar seu estado doloroso com a ajuda dos direitos que foram proclamados em Montreal, sempre lembrando que nossos futuros são mais surpreendentes do que sempre imaginamos... e a única certeza é a nossa finitude... continue apresentando suas críticas e sugestões no blog. um abraçocaloroso jorgemarcio

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  8. PARABÉNS PROFESSOR E DOUTOR JORGE MARCIO , VOCÊ MERECE NOSSO RESPEITO , POIS FAZ A DIFERENÇA.

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